Herança digital e o vácuo normativo no ordenamento jurídico

Herança digital e o vácuo normativo no ordenamento jurídico

direito, balança da justiça, sopesamento de direitos

A herança digital pauta-se como um dos mais instigantes temas envolvendo o Direito das Sucessões na contemporaneidade, sendo que a prematura morte da cantora sertaneja Marília Mendonça, em novembro de 2021, reascendeu o debate doutrinário em relação à temática.

Se até pouco tempo atrás a sucessão post mortem se resumia à transmissão de bens materiais – privilégio dos mais avantajados financeiramente –, um novo ordenamento se instaura, objetivando ampliar as fronteiras do conteúdo sucessório e adequá-lo a uma nova realidade, notavelmente digital.

A maior problemática que envolve o referido tema refere-se à ausência de conceituação legal do termo herança digital no país, sendo que tanto o Código Civil, quanto o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e a LGPD (Lei 13.709/2018) são silentes sobre a matéria, permitindo, portanto, lacuna normativa.

Assim, o próprio conceito de “bens”, estabelecido pelo Código Civil de 2002, deve passar por uma analogia extensiva, permitindo, em pontapé inicial sobre o direito das sucessões em âmbito digital, entender o que poderia se amoldar ao conceito presente na referida norma sendo que, nesta vertente, os bens digitais são considerados como:

 […] bens imateriais representados por instruções codificadas e organizadas virtualmente com a utilização linguagem informática, armazenados em forma digital, seja no dispositivo do próprio usuário ou em servidores externos como no caso de armazenamento em nuvem, por exemplo, cuja interpretação e reprodução se opera por meio de dispositivos informáticos (computadores, tablets, smartphones dentre outros), que poderão estar ou não armazenado no dispositivo de seu próprio titular, ou transmitidos entre usuários de um dispositivo para outro, acesso via download de servidores ou digitalmente na rede, e podem se apresentar ao usuário.1 

Neste sentido, como a maioria dos bens digitais ostenta caráter mera e puramente sentimental e existencial, não sendo dotado de valor econômico, o vácuo legislativo abre margem às interpretações restritivas quanto ao direito sucessório de tais bens, como, por exemplo, as redes sociais.

A transmissão automática consagrada pelo princípio de saisine, então, abrangeria, em primeiro momento, apenas os bens digitais de conteúdo econômico.

Os bens com valoração econômica se enquadram no conceito de patrimônio, assim a partir do momento que lhes é auferido valor monetário, presume-se que os mesmos compõem o patrimônio como bens em meio digital. Desse modo, em relação aos ativos digitais com valoração econômica, parece não existirem maiores dúvidas sobre o direito dos herdeiros.2 

Todavia, não é possível auferir o valor econômico sem análise personalizada de cada situação. A título exemplificativo, se blogs ou contas em redes sociais geram conteúdo monetário, poderiam elas ser abrangidas em tal situação e transmitidas? Caso a resposta fosse positiva, estar-se-ia conferindo tratamento desigual aos herdeiros que objetivam a transmissão de conta do de cujus que não auferia lucros?

Percebe-se, assim, que a hermenêutica extensiva da matéria não é suficiente para amparar todo o acervo digital de adequado modo, haja vista a necessidade de se observar, em maior espectro, as peculiaridades de cada sistemática virtual, possibilitando preencher lacunas normativas existentes.

A título exemplificativo, relacionando-se a temática à herança digital e propriedade digital post mortem, certo é que as criptomoedas deverão gozar de legislação específica com vistas a assegurar o patrimônio digital do de cujus e seus sucessores (o campo guarda relações estritas com a tributação de tais ativos), ao tempo em que contas em redes sociais deverão gozar de regramentos especiais para resguardar a memória digital do de cujus, e eventuais desejos testamentários.

Neste norte, questiona-se se os herdeiros de influenciadores digitais teriam direito à herança do patrimônio digital constituído pelo falecido, bem como se existiria obrigação das plataformas em manter estes perfis após o evento morte de seu criador, hipóteses essas em que seriam aplicadas as disposições contratuais, se existentes, ou, analogicamente, as disposições gerais relacionadas aos direitos da personalidade e direitos sucessórios.3

Percebe-se, portanto, que a amplitude da matéria não permite simples resposta, sendo necessário conferir não apenas um sentido global à temática, mas sim a busca por regramentos específicos que confiram respostas personalizadas e, a seu tempo, adequadas para solucionar eventuais controvérsias que venham a surgir com a atualização destes institutos.

Cabe mencionar que foram arquivados, na Câmara dos Deputados, dois Projetos de Lei que buscavam abordar a temática, sendo o PL 7.742/17 e o PL 8.562/17, este último com objetivo de acrescentar capítulo próprio sobre herança digital ao Código Civil de 2002.

Na próxima parte, irei tratar acerca do direito sucessório em relação às contas em redes sociais, discutindo a possibilidade de transmissão aos herdeiros na míngua da atual legislação, brevemente analisando o leading case alemão da “garota de Berlim” e o controverso caso, em âmbito nacional, de uma mãe enlutada contra o Facebook, buscando também abordar os aspectos sucessórios dos ativos digitais e demais bens com valoração econômica.

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Caio César do Nascimento Barbosa

 

Referências

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1. PINHEIRO, Valter Giuliano Mossini; FACHIN, Zulmar Antonio. Bens digitais: análise da possibilidade de tutela jurídica no direito brasileiro. In: XXVII Congresso Nacional do Conpedi Porto Alegre – RS. Coordenadores: Feliciano Alcides Dias; José Querino Tavares Neto; João Marcelo de Lima Assafim. – Florianópolis: CONPEDI, 2018.

2. RIBEIRO, Desirée Prati. A herança digital e o conflito entre o direito à sucessão dos herdeiros e o direito à privacidade do de cujus. Monografia (Graduação em Direito) – Curso de Direito, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), Santa Maria – RS. Disponível em: https://bit.ly/3Glcv1D. Acesso em: 03 dez. 2021, p. 34.

3. BARBOSA, Caio César do Nascimento. Propriedade Digital na Sociedade 4.0. Magis – Portal Jurídico. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3rIw1B7. Acesso em: 03 dez. 2021.

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