Partindo do paradigma racional iluminista que fundou as ciências modernas, a análise econômica do direito, conhecida como AED, constitui-se, em síntese, por um campo teórico que objetiva analisar situações jurídicas sob a premissa de que, em um cenário de recursos escassos, o ser humano tomaria suas decisões de forma racional, optando pela escolha que lhe trouxer maior bem-estar (riqueza ou utilidade).
Essa forma de análise do sistema jurídico propõe um arquétipo de sujeito predominantemente racional e leva em conta o postulado da escassez, a existência de incentivos (preços implícitos), a maximização racional da escolha, o equilíbrio como padrão comportamental desejável e a eficiência como objetivo.
O paradigma da escassez pressupõe que vivemos em mundo com recursos limitados, gerando problemas para que todos possam satisfazer as suas necessidades simultaneamente. Desse modo, seguindo o raciocínio teórico, a ação humana seria pautada por um agir instrumental, direcionado a alcançar os maiores benefícios com o menor custo possível, em equilíbrio com os demais indivíduos, a fim de garantir que essa utilidade se prolongue no tempo.
O postulado teórico da AED surgiu como forma de análise do sistema jurídico visando aumentar a sua própria eficiência em prol de uma sociedade funcional, mas, mesmo antes de sua construção e aplicação, já era possível observar a presença desse pressuposto permeando o campo jurídico por se tratar de um paradigma infiltrado nas ciências conformadas aos moldes iluministas.
Isso porque, criação de normas e políticas públicas deseja um certo grau de previsibilidade da conduta humana para que sejam alcançados os resultados esperados, pois, conforme os ensinamentos de Filho, “uma premissa irreal pode induzir a conclusões equivocadas, afastando-se o Direito dos resultados por ele buscado, gerando uma diminuição do bem-estar social”.1
Sendo assim, muito do que se entende por direito hoje se constituiu com base nas expectativas criadas por esse paradigma de racionalidade. Inclusive, essa é uma das fundamentações possíveis para um sistema de normas e sanções que visa onerar o comportamento humano prejudicial ao todo social com a criação de normas que reduzam o bem estar individual. No entanto, esse modelo não explicava os desvios percebidos no padrão das escolhas humanas que em muitos casos poderia ser interpretado como prejudicial a si mesmo e a sociedade.
O avanço nos estudos das ciências humanas e sociais (filosofia, sociologia, psicologia e etc.) trilhou gradativamente para um ambiente desprovido da obrigatoriedade de lógica racional que inicialmente afastou a Análise Econômica dos preceitos psicológicos abstratos e não verificáveis. Todavia, os experimentos científicos comportamentais e neuro cognitivos atuais tem conseguido reaproximar os eixos economia-direito-psicologia ao demonstrar cientificamente as falácias na hipótese da teoria da escolha racional.
O conjunto de estudos recentes atribuídos a Kahneman e Tversky demonstram que o processo de tomada de decisão do indivíduo pode ser fortemente influenciado por intuições,2 emoções e sentimentos. Conforme o apontado, a teoria desenvolvida pressupõe que o cérebro humano trabalha sobre uma lógica econômica que visa realizar o máximo de funções com o menor esforço cognitivo. Essa logica faz com que sejam criados padrões de comportamentos desencadeados por situações chave que nos colocam em uma espécie de piloto automático, reduzindo o grau de racionalidade de diversas ações com a criação de heurísticas e vieses.
Heurística pode ser definida como “um procedimento simples que ajuda a encontrar respostas adequadas, ainda que geralmente imperfeitas, para perguntas difíceis” .3 Quando, em razão de heurísticas, surge uma certa tendência de comportamento humano perante os julgamentos, pode-se falar em vieses.4
Nesse contexto, a Teoria da Análise Econômica do Direito teve pressupostos essenciais refutados com a demonstração de que “o ser humano nem sempre toma decisões que são ótimas, e que estão sujeitas a uma série de distorções do julgamento (vieses) e atalhos mentais muitas vezes simplórios, que, diante de problemas complexos, apresentam respostas singelas e automatizadas, entretanto, nem sempre corretas (heurísticas)”.5
Assim, a AEC vem passando por metamorfoses a fim de incorporar os desvios cognitivos ao seu estudo pela Análise Econômica Comportamental do Direito. No entanto, é importante salientar que ainda não foi formulada uma teoria completa e unifica que englobe as heurísticas e vieses com um mínimo de previsibilidade.
Não obstante, diversos vieses descobertos em estudos científicos estão sendo utilizados em microssistemas para criação políticas públicas, como a alteração da lógica da doação de órgãos com o consentimento presumido.
Países com consentimento presumido sobre a doação tendem a colher resultados mais satisfatórios para a política pública de doação. Por excessiva manutenção do estado inercial, eventuais doadores de órgãos nunca efetivariam a doação por não terem uma postura ativa acerca da afirmação expressa da intenção de doar. Logo, optam pela opção padrão, ou seja, não se manifestam e não efetivam a doação. Com simples ajustes na política de doação de órgãos, alterando o enquadramento noticioso (framing) do programa de doação, de forma a tornar todas as pessoas doadoras presumidas (opt-out), o número das doações aumentou significativamente.6
Quanto a essa utilização, existem diversos questionamentos relacionados a perspectiva paternalista da adoção de medidas de indução comportamental pelo estado e violação da autonomia individual do cidadão. Contudo, os países desenvolvidos já começaram a implementar as teorias comportamentais na elaboração de políticas públicas globais. Como exemplo, é possível citar a organização mundial denominada The Behavioral Insights Team (BIT), cujo o Governo britânico faz parte, destinada a propor políticas públicas de baixo custo e fácil adaptação para o público em geral.7
O debate sobre o comportamento humano é fundamental para a construção jurídica. A concepção comportamental adotada pela comunidade científica ou em ascensão no período de formatação das leis diz muito sobre sua abordagem e reflete diretamente no debate político cotidiano, gerando impacto em questões essenciais como o conflito penal entre abolicionismo e punitivismo. Á vista disso é interessante o questionamento constante sobre o paradigma de indivíduo do qual decorrem as escolhas normativas e a frequente ventilação do direito brasileiro com aspectos interdisciplinares.
____________________
Referências
________________________________________
1. FILHO, Paulo Sergio Ferreira. Análise Econômico-comportamental do direito versus análise comportamental do direito. Revista Quaestio Iuris. v. 12, n. 01, Rio de Janeiro, 2019, p.171-207. Disponível em: https://bit.ly/3nPQ8Lh. Acesso em: 04 nov. 2021.
2. Linguagem popular utilizada a fim de exemplificar as influências perceptíveis pelo público em geral.
3. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar; tradução: Cássio de Arantes Leite. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
4. (KAHNEMAN, 2012 apud FILHO, Paulo Sergio Ferreira. Análise Econômico-comportamental do direito versus análise comportamental do direito. Revista Quaestio Iuris. v. 12, n. 01, Rio de Janeiro, 2019, p.175. Disponível em: https://bit.ly/3nPQ8Lh. Acesso em: 04 nov. 2021.
5. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; DOMINGUES, Victor Hugo. Economia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, 2018 p. 462. Disponível em: https://bit.ly/3xrBjSn. Acesso em: 04 nov. 2021.
6. RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; DOMINGUES, Victor Hugo. Economia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, 2018 p. 464. Disponível em: https://bit.ly/3xrBjSn. Acesso em: 04 nov. 2021.
7. THE BEHAVIORAL Insights Team. Home. 2021. Disponível em: https://www.bi.team/. Acesso em: 04 nov. 2021.
AGUIAR, Bernardo Augusto Teixeira. A análise econômica do direito: aspectos gerais. Âmbito Jurídico. 2013. Disponível em: https://bit.ly/314NCbq. Acesso em: 04 nov. 2021.
OSMAN, Magda. Até que ponto somos controlados pelo inconsciente. BBC. 2021. Disponível em: https://bbc.in/32zYC16. Acesso em: 04 nov. 2021.
SALAMA, Bruno Meyerhof. Análise econômica do Direito. Tomo Teoria Geral e Filosofia do Direito, Edição 1, Abril de 2017. Disponível em: https://bit.ly/3oUM4sC. Acesso em: 04 nov. 2021.