In Onore Dei Patri: Um ensaio sobre Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Redenti

In Onore Dei Patri: Um ensaio sobre Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Redenti

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INTRODUÇÃO

Este ensaio é uma breve homenagem aos grandes mestres do Processo Civil italiano: Giuseppe Chiovenda, Francesco Carnelutti, Piero Calamandrei e Enrico Redenti. Cada um, à sua maneira, ajudou a formar a espinha dorsal da teoria processual moderna, com ideias que permanecem vivas, direta ou indiretamente, nos fundamentos do processo atual: Chiovenda, com sua precisão e preocupação com a sistematização do processo; Carnelutti, com sua inquietação e fôlego temático; Calamandrei, com seu espírito público, humano e sensível; e Redenti, com sua análise crítica e refinada.

A proposta aqui não é traçar uma análise exaustiva nem buscar interpretações inéditas. Trata-se de um exercício de memória e reconhecimento. Busco, com este texto, apresentar, em linhas simples e objetivas, os motivos pelos quais esses autores são tão relevantes e como suas contribuições continuam a ressoar na teoria, na prática e no ensino do Direito Processual Civil. Este texto é um dos resultados de um projeto que venho desenvolvendo no portal desde o ano de 2023: resgatar a vida e a obra de grandes processualistas, tornando o conteúdo acessível, atrativo e palpável a pesquisadores sobre o direito processual, inspirando-me, como forma de homenagem, naquilo que fez, pioneiramente no Brasil, o Prof. José Rogério Cruz e Tucci.

GIUSEPPE CHIOVENDA

Giuseppe Chiovenda nasceu em Premosello, comuna de Piemonte norte da Itália, no dia 2 de fevereiro de 1872. Filho de advogado (seu pai, Pietro Chiovenda), cursou Direito na Universidade de Roma, instituição que, mais tarde, viria a ser catedrático. Chiovenda desenvolveu afinidade com o estudo do direito romano, influenciado por Vittorio Scialoja, bem como ao direito tedesco (germânico), inclusive, aos estudos de Adolf Wach.

Após a sua formatura, depois de passar um período em algumas universidades alemãs, abre o seu escritório de advocacia e inicia a sua carreira docente em 1900, quando se inscreveu no concurso para livre docência, na Universidade de Modena. No ano seguinte, é aprovado em concurso para professor de Processo Civil e ordenamento jurídico da Universidade de Parma e, mesmo com esse vínculo, ministra um curso livre, de pós-graduação, na Universidade de Roma. Em 1903, é convidado para lecionar na Universidade de Bolonha. De Bolonha, é transferido à Nápoles, em 1905 e, no ano seguinte, é convidado para ocupar a cátedra da Universidade de Roma, La Sapienza, onde permaneceu até o seu falecimento em 7 de novembro de 1937, em Novara (norte da Itália), durante uma viagem à Milão.1

Entre os motivos que fazem Chiovenda ser aclamado no Processo Civil é a sua proposição sobre a ideia de ação (enquanto direito potestativo conferido pelo Estado), consubstanciando a sua ideia de que a jurisdição pode ser definida como sendo a função pertencente ao Estado que tem por objetivo “a atuação da vontade concreta da lei por meio da substituição, pela atividade de órgãos públicos, da atividade de particulares ou de outros órgãos públicos, já no afirmar a existência da vontade da lei, já no torna-la, praticamente, efetiva”.2

Embora não seja pacífico,3 é majoritário o posicionamento de que Giuseppe Chiovenda teria iniciado, a partir de sua célebre Prolusione di Bologna: L’azione nel sistema dei diritti, em 1903, um novo modelo de pensamento para o Processo Civil, refletido em uma escola processual genuinamente italiana, a qual recebeu o nome, por Francesco Carnelutti4, de sistemática (ou histórico-dogmática)5.

Em síntese, a inquietação central das suas investigações estava em construir conceitos para o processo com a maior precisão possível, preocupando-se com a parte geral do Processo Civil6, bem como com o processo de conhecimento, especialmente sobre a funcionalidade diferenciada do processo de conhecimento para a concretização de resultados distintos, isto é, “às diferentes funções processuais correspondem diferentes processos para suas realizações […] a intenção de purificar os processos de modo que cada qual só comporte a sua própria função, própria do momento histórico”7.

Chiovenda, il maestro, não se preocupou em aprofundar o desenvolvimento de assuntos que não fossem relacionados com o processo de conhecimento e com a parte geral do Processo Civil; aliás, Chiovenda é lembrado pela sua precisão com as palavras, desenvolvendo uma contribuição não tão volumosa (em comparação à Francesco Carnelutti, por exemplo),8 porém fixando standards do Processo Civil italiano que, ainda hoje, parecem intransponíveis – os temas não avaliados por Chiovenda, foram objetos de estudos de outros grandes nomes do direito italiano, curiosamente, debutados por muitos dos seus discípulos, como, e exemplificativamente, no processo de execução, por Enrico Tullio Liebman, e no cautelar, por Piero Calamandrei.

Embora o seu repertório de produções bibliográficas não seja extenso, é possível destacar três livros que tiveram grande impacto na construção do Processo Civil, (1) Lezioni di diritto processuale civile, (2) Principii di diritto processuale civile e (3) Istituzioni di diritto processuale civile. Por fim, entre as várias homenagens dedicadas ao maestro, uma que merece destaque a renomeação, em 1959, da sua cidade de nascimento para Premosello-Chiovenda.

FRANCESCO CARNELUTTI

Francesco Carnelutti nasceu em Udine, nordeste da Itália, na região Friuli-Venezia Giulia, próximo à Eslovênia, no dia 15 de maio de 1879. Cursou Direito na Universidade de Pádua, obtendo o grau de bacharel no final de 1900. Foi advogado, defensor público e professor de Direito em algumas Universidades, como a Universidade de Pádua, a Universidade de Milão e, em 1946, com o fim da Segunda Guerra Mundial, assumiu a cátedra de Direito Processual Penal na Universidade de Roma, permanecendo nela até a sua aposentadoria, aos 70 anos, e, no entanto, continuou contribuindo ativamente até pouco antes do seu falecimento. A sua produção científica é incomensurável, tendo não apenas contribuído para o direito italiano mas também desenvolvido pensamentos que alteraram paradigmas jurídicos, inclusive, sendo exportados, traduzidos e recepcionados em outros países, como é o caso do Brasil.9

Não existe consenso acerca da precisão de quantas contribuições foram escritas por Carnelutti durante a sua vida. O acordo entre os pesquisadores que revisitaram a sua trajetória aponta para o número que supera 1000 ensaios,10 abordando a maioria das áreas do Direito (além do Direito e Processo Civil, contribuiu em temas relacionados à teoria geral,11 filosofia e sociologia jurídicas, direito comercial e falimentar, Direito e Processo Penal etc.). Esse resultado é um reflexo direto de sua própria personalidade inquieta e vigilante, atenta à interlocução prática do Direito na sociedade.12

Sua aproximação com o Processo Civil ocorre a partir de 1914, quando começa a escrever a obra “La prova civile”, notavelmente finalizada em três meses para concorrer à vaga de professor extraordinário de Direito Processual Civil e Organização Judiciária da Universidade de Pádua. A dedicação, além de lhe render a publicação do livro no ano seguinte,13 também contribuiu para a sua aprovação em primeiro lugar no concurso, assumindo a cadeira e passando a contribuir principalmente com escritos sobre Processo Civil, área que indubitavelmente o fez ter reconhecimento internacional.14

É importante destacar que essa é a sua primeira fase dentro do Processo Civil, melhor dizendo, assim como ocorre com a maioria dos juristas que dedicam uma vida ao Direito, a sua linha de pensamento não é estável, mas sim passível de revisão e crescimento exponencial, de acordo com sua expertise ou projetos nos quais estava inserido. O destaque é feito porque, neste “preâmbulo” da sua caminhada, as preocupações de Carnelutti estão voltadas à metodologia do Processo Civil, rascunhando as primeiras bases da sua teoria geral do processo civil, posteriormente condensadas e revistas em todos os seus volumes do “Sistema del Diritto Processuale Civile”, projeto de décadas.15

Seu espírito genioso e postura pouco amigável, como amplamente descritos por aqueles que tiveram contato com ele em vida,16 eram sentidos na forma como construiu a sua teoria, colocando-se quase sempre como um antagonista jurídico. Isso não significa algo ruim, mas que Carnelutti apostava em outra forma de observar a dogmática processual, resultando na sua originalidade que o fez ter o seu grande reconhecimento. Um exemplo dessa afirmação é a sua grande contribuição sobre a teoria da lide no centro do processo, isso é, a ideia de justa composição da lide.

De forma pragmática e concisa, o que fez Francesco Carnelutti foi pegar a concepção de lide, na perspectiva romanística, inseri-la no bojo da teoria do processo, aperfeiçoando-a, então, com a sua realocação em posição central; daí a sua conclusão de que “o processo consiste, fundamentalmente, em levar o litígio perante o juiz, ou também, em desenvolvê-lo na sua presença”.17

Entre o seu vastíssimo repertório teórico, iniciado em 1908, ouso, exemplificativamente, pontuar algumas de maior expressão no Processo Civil, como: (1) “La prova civile”, publicada em 1915, pela Athenaeum; (2) “Lezioni di Diritto Processuale Civile”, publicada pela La Litotipo, sendo o primeiro volume em 1919 (reeditado em 1920 e 1921), o segundo em 1922 (reeditado em 1929), o terceiro em 1924, o quarto em 1925, o quinto (Cedam) em 1929, o sexto (Cedam) e sétimo (Cedam) em 1931 (reeditado em 1937); (3) “Studi di Diritto Processuale Civile”, publicado em 1925 (v. 1), em 1928 (v. 2) e em 1929 (v. 3 e v. 4, reeditados em 1939), pela Cedam; (4) “Progetto del Codice di Procedura Civile”, parte 1 e 2, publicadas em 1926, pela Cedam; (5) “Sistema del Diritto Processuale Civile”, pela Cedam, em 1936 (v. 1), em 1938 (v. 2) e em 1939 (v. 3); (6) “Intorno al progetto preliminare del Codice di Procedura Civile”, em 1937, pela Giuffrè; (7) “Lineamenti del Nuovo Processo Civile”, pela Università di Macerata, em 1940, (8) “Istituzioni del Nuovo Processo Civile Italiano”, pelo Foro italiano, em 1941 (v. 1, reeditado em 1956) e em 1943 (v. 2); e, para concluir a indicação de alguns livros (fora as centenas de artigos e ensaios não listados), (9) “Diritto e Processo”, pela Morano, em 1958.

O fato de Francesco Carnelutti não ter nutrido maior proximidade, tampouco amizade, com os outros patres do Processo Civil Moderno, Piero Calamandrei, Enrico Redenti e, principalmente, Giuseppe Chiovenda,18 em nada compromete sua justa e merecida marca como grande processualista, cravado no DNA da história jurídica como um dos maiores juristas de todos os tempos. Devo mencionar, a título conclusivo, que Carnelutti também foi componente vital para catapultar o cenário intelectual-processual da Itália com a cofundação ao lado de Giuseppe Chiovenda, da “Rivista di Diritto Processuale Civile”, em 1926 (renomeada para “Rivista di Diritto Processuale” a partir de 1946).

Também é importante mencionar o “Progetto Carnelutti”, reconhecimento originado da iniciativa de modernização do Codice di Procedura Civile italiano – sem esquecer, posteriormente, sua assídua participação na elaboração do Codice di Procedura Civile 1940 – após a Primeira Guerra Mundial, cuja contribuição no projeto foi tamanha que ficou assim reconhecido pelo próprio Ministro da Justiça Alfredo Rocco, sem prejuízo da participação de outros processualistas renomados como Mortara, Chiovenda e Cammeo.19 Se a frase “uma vida em Direito” pertence a alguém, certamente essa pessoa é Carnelutti: inquieto e disposto a contribuir ativamente com o Direito até pouco tempo antes do seu falecimento, em Milão, no dia 8 de março de 1965, aos 86 anos.

PIERO CALAMANDREI20

Piero Calamandrei nasceu em Florença, no dia 21 de abril de 1889. Era filho de Rodolfo Calamandrei (advogado, político e professor livre-docente de direito comercial da Università degli Studi di Siena) e de Laudomia Pimpinelli. Calamandrei obteve o grau de bacharel em Direito pela Università di Pisa, em julho de 1912, com a “tese de láurea” (“equivalente” ao TCC) intitulada “Chiamata in garantia e giurisdizione”.

Embora seja difícil identificar o principal motivador do profundo apreço de Calamandrei pelo Direito, diante da complexidade teórica entrelaçada com narrativas humanísticas (muito à frente do seu tempo) em seus ensaios, especialmente a ideia de Justiça e a sua função no e com o Direito, não há como negar a influência das atividades do seu pai e, também, do seu mentor, Prof. Carlo Lessona.

Cronologicamente, de Pisa, Calamandrei se mudou para Roma a fim de aperfeiçoar os seus conhecimentos, ocasião em que foi aluno de Giuseppe Chiovenda. Neste momento da narrativa sobre a vida e a obra do processualista fiorentino, não podemos deixar de lado que, na história, entre 1914 e 1918, houve a Primeira Guerra Mundial, da qual fez parte a Itália (no bloco dos “Aliados”).21

Calamandrei se alistou, voluntariamente, no 218º Regimento de Infantaria, ascendendo, posteriormente, ao posto de tenente-coronel (sendo um dos primeiros soldados do exército italiano que adentrou na então reconquistada cidade de Trento, localizada, hoje, na região norte da Itália).

Durante o período da Primeira Guerra Mundial, inclusive, participou de seu primeiro concurso universitário – o ano era 1915, aos seus 26 anos), concorrendo para a cátedra de Processo Civil da Università degli Studi di Padova (e entre os seus concorrentes, vale mencionar, estava Francesco Carnelutti).

Além de ter exercido a advocacia durante toda a sua vida, foi também professor em diversas universidades italianas. Entre 1915 e 1918, foi professor de Processo Civil da Universidade de Messina, sendo chamado, sequencialmente, para lecionar na Universidade de Modena e Reggio Emilia, entre os anos de 1918 e 1920. Foi também professor da Universidade de Siena (1920 e 1924) até ingressar como docente de Processo Civil e Direito Constitucional na Università degli Studi di Firenze, exercendo a cátedra da Facoltà di Giurisprudenza até o seu óbito (em 1956).22

A partir de 1924, foi redator-chefe da (à época, recém-fundada) Rivista di Diritto Processuale Civile (a convite dos seus diretores: Francesco Carnelutti e Giuseppe Chiovenda), onde foi, em 1927, promovido ao cargo de codiretor.

Ao lado de Francesco Carnelutti e Enrico Redenti, integrou a subcomissão de reforma do Código de Processo Civil italiano, sendo destacado como o grande revisor e defensor do Codice di Procedura Civile (italiano), de 1940 (ainda em vigência), inclusive, responsável pela redação da mensagem, dirigida ao Rei da Itália, que acompanhava a codificação.

Exerceu o cargo de Reitor da Università degli Studi di Firenze entre os anos de 1944 e 1947. Durante esse mesmo período em que foi Reitor da Universidade de Florença, Calamandrei foi representante do Partito d’Azione na Assembleia Constituinte para a aprovação da primeira Constituição Democrática da Itália (o que lhe rendeu o respeitável apelido, entre os seus alunos, de “a Constituição que caminha”). Em 1945, fundou e foi diretor do periódico (político-literário) “Il Ponte”. De 1947 até o seu falecimento, Calamandrei foi presidente do Conselho Nacional Forense.23 Também, foi membro da prestigiada Accademia dei Lincei e vice-presidente da Associazione italiana fra gli studiosi del processo civile.

Algumas outras atividades de Calamandrei na política que merecem destaque foram a sua eleição para deputado, em 1948, pela Unione Socialista (1948 e 1953) e, em 1953, foi um dos fundadores do partido Unità Popolare.

Proferiu incontáveis palestras e conferências e escreveu inúmeros artigos, livros (muitos traduzidos para diversos idiomas – inclusive, para o português), contos, como exemplificativamente: (1) “La chiamata in garantia” (1913); (2) “Limiti fra giurisdizione e amministrazione nella sentenza civile” (1917); (3) “L’avvocatura e la reforma del processo civile” (1920); (4) “Governo e magistratura” (1921); (5) “Sulla struttura del procedimento monitorio nel diritto italiano” (1923); (6) “Il processo come situazione giuridica” (1927); (7) “Studi sul processo civile” (1930 e 1934); (8) “Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari” (1936); (9) “Istituzioni di diritto processuale civile secondo il nuovo codice” (1941, 1943 e 1944); (10) “Elogio dei giudici scritto da un avvocato” (1959).

Em sede de fechamento, algumas curiosidades sobre o maestro fiorentino que merecem espaço neste texto. Nas horas vagas, para passar o tempo, apreciava a pintura e registrava alguns cenários da encantadora região da toscana. Trabalhou gratuitamente e exaustivamente no auxílio aos perseguidos políticos (da legislação racial fascista, do período ditatorial de Mussolini), fruto da intolerância e do autoritarismo. Detalhe, Piero Calamandrei realizava essa (e outras) boa ação – arriscando a sua vida, a de sua família e a de seus conhecidos, trocando cartas com outro grande processualista: Eduardo J. Couture, com o objetivo de realocar na América do Sul os profissionais que eram alvos de perseguição política na Itália – sem pretensão de visibilidade; vale a reflexão.

Faleceu em Florença, no dia 27 de setembro de 1956, aos 67 anos. Embora fosse considerado um homem virtuoso de poucos amigos íntimos, possuía uma excepcional capacidade de indignação, especialmente se alguém que ele admirava fosse envolvido em algo que considerava injusto. Piero Calamandrei, além de merecer o seu espaço no rol de “grandes processualistas”, merece, de igual forma, espaço no rol de “grandes pessoas da história”.

Sua vida foi marcada por muito trabalho e pela luta por um contexto democrático e menos “injusto” (entre aspas para não adentrarmos no conceito do que é “justiça”, visto não ser o momento e nem o espaço para essa discussão). Deixa, além de saudade, o legado de alguém que realmente merece ser considerado como um maestro, um farol para guiar as atuais e futuras gerações. Quiçá, a vida e a obra de Calamandrei nos ensine um pouco mais sobre como “levamos” as nossas vidas, quais são as nossas prioridades, quais são as nossas causas e qual é o nosso propósito nesse finito e breve tempo que chamamos de vida.

ENRICO REDENTI

Enrico Redenti nasceu no dia 15 de dezembro de 1883, em Parma, uma comuna localizada no norte da Itália, na região da Emilia-Romanha. Filho de Alberto Redenti e Lídia Bissoni, seu pai também foi advogado e professor de Direito – lecionou na área do Direito Civil na Universidade de Parma. Enrico Redenti perdeu o pai em 1899, quando tinha entre 17/18 anos, e sua mãe não poupou esforços nem recursos financeiros para proporcionar ao jovem acadêmico, que estava em seu primeiro ano na Faculdade de Direito da Università degli Studi di Parma, a vivência em Roma e a possibilidade de transferência do curso para a Università degli Studi di Roma (“La Sapienza”).24

Se pelo lado paterno Redenti havia sido influenciado a seguir a carreira jurídica, pelo lado materno, houve a possibilidade de ter contato com gigantes do Direito italiano e cravar indiscutivelmente o seu nome na história jurídica. Em La Sapienza, foi aluno de grandes juristas como Vittorio Scialoja, mentor de Giuseppe Chiovenda e grande estudioso do direito romano, Vicenzo Simoncelli, quem mais tarde viria a ser o seu orientador na sua pesquisa de conclusão Magistrati del lavoro, e Cesare Vivante, notório especialista em Direito Comercial e antigo amigo da família, que adotou Redenti como auxiliar quando o jovem cursava o terceiro ano da faculdade.25

Com a defesa da sua tese de láurea, colou grau em 1904 e imediatamente após a sua formatura começou a exercer a advocacia, contudo, sem deixar o apreço pelos seus estudos entre as estruturas da universidade: em 1905, aperfeiçoou o seu trabalho de láurea e o publicou na Rivista di Diritto Commerciale, com o título Il contratto di lavoro nella giurisprudenza dei probiviri; em 1906, seguindo a linha da sua pesquisa, publica o livro Massimario della giurisprudenza dei probiviri. Justamente nesse ano, a La Sapienza teve uma reformulação no quadro docente, incluindo a vinda de Giuseppe Chiovenda para preencher a cátedra de Direito Processual Civil, oportunizando a aproximação dos patres e o incentivo de Chiovenda a Redenti para dar seguimento à sua pesquisa em relação ao Processo Civil, sobretudo no campo da litigiosidade em situações de pluralidade26 de partes.27

Além de notório advogado, Enrico Redenti foi um professor de carreira e de vida. É extremamente difícil dissociar Redenti da academia, afinal, durante toda a sua vida, da mocidade à velhice, participou ativamente de aulas e pesquisas. Cronologicamente, iniciou a sua vida docente em 1907 (23/24 anos) como assistente na Università di Camerino, lecionando a disciplina de procedura civile e ordinamento giudiziario. No ano seguinte, além da sua promoção a professor extraordinário de Processo Civil e de começar a ministrar as aulas de direito comercial, conquistou a livre-docência na Università di Roma.

Em 1909, presta e vence o concurso para catedrático de Direito Processual Civil da Università degli Studi di Perugia e logo na sequência, em 1910, concorre às cátedras das Università degli Studi di Messina e Università degli Studi di Parma, vencendo ambos os concursos e optando pelo ingresso, em 1911, na Universidade de Parma, instituição na qual se tornou professor ordinário em 1915.

No ano seguinte, é convidado a ocupar a cátedra vaga da Università di Bologna, porém, iniciando o magistério apenas em 1919 diante da interrupção de sua carreira em razão de sua participação na Primeira Guerra Mundial. Ainda com convites de Nápoles e de Roma, preferiu ficar em Bolonha até a sua aposentadoria, o que não o impediu de exercer, paralelamente, a docência em direito comercial na Università Bocconi, em Milão.

Além de todos os êxitos acadêmicos, exercendo concomitantemente a advocacia, manteve a sua produção científica ativa e, em termos de mérito, foi membro e presidente da importante Associazione italiana fra gli studiosi del Processo Civile (AISPC), foi cofundador da Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, foi membro da Accademia Nazionale dei Lincei e participou ativamente de todas as comissões que precederam a promulgação do Código de Processo Civil italiano de “1940”.28

Enrico Redenti faleceu em 1º de janeiro de 1963, em Bolonha. Entre as homenagens recebidas, a Prefeitura de Bolonha dedicou o nome para uma via,29 isto é, uma das ruas da cidade, localizada ao lado do Giardini Margherita Bologna, em zona nobre da cidade, também, em 1966, é instituída a Fondazione “Enrico Redenti”, a qual anualmente confere um generoso prêmio em dinheiro à melhor monografia italiana de Direito Processual Civil. Além de inúmeros discípulos e admiradores (Salvatore Satta e Tito Carnacini, por exemplo), deixou inúmeros contributos teóricos atemporais, muitos dos quais merecem (e devem) ser relidos até a atualidade.30

Durante toda a sua vida, Redenti publicou quase um centenário de estudos (entre opiniões, artigos e livros). É curioso observar que, embora a veia pulsante de Enrico Redenti pelo Direito Processual Civil, os seus estudos não estavam restritos à dogmática do processo, quando também encarou diversos temas, em metodologias diversificadas, sobretudo em viés empírico, com a inquietação genuína de oferecer respostas aos problemas que observava no Direito italiano.

Além dos estudos já mencionados durante o texto, cito exemplificativamente alguns estudos relativamente interessantes por ele desenvolvidos no direito processual: (1) Il giudizio civile con pluralità di parti, publicado pela Giuffrè em 1960 (originalmente publicado pela SEL, em 1911), (2) Intorno al concetto di giurisdizione, publicado pela editora Jovene, em 1916, na obra “Studi giuridici in onore di Vincenzo Simoncelli”; (3) Corso di procedura civile e ordinamento giudiziario, publicado pela La Grafolito em 1932; (4) Profili pratici del diritto processuale civile, publicado pela Giuffrè em 1938; (5) L’umanità nel nuovo processo civile, publicado na Rivista di diritto processuale civile em 1941; (6) Problemi di competenza in Cassazione, publicado na Rivista di diritto processuale civile em 1943; (7) e, evidentemente, seu mais significativo contributo o Diritto Processuale Civile, pela Giuffrè, em três volumes, entre os anos de 1947-1954.

É difícil apontar um “tema central” ou de maior apreço por Redenti. Há defensores no sentido de que seria a preocupação com a pluralidade de partes no processo, outros que na verdade a sua preocupação maior era fora do Processo Civil e mais relacionada com o direito comercial etc. Entretanto, acredito que dada a extensão de sua produção, seu empenho em analisar, com precisão, uma gama de temas sem segmentá-los, e com visões, muitas vezes, antagônicas às de seus pares, sem esquecer da sua grande contribuição para o sentido de “causa”,31 sua preocupação maior estava na aplicação e qualificação de toda a ciência jurídica, limitando-se a contribuir (como naturalmente acontece com cada pesquisador) nas áreas que mais dominava.32

Discordo daqueles que subestimam Enrico Redenti; mais do que um grande jurista, foi um grande professor e pesquisador, tem seu posto cravado entre os quatro patres do Processo Civil Moderno e merece todos os louros de ser reconhecido como um grande processualista.33

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este ensaio não teve a pretensão de esgotar o pensamento dos quatro mestres aqui homenageados, mas de traçar, em pinceladas conscientes, um panorama que permita reconhecer a magnitude de suas contribuições para o direito processual, sobretudo o Processual Civil. Ao revisitarmos as trajetórias de Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Redenti, reencontramos não apenas teorias sólidas e estruturas complexas, mas também posturas existenciais marcadas por inquietação intelectual, compromisso humano e sensibilidade jurídica.

Cada um, à sua maneira, entregou à ciência processual algo mais do que fórmulas e esquemas. Entregou inquietações, esperanças e, sobretudo, uma ética da construção jurídica voltada ao humano. Por isso, falar desses patres do Processo Civil é também relembrar que o estudo do Direito não se sustenta sem memória, sem afeto e sem crítica. Que a leitura e o resgate de suas obras, ainda que parcial e provisória como toda leitura, nos inspire a olhar o Direito Processual Civil não como um fim em si mesmo, mas como um campo de lutas, escolhas e responsabilidades. E que os ecos desses mestres sigam iluminando os caminhos de quem se dedica, com seriedade e afeto, à ciência do processo.

In onore dei patri.

 

Referências e Notas

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1. TUCCI, José Rogério Cruz e. Giuseppe Chiovenda: vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2018.

2. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969. v. 2: as relações processuais, a relação processual ordinária de cognição. p. 3.

3. Por todos, a polêmica envolvendo as acusações de Franco Cipriani em: CIPRIANI, Franco. Il 3 febbraio 1903 tra mito e realità. Rivista trimestrale di Diritto e Procedura Civile, v. 57, n. 4, p. 1123-1137, 2003. Sobre os argumentos ácidos deduzidos por Cipriani em seu ensaio, bem como toda a polêmica envolvendo esse tema, recomendo: CABRAL, Antonio do Passo. Alguns mitos do Processo (I): a contribuição da prolusione de Chiovenda em Bolonha para a teoria da ação. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, n. 51, p. 3-14, 2014.

4. CARNELUTTI, Francesco. Metodi e risultati degli studi sul processo in Italia. Il Foro italiano, v. 64, p. 73-84, 1939. p. 76.

5. RAGONE, Álvaro Pérez. Algunas reflexiones sobre Chiovenda y su legado para Latinoamérica: Laudatio. Revistas IUS ET VERITAS, n. 55, p. 162-175, 2017. p. 165. Também nomeado dessa forma por: MITIDIERO, Daniel. O processualismo e a formação do Código Buzaid. In: Tellini, Denise Estrella; JOBIM, Geraldo Cordeiro; JOBIM, Marco Félix. (Orgs.). Tempestividade e efetividade processual: novos rumos do Processo Civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010. p. 109-130. p. 113.

6.  CAPONI, Remo. Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali. Civil Procedure Review, v. 1, n. 2, p. 42-57, 2010. p. 55.

7. MITIDIERO, Daniel. O processualismo e a formação do Código Buzaid. In: Tellini, Denise Estrella; JOBIM, Geraldo Cordeiro; JOBIM, Marco Félix. (Orgs.). Tempestividade e efetividade processual: novos rumos do Processo Civil brasileiro. Caxias do Sul: Plenum, 2010. p. 109-130. p. 113.

8. Por todos, ver o elogio de: ORLANDO, Vittorio E. La teoria generale del diritto di Francesco Carnelutti. Rivista internazionale di filosofia del diritto, p. 289-329, 1942.

9. TUCCI, José Rogério Cruz e. Francesco Carnelutti: vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2017.

10. TARELLO, Giovanni. Profili di giuristi italiani contemporanei: Francesco Carnelutti ed il progetto del 1926. In: ______. Materiali per uma storia della cultura giuridica. Bologna: Il Mulino, 1974. v. 4. p. 497-598.

11. Cf. AVITABILE, Luisa. I principi del diritto: Uma riflessione com Francesco Carnelutti. L’Ircocervo, v. 22, n. 1, p. 41-49, 2022.

12. FAZZALARI, Elio. L’opera scientifica di Francesco Carnelutti. Rivista di Diritto Processuale, v. 22, p. 197-202, 1967.

13. Cf. CARNELUTTI, Francesco. La prova civile: Parte Generale: Il concetto giuridico della prova. Roma: Athenaeum, 1915.

14. CASTILLO, Niceto Alcalá-Zamora e. Francesco Carnelutti. In: CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. 2. ed. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. v. 1: Introdução e função do Processo Civil, apêndice Código de Processo Civil Italiano 1940. p. 5-19.

15. É curioso observar o quão meticuloso era Francesco Carnelutti ao trabalhar e refletir sobre os seus próprios conceitos. As reedições do “Sistema”, ampliando e atualizando o conteúdo, mais tende a ser uma revisão de sua própria formulação, inclusive, esse espírito crítico da sua “primeira fase” é uma marca que o acompanhou até o final da sua vida, como podemos ver em outras produções, como no seu “Teoria Geral do Direito”, em que logo no prefácio, ele retrata a importância dessa obra para revisar alguns pontos estabelecidos na sua sistematização. CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. Tradução de A. Rodrigues Queiró e Artur Anselmo de Casto. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2006. p. 19-23.

16. DINAMARCO, Cândido Rangel. Polêmicas do Processo Civil. Doutrinas Essenciais de Processo Civil, v. 1, p. 523-542, 2011.

17. CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. 2. ed. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo: Lemos e Cruz, 2004. v. 2: Composição do processo. p. 25. “Isso explica o estreitíssimo contato entre as noções de processo e litígio, e a facilidade e o costume de confundi-las entre si. A distinção consiste em que o processo não é o litígio, e sim que o reproduz ou o representa perante o juiz ou, em geral, perante o órgão judicial. O litígio não é o processo, mas está no processo; tem de estar no processo se o processo tem de servir para compô-lo. Daí que entre processo e litígio se interponha a mesma relação que entre continente e conteúdo”.

18. Retratação: Na minha nova obra, afirmei que Francesco Carnelutti foi aluno/discípulo de Giuseppe Chiovenda. O ponto está incorreto e será objeto de correção na próxima edição. Diferentemente de Calamandrei e Redenti, que de fato foram discípulos de Chiovenda, Carnelutti não possuía uma ligação acadêmica direta com Chiovenda. A origem da minha confusão está na leitura desatenta aos primeiros ensaios de Carnelutti, no início da sua trajetória, os quais partem de inegáveis fontes chiovendianas, todavia, progressivamente, os patres acabam se distanciando pelas suas divergências (teóricas e de personalidade), todavia, mantendo o respeito mútuo, sobretudo de Carnelutti a Chiovenda, inclusive, tendo o reconhecido como grande nome do período sistemático do Processo Civil italiano e o homenageou mais de uma vez em seus ensaios, como no capítulo “Diritto e processo nela teoria delle obbligazioni”, escrito para a obra “Studi di diritto processuale in onore di Giuseppe Chiovenda” (1927), e no “artigo” “Giuseppe Chiovenda (necrologico)”, publicado na “Rivista di Diritto Processuale Civile” (1937). O ponto de retratação a que me referido está localizado em: MÖLLER, Guilherme Christen. Processo, jurisdição e sistema de justiça multiportas: Entre o Brasil e a Itália. Londrina: Thoth, 2025. p. 90/91.

19. TUCCI, José Rogério Cruz e. Francesco Carnelutti: vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2017. p. 67-76.

20. As informações disponibilizadas neste tópico foram colhidas majoritariamente durante o meu soggiorno na Università degli Studi di Firenze, a partir de conversas com ex-alunos e discípulos de Calamandrei.

21. TUCCI, José Rogério Cruz e. Piero Calamandrei: Vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012. p. 19.

22. TUCCI, José Rogério Cruz e. Piero Calamandrei: Vida e obra; contribuição para o estudo do processo civil. Ribeirão Preto: Migalhas, 2012. p. 20/21.

23. CIPRIANI, Franco. Piero Calamandrei e la procedura civile: Miti, legende, interpretazioni, documenti. Napoli: ESI, 2007. p. 226.

24. TUCCI, José Rogério Cruz e. Enrico Redenti: vida e obra: contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2019.

25. FAZZALARI, Elio. Enrico Redenti nella cultura giuridica italiana. Revista de Direito Processual Civil, v. 3, n. 5, p. 85-99, 1962.

26. CIPRIANI, Franco. Alla scoperta di Enrico Redenti. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, v. 60, n. 1, p. 75-125, 2006.

27. TUCCI, José Rogério Cruz e. Enrico Redenti: vida e obra: contribuição para o estudo do processo civil. São Paulo: Migalhas, 2019.

28. Uma observação extremamente importante para aqueles que não conhecem ou pouco conhecem sobre o âmbito legislativo processual italiano. O Código de Processo Civil italiano, ainda vigente (embora reeditado por legislações especiais ao longo dos anos), foi promulgado em 1940, mas entrou em vigência apenas em 1942. Por isso, é normal encontrar referências a ele como Código de 1940 ou Código de 1942. É o mesmo Código e as duas formas estão corretas, variando apenas a opção daquele que o menciona (ou seja, 1940 se se opta pela data da promulgação ou por 1942 se se opta pela data de vigência). Particularmente, refiro-me a ele como Código de 1940 – a lógica do CPC/2015 (e não CPC/2016, por exemplo).

29. Aos que tiverem curiosidade, pesquisem por “Via Enrico Redenti, Bologna (BO), Italia – 40137”.

30. VELLANI, Carlo. Enrico Redenti. Treccani, v. 86, 2016. Disponível em: link. Acesso em: 9 maio 2025.

31. FAVERO, Gustavo Henrichs. Breve história semântica de causa em juízo: A contemporaneidade do pensamento de Enrico Redenti. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 23, n. 2, p. 539-564, 2022.

32. CIPRIANI, Franco. Per la storia del pensiero giuridico moderno: Scritti in onore dei patres. Milano: Giuffrè, 2006.

33.  CARNACINI, Tito. La vita e le opere di Enrico Redenti: Discorso commemorativo letto nell’aula magna dell’Università di Bologna il 25-1-1964. Milano: Giuffrè, 1964.

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