Pensando em escrever algo para esse mês de fevereiro, que começa depois de um longo e chuvoso janeiro, decidi tratar sobre duas questões que me incomodaram e me provocaram a refletir, não pura e simplesmente com a intenção de gerar uma opinião, mas de percorrer um raciocínio filosófico com vistas a dar razões e delimitar conceitos.
Por serem questões que individualmente merecem atenção, preferi dividir a exposição em dois textos. Passemos ao primeiro incômodo.
A primeira questão, a qual pode ser também colocada sob perspectiva temática, haja vista não tratar-se de algo trivial, diz respeito ao uso que se dá na cotidianidade da palavra democracia. Afinal, o que se pretende, ou melhor, o que se pensa e se entende quando se fala em democracia, ou, ainda, em ambientes de discursos empolados, em Estado Democrático de Direito? Faço tal pergunta, pois, por vezes, ao observar a cotidianidade da minha própria cidade, infelizmente não consigo apreender essa Democracia de lírios, de plena manifestação social e individual, onde são realmente respeitados os direitos e as garantias individuais, e onde cada cidadão, no exercício da sua vida política, não reservada a ocupação de cargos públicos, pode se realizar enquanto indivíduo, enquanto parte de um contexto efetivamente democrático.
Me parece, e chamo também a reflexão o leitor, que há muito a palavra, a ideia de democracia, não só enquanto regime político, mas enquanto norte institucional, jurídico e mantenedor de uma cidadania que ultrapassa o voto, se esvazia desde a promulgação da Constituição Cidadã. Digo isso, pois, ao que prece a Democracia, essa ideia idealizada, com o perdão do pleonasmo, ainda se mantem restrita ao texto, não tendo encontrado espaço na realidade, numa vontade genuína de quebra de correntes, de abolição do jugo do autoritarismo populista.
É, sem exagero, uma abstração, uma palavra bonita de tom sofisticado, acolhida por cidadãos de bem, políticos e sobretudo pela imprensa, quando lhes é conveniente. Hoje, assim como nos penosos anos de pandemia, em que a palavra ciência passou a ser um selo de credibilidade de determinados discursos, a democracia é um jargão a serviço de interesses partidários, ideológicos e marqueteiros, suscitada muito distante dos direitos e garantias fundamentais, da dignidade da pessoa humana, do contraditório, da isonomia, da ampla defesa e principalmente do devido processo legal.
Caminhar para essa desassociação da democracia e dos princípios que lhe são basilares, e que por sua vez resguardam e asseguram a sua existência, é fortalecer um contexto de discriminação, de perseguição, de silenciamento, indo ao encontro de uma ditadura. Para cair nessa armadilha, nem precisamos de um presidente lunático, que inferniza uma ema, lhe forçando a tomar cloroquina, basta que passemos a enaltecer juízes, desembargadores e Ministros, que na sua discricionariedade, decidem de forma populista e autoritária.
Tal postura alinhada a uma pretensa defesa da democracia, pelo contrário a fragiliza, tornando-a produto da arbitrariedade e indiferente a união de vozes em prol de um mesmo objetivo institucional e político, dirigido a pólis e a coisa pública.
Talvez o núcleo de toda essa problemática seja a forma equivocada com que se percebe a autoridade jurisdicional e a falta de delimitação do que se pretende por democracia. Esse quadro favorece um ambiente ditatorial e de extrema insegurança jurídica, em que as regras são firmadas e flexibilizadas conforme interesses privados, por vezes de caráter publicitário, por vezes com o propósito de acumular poder.
Nesse sentido, lembro-me do que fala Platão e Max Weber ao chamarem a atenção para duas figuras que aparentemente insistem em protagonizar e dar as cartas na trama da estória político-social brasileira. O Tirano, personificado nos cargos eletivos, tem por característica a desconfiança e a temeridade quanto a usurpação de seu poder, não a toa espelhando o sentimento do próprio povo que o consagrou como tal. O Carismático, enquanto figura idolatrada, enquanto modelo de autoridade, de juízo, seja pelo que faz, seja pela sensação quase que mística que passa aos que consentem com o jugo, dirige a vida alheia sob os auspícios do bem, da moral, do interesse público.
Como então confrontar essa dinâmica de conceitos indeterminados, abertos, de uma democracia que é apenas discurso, mas que, nem assim ocupa uma dimensão no real, na prática.
Diante disso, o incômodo não pode ser tão somente uma insatisfação, uma reclamação infantil, mas uma fagulha para a ação. Fecho então, a exposição desse primeiro incômodo, objetivando instigar a reflexão. No próximo texto conversaremos sobre privacidade, Chatpt e as repercussões jurídicas e filosóficas da confusão entre vida pública e privada na era dos algoritmos.