Incômodos do cotidiano – Parte 2 – Em busca da emancipação do “ser” humano

Incômodos do cotidiano – Parte 2 – Em busca da emancipação do “ser” humano

ai-technology-brain-background-digital-transformation-concept

Seguindo a exposição do texto anterior, em que a partir de um exercício reflexivo foi posto em discussão o esvaziamento da palavra democracia na contemporaneidade, visto que esse termo é usado em demasia, sem sentido preciso, mas subordinado a concessões, passo hoje, a explicitar mais um incômodo que em certa medida guarda relação com tal tema.

Os anos de 1961 e 1969  foram marcantes para história humana e para relação ser humano e tecnologia.  Se aventurar pelo espaço, como o cosmonauta Iuri Gagarin fez, assim como de forma ambiciosa pisar na Lua como fez Armstrong, representou um salto tecnológico para a humanidade. Graças a inteligência e perspicácia imaginativa humanas, o ser humano se aventurou numa expedição estelar. Rompendo a fronteira final, alcançando o espaço, o “homem” potencializou a técnica, e lançou luz, mediante a experiência, sobre a insignificância do ser humano perante a própria Terra e o Universo.

A inteligência humana, performada em uma máquina, um computar para ser mais preciso, finalmente nos permitiu saber que a Terra é azul, e que o terreno da Lua não se tratava de queijo.

Um computador corpulento, muito maior que o notebook que você leva na mochila, ou o celular que carrega no bolso, auxiliou essa proeza humana.

Mesmo antes desses eventos, o computador demonstrava grande potencial. Desde de Turing, a máquina vem evoluindo para além do aspecto físico, se voltando especialmente para o processamento de dados, os quais hoje em dia, vão desde informações do cotidiano até fórmulas matemáticas.

Dirigindo-se cada vez mais a mobilidade e a funcionalidade do dia a dia do ser humano, hoje, usar uma tecnologia dessas não importa mais em reservar grandes salas para que que elas possam operar. Ao contrário da máquina que auxiliou o homem a chegar ao espaço e a pisar na lua, hoje temos pequenos e portáteis aparelhos que ocupam nossas vidas e nossas mentes incessantemente

O celular como conhecemos, revolucionou o mundo da tecnologia, e as sociedades em seus mais variados setores. A praticidade implicada em tais ferramentas, propiciou o conhecer o “universo” mais uma vez, ampliando o horizonte do mundo, conectando cidades, sociedades, culturas, indivíduos num piscar de olhos.

Porém por mais absurda que seja a quantidade de informações, de livros, notícias, aplicativos, de possibilidades ao nosso alcance, ainda estamos na superfície. Nublamos o pensamento com o uso da máquina ao sermos por ela conduzidos. De ser, passamos a coisa e a máquina se apropria e dirige os caminhos pelos quais sequer temos a liberdade de escolha para trilhar.

A liberdade, assim como a privacidade são obrigatoriamente legadas a indiferença, em que pese serem as chaves para que se possa ter acesso a boa parte do que está na rede.

O indivíduo humano é absorvido pela máquina, e a máquina se realiza, se apropria em conta gotas da atenção, do interesse, minando a reflexão, a vontade de investigação e a potência do aparato cognitivo de produzir conhecimento, de buscar e dar razões de forma genuína.

O instrumento instrumentaliza a vida e as ideias do mestre. Da calculadora ao chat GPT, do progresso a armadilha. A sensação de êxtase da potente eureka, e o inconformismo do só sei que nada sei, vão se diluindo com o poder conferido a coisa.

Por mais tecnológicos que sejam, os aparelhos e as ferramentas que usamos, continuamos em certa medida no loop dos tempos modernos, a significação do ser humano e seu próprio significado se dirigem a manutenção de algo que lhe impele, sem descanso a repetição, a uma produção inócua, sem sensibilidade e sem sentido.

Descer feeds o dia inteiro e pedir para que um programa faça o seu trabalho de escola ou de faculdade é empobrecer a mente e fortalecer uma coisa, que sequer é possível colocar em perspectiva o quanto pode se desenvolver a ponto de considerar o ser humano obsoleto. Sem querer ser o pessimista, ou mesmo um lunático da teoria da conspiração, conjecturando um cenário em que a skynet surge e tenhamos que lidar com o Schwarzenegger, o exercício reflexivo que convido a fazer desagua numa questão mais sensível e mais profunda do que o olhar para um futuro tecnicista.

Dirijo o pensar ao aspecto subjetivo, a condição humana enquanto espécie capaz não só de pensar, imaginar, e elaborar o plano ficcional, mas enquanto seres que permeiam a contradição, que a todo tempo significam e simbolizam o mundo a sua volta. Negar isso, deixando máquinas e programas “pensarem” em nosso lugar, é desfazer-se de algo, de uma potência, de uma possibilidade de melhorarmos, não como sociedade, longe disso, mas como indivíduos, como pessoas, que na individualidade cotidiana se colocam sob uma perspectiva ética de integridade intelectual, de coerência entre o pensar e o agir.

Não se trata, todavia, de banir a tecnologia, haja vista ser parte da história e revolução cognitiva humana, mas sim de adequar o uso desses mecanismos com o desenvolvimento moral, social, político e intelectual do ser humano. Não ter isso em conta é o mesmo que saber do fogo, mas não ter sabedoria para domá-lo e controlá-lo.

É preciso, pois, ter consciência de que as máquinas, e mais contemporaneamente, assistentes virtuais como ChatGPT, imprimem conhecimento, não o produzem e não repercutem em seus mecanismo a angústia da dúvida e o constante exercício de percorrer o âmago do “subjetivismo”, da contradição e da complexidade do ser, dos entes e do cosmos.

Tomar então, as rédeas da vida, nos emanciparmos da dependência cognitiva da coisa sem pensamento, talvez seja a saída para se trilhar um caminho de lucidez intelectual, que não comporta em mera reprodução lógica-matemática, mas que se dá pela íntima relação do sensível com o inteligível.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio