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Introdução ao Tribunal Multiportas

Tribunal Multiportas

INTRODUÇÃO

O tribunal multiportas é um assunto crescente no direito brasileiro, sobretudo na sua relação com o Processo Civil, embora também seja explorado para outras áreas, como a penal,1 por exemplo. Trata-se de um instituto estrangeiro que foi bem-recepcionado pelo Brasil. O tema não é novo, afinal, teve ampla difusão ao período do anteprojeto do CPC e, agora, está ganhando destaque sob enfoque sistemático. A proposta deste breve ensaio consiste em apresentar algumas notas sobre a sua origem, o seu desenvolvimento internacional, a sua recepção pelo Brasil e as novas articulações projetadas para ele, servindo, este material, como uma espécie de (breve) introdução ao assunto.

IDEIA E ORIGEM DO MULTI-DOOR COURTHOUSE SYSTEM

No Brasil, embora a essência seja convergente, o tribunal multiportas adquiriu conotação diversa. Originalmente, essa teoria foi apresentada por Frank Sander, falecido professor da Universidade de Harvard, na década de 70, com o objetivo de sinalizar que determinadas categorias de conflitos poderiam ser resolvidas por formas resolutivas específicas, distintas em relação ao processo judicial – importante sinalizar que se fala, aqui, do sistema jurídico dos Estados Unidos da América, no período compreendido entre as décadas de 60 e 80, o qual registrava elevadíssimo índice de ajuizamentos de processos judiciais.2

Suas conclusões foram pauta em emblemática edição da Pound Conference, de 1976, que pretendia revisitar algumas estruturas do sistema jurídico e oferecer contornos prospectivos atualizados.

Inicialmente, a tese foi concebida pela designação de “centro abrangente de justiça”, a partir do estudo “Varieties of dispute processing”,3 isso é, Variedades de processamento de conflitos. O nome “Tribunal Multiportas”, Multi-Door Courthouse System, surgiu, e apenas, após a conferência, a partir de uma ilustração da revista da American Bar Association,4 que apresentava um tribunal composto por uma quantidade significativa de portas.

Nas palavras do seu idealizador, a proposta do tribunal multiportas consiste em analisar diferentes formas de resolução de conflitos, como a mediação, a arbitragem, a negociação, entre outras, de modo a observar em cada uma delas alguma característica que a torne aderente à uma categoria de conflitos, permitindo criar um sistema de indicar a forma mais adequada de resolução a partir dos conflitos apresentados ao Poder Judiciário.5

A proposta teórica do tribunal multiportas não é difícil; trata-se de uma ideia pontual e simples, cuja dificuldade está na sua execução, especialmente porque é no mínimo complexo apontar quais são os casos que correspondem à uma forma de resolução de conflito específica.

CONTRACORRENTES AO MODELO DO TRIBUNAL MULTIPORTAS

A ideia projetada por Frank Sander foi eleita como uma espécie de novo modelo a ser implementado no sistema jurídico dos EUA, encorajando demais países a adotarem a lógica do tribunal multiportas. A proposta gerou uma corrente significativamente expressiva de defensores, entretanto, foi objeto de duras críticas, dos quais podemos sinalizar dois pontos de vista ao modelo do Multi-Door Courthouse System.

O primeiro é sobre a compensação da resolução de conflitos, isso é, sobre o argumento de que essa proposta, na verdade, camuflaria a necessidade real de encontrar soluções para as deficiências estruturais do Poder Judiciário e aprimoramento das técnicas do processo, responsáveis por ocasionar, por exemplo a lotação e a excessiva duração dos processos judiciais. Para esses críticos, a proposta não teria uma preocupação genuína em atender aos anseios do processo, mas de promover uma mera política-judiciária, assentada na necessidade de redução, quase a todo o custo, do número de processos em tramitação.6

Intermediando essa primeira posição com a segunda: um ponto convergente estava nos bastidores dessa reformulação do sistema jurídico norte-americano após a Pound Conference de 1976, visto que, por um lado, existia um genuíno interesse empresarial relacionado à utilização desse sistema por uma redução nos custos judiciais de grandes empresas, e por outro, ideológica-cristã, afinal, o modelo conflitual do processo judicial ia contra os valores da igreja de tratamento amistoso entre as pessoas.7

O segundo é a contracorrente formada a partir da resistência à exportação do, entre aspas, “modelo ideal americano” para outros países do globo. Essa posição é capitaneada por Laura Nader,8 antropóloga norte-americana, que se preocupa com a adesão dessa estrutura projetada pelo tribunal multiportas em outros sistemas jurídicos, visto que, a partir da sua ideia, deveriam cada um desses sistemas observar até que grau essa tese seria benéfica para o seu respectivo sistema jurídico, não meramente pela publicidade do, entre aspas, “correto modelo de ensino norte-americano”.9

RECEPÇÃO INTERNACIONAL

Embora as críticas ao modelo, a proposta é louvável, afinal, estuda a possibilidade de otimizar a resolução de conflitos a partir de uma grande variedade de formas resolutivas.

Inicialmente, no entanto, resgatando o pensamento de Frank Sander, esse sistema foi projetado sem inclusão do processo judicial, isso é, apenas se considerou incluir o processo quando essa organização foi projetada para ocorrer nos fóruns e em fase de pré-processamento.

A revisão proposta por Frank Sander ganhou um número significativo de adeptos, espalhando-se em outros sistemas jurídicos do globo. A título de exemplo, em direito comparado, além dos Estados Unidos da América, o tribunal multiportas foi levado para alguns países da Europa,10 da África e da América Latina.11

Atualmente, no entanto, a sua maior expressão está nos sistemas jurídicos da Nigéria12 e do Brasil – aliás, até mesmo nos Estados Unidos da América a tese caiu em desuso, após o falecimento do Prof. Sander, em 2018, de modo que os seus discípulos não conseguem criar consenso acerca da estrutura da adequação dos conflitos.13

O TRIBUNAL MULTIPORTAS NO BRASIL

Respondendo ao que se afirmou logo no início desta exposição, mesmo que o Brasil seja um dos principais representantes do tribunal multiportas, a forma como ele é difundido atualmente, no direito brasileiro, é diferente daquela original proposta pelo Multi-Door Courthouse System. Precisamente, foi a expressão “tribunal multiportas”, com a sua ideia, que teve ampla recepção no direito brasileiro – adiante será visto que o nome, igualmente, sofreu revisão.

O desenvolvimento de formas de resolução de conflitos, além do processo judicial, no Brasil, embora presente em diversos momentos da história jurídica, apenas começou a ser fortificado com a Resolução n. 125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”.14

Entre os anos de 2010 e 2015, houve um intenso movimento de fortificação pelo protagonismo de outras formas de resolução de conflito dentro do sistema jurídico, especialmente as autocompositivas, como a conciliação e a mediação. Como exemplos, além da Resolução n. 125, de 2010, do CNJ, podemos destacar o Código de Processo Civil de 2015, o estabelecimento da ideia sobre a primazia pela resolução consensual dos conflitos, assim como a Lei da Mediação, Lei n. 13.140, de 2015.

O tribunal multiportas não cuida apenas das formas autocompositivas; elas ganham destaque, todavia, ele representa esse conjunto de diversos mecanismos resolutivos de conflitos (alguns mais conhecidos do que outros), disponíveis para satisfazer os interesses das partes, sendo essa, quiçá, uma forma da delimitação dessa unidade.

Aliás, o fenômeno não é exclusivo do direito brasileiro. Na verdade, a emergência pelo prestígio dessa organização ocorre de maneira tardia no Brasil, afinal, em alguns sistemas jurídicos do mundo, essa unidade de formas resolutivas de conflito é objeto de estudo e debate há décadas, sendo o nome mais comum para a sua designação o “alternative dispute resolution” (resolução alternativa de conflitos).

Antes do emprego da expressão “tribunal multiportas”, havia grande prestígio pelas nomenclaturas “meios adequados de solução de conflitos” ou “meios alternativos de resolução de conflitos” – embora ambos, em essência, são fundados a partir de linhas divergentes, isso é, são refletidos a partir de interesses particulares, a utilização de um nome no lugar de outro não é, imediatamente, danoso.

Recentemente, há a consolidação do que se tem chamado por “princípio da adequação”,15 cujo cerne é similar à proposta original do Multi-Door Courthouse System, isso é, pensar no direcionamento de determinadas categorias de conflitos ao tipo que a elas mais seja aderente, obtendo melhores resultados práticos.

O SISTEMA BRASILEIRO DE JUSTIÇA MULTIPORTAS

A exposição do tópico anterior representa uma feição inicial do tribunal multiportas no Brasil; se pode falar que se está, agora, em um segundo estágio, ainda sem definição consolidada.

Após a Resolução n. 125/2010 do CNJ até os primeiros anos de vigência do Código de Processo Civil de 2015, consideramos que o tema teve o seu primeiro enfoque, centrado na ideia de multiplicação de formas de resolução de conflitos, dentro e fora do Poder Judiciário, realçando figuras preexistentes como a arbitragem, a conciliação e a mediação, ampliando-as no repertório institucional jurídico das academias e tribunais, reequilibrando os seus valores em relação ao processo judicial.

Mais recentemente, estamos presenciando um curioso e instigante segundo estágio do tema que, até então, era o tribunal multiportas, focado em uma concepção estrita, inclinado apenas às formas de resolução de conflito, para uma genuína justiça multiportas, isso é, uma abertura completa do sistema de justiça à novos centros de atuação, desafiando a nossa concepção tradicional de Poder Judiciário estritamente correlacionado com o processo judicial na consecução da jurisdição, protagonizando sobretudo atores extrajudiciais (na etimologia tradicional do termo), qualificando diretamente as instituições jurídicas.16

O tema é promissor e certamente apresentará ressignificações e novos contornos nas próximas décadas, inclusive da forma como compreendemos o próprio Direito Processual Civil.

 

Referências

____________________

1. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao sistema brasileiro de justiça penal multiportas (parte 1). Revista de Processo, v. 350, p. 423-448, 2024. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução ao sistema brasileiro de justiça penal multiportas (parte 2). Revista de Processo, v. 351, p. 505-533, 2024. COSCAS-WILLIAMS, Béatrice; ALBERSTEIN, Michal. ««Um palais de justice aux multiplex porte». La diversité des réponses pénales (Israël, Italie, France)», Les Cahiers de la Justice, v. 1, n. 1, p. 85-97, 2020. BIERSCHBACH, Richard A. Equality in Multi-Door Criminal Justice. New Criminal Law review, v. 23, n. 1, p. 60-73, 2020.

2. CRESPO, Mariana Hernandez. Diálogo entre os professores Frank Sander e Mariana Hernandez Crespo. In: ALMEIDA, Rafael Alves de; ALMEIDA, Tania; ______. Tribunal Multiportas: investindo no capital social para maximizar o sistema de solução de conflitos no Brasil. Rio de Janeiro, FGV, 2012. p. 32.

3. SANDER, Frank. Varieties of dispute processing. In: Levin, L. A.; Russel, W. R. (Orgs.). The pound conference: perspectives on justice in the future. Saint Paul: Leo Levin & Russel R. Wheeler, 1979.

4. Equivalente, para nós, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

5. SANDER, Frank. The Multi-Door Courthouse: Settling Disputes in the Year 2000. HeinOnline: 3 Barrister 18, 1976.

6. Essa crítica é ampla e não foi desenvolvida apenas ao tribunal multiportas. A doutrina, não de hoje, expressa preocupação na posição daqueles que incentivam, especialmente, formas autocompositivas como resposta à deficiência do processo judicial, enquanto instrumento de exercício jurisdicional, ou do Poder Judiciário, por questões estruturais. Nesse sentido: FISS, Owen. Against Settlement. The Yale Law Journal, v. 93, n. 6, p. 1073-1090, 1984. TARUFFO, Michele. Uma alternativa às alternativas: modelos de resolução de conflitos. Tradução de Marco Félix Jobim. In: ______. Ensaios sobre o Processo Civil: escritos sobre processo e justiça civil. Organização e revisão de tradução de Darci Guimarães Ribeiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2017. p. 28-43. CAPPELLETTI, Mauro. Os métodos alternativos de solução de conflitos no quadro do movimento universal de acesso à justiça. Revista de Processo, v. 19, n. 74, p. 82-97, 1994. FACCHINI NETO, Eugênio. Ensaio crítico sobre os meios alternativos de resolução de conflitos. Boletín Mexicano de Derecho Comparado, n. 155, v. 1, p. 1157-1187, 2020. p. 1175-1182. ALVIM, Arruda. Manual de Direito Processual Civil. 20. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021. p. 255.

7. NADER, Laura. Disputing without the force of Law. The Yale Law Journal, v. 88, p. 998-1022, 1979.

8. NADER, Laura; GRANDE, Elisabetta. Current Ilusions and Delusions about Conflict Management: In Africa and Elsewhere. Law & Social Inquiry, n. 27, p. 573-594, 2022. p. 574-578.

9. Para aprofundamento no tema, recomendo enfaticamente: Cf. NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON. Teoria Geral do Processo. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 363-406.

10. MALACKA, Michal. Multi-Door Courthouse established through the European mediation directive? International and Comparative Law review, v. 16, n. 1, p. 127-142, 2016.

11. HERNANDEZ-CRESPO, Mariana. From noise to music: the potential of the Multi-Door Courthouse (Casa de Justicia) model to advance systemic inclusion and participation as a foundation for sustainable rule of law in Latin America. Journal of Dispute Resolution, n. 2, p. 335-423, 2012.

12. AMADI, Felix C.; OTUTURU, Gogo G. Alternative dispute resolution processes and the structure of Multi-Door Courthouse in Nigeria. British jornal of advanced academic research, v. 8, n. 1, p. 16-26, 2019. EGBUNIKE-UMEGBOLU, Chinwe. Speedy dispensation of Justice: Lagos Multi-Door Court House (LMDC). Athens journal of Law, v. 8, p. 279-308, 2022.

13. Informações obtidas de forma particular, em conversas informais, com colegas que moram, atuam e pesquisam na área jurídica dos EUA.

14. CABRAL, Trícia Navarro Xavier; SANTIAGO, Hiasmine. Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça: avanços e perspectivas. Revista CNJ, v. 4, n. 2, p. 199-211, 2020. p. 201.

15. ALMEIDA, Diogo Rezende de. Novamente o princípio da adequação e os métodos de solução de conflitos. In: ZANETI JR., Hermes; CABRAL, Trícia Navarro Xavier. (Coords.). Justiça Multiportas: mediação, conciliação, arbitragem e outros meios adequados de solução de conflitos. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2022. p. 327-350.

16. NAVARRO, Trícia. Justiça Multiportas. Indaiatuba: Editora Foco, 2024. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. Introdução à justiça multiportas: sistema de solução de problemas jurídicos e o perfil do acesso à justiça no Brasil. Salvador: JusPodivm, 2024.

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