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Liberdade de expressão e privacidade: a série da boate Kiss

Boate-Kiss

Nesse final de semana, assisti à minissérie que retratou a tragédia do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Denominada “Todo Dia a Mesma Noite”, os cinco episódios adaptam a história investigativa contada no livro homônimo de uma jornalista, Daniela Arbex.

A série retrata, de forma triste, comovente e respeitosa, o sofrimento dos familiares de alguns dos 242 jovens que foram mortos devido ao incêndio ocorrido no dia 27 de janeiro de 2013 e a sua luta por Justiça. Em uma das cenas da série, o advogado que representa as vítimas explica, diante da frustração dos pais pela ausência de punição dos culpados, que o “processo é a pena”, comparando o Sistema Judiciário Brasileiro com o livro de Kafta: O Processo.

Esse artigo poderia falar sobre detalhes do ocorrido, sobre responsabilidade penal e civil e diversos outros temas. Mas vamos focar na privacidade e proteção de dados pessoais das vítimas, as quais eu incluo os pais e familiares, e na liberdade de expressão.

Primeiramente, vale esclarecer que dados pessoais são informações as quais podem identificar, ou tornar identificáveis os indivíduos. Desse modo, ainda que não tenha sido utilizados os verdadeiros nomes na minissérie, a maioria dos personagens representam uma vítima do ocorrido. Assim, configuram-se dados pessoais. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) tem algumas exclusões de aplicação, como o tratamento de dados pessoais para fins jornalísticos (art. 4º, a). No entanto, configurar referido tratamento apenas nessa hipótese de exclusão geraria discussões.

Superada a aplicação da LGPD, que se aplica a pessoas naturais vivas, resta entender se há algum limite na liberdade de expressão diante da privacidade e honra dos indivíduos. Uma tragédia que ensejou uma grande discussão sobre o tema, inclusive chegando a tribunais superiores diante da discussão do tema do direito ao esquecimento, foi um programa sobre a Chacina da Candelária.1

A chacina ocorreu em 23 de julho de 1993, próximo à Igreja da Candelária, localizada no centro do Rio de Janeiro, quando oito jovens, moradores de rua, foram assassinados. O programa expôs o nome e a imagem do serralheiro, acusado pelo crime, na Linha Direta – Justiça em 2006. Com isso, o serralheiro entrou com uma ação indenizatória que gerou a discussão sobre limite da liberdade de expressão e violação da honra e privacidade.

Voltando à tragédia da boate Kiss, um grupo formado por 40 famílias se pronunciaram contra a minissérie do Netflix, ameaçando processar a plataforma pela exploração comercial do ocorrido. Todavia, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de SM informou que não tem relação com o caso e que está de acordo com a produção, sentindo-se representada pelos episódios retratados.2

Caso haja a ação judicial, serão discutidos direitos fundamentais e seu sopesamento, incluindo o direito à privacidade e honra de familiares, bem como o direito de liberdade de expressão. Para esse tema, relembro o texto da Professora Silmara Chinellato sobre bibliografias não autorizadas e direitos da personalidade, publicado, em que discute a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4815 ajuizada pela Associação de Editores de Livros, que recomendo leitura.

 

Referências

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1. https://bit.ly/3HNfWSm

2. https://bit.ly/3RpyUlq

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