Litigância abusiva (predatória), de má-fé e de massa: reflexões de um advogado para os tribunais brasileiros

Litigância abusiva (predatória), de má-fé e de massa: reflexões de um advogado para os tribunais brasileiros

Conflitos Societários

Recentemente, tive o prazer de desenvolver um capítulo de livro com a minha sócia Júlia Leal Danziger sobre a litigância abusiva (predatória) e o Tema 1.198 do STJ. No trabalho, buscamos entender o que caracteriza a litigância abusiva (predatória), o Tema 1.198 do STJ e, ao fim, tecemos algumas considerações sobre todo esse conjunto, as quais ainda teremos a oportunidade de veicular nos canais e portais jurídicos após a publicação do trabalho. Para complementação: o estudo já está concluído e se encontra no prelo de uma obra acerca dos Tribunais Superiores do Brasil.

Sem querer adiantar muito do que falamos, para a matéria deste mês, gostaria de adaptar uma pequena parte do trabalho em que realizamos uma distinção pontual acerca da diferença entre a litigância abusiva (predatória), a litigância de má-fé e, especialmente, a litigância de massa, deixando este pequeno contributo direcionado aos Tribunais brasileiros, motivado pelas reclamações e indignações de pelo menos uma dúzia de colegas advogados com quem tenho contato, que relatam a confusão entre esses três “fenômenos” – especialmente a litigância abusiva (predatória) e a litigância de massa, prejudicando as suas atuações e os direitos dos seus clientes.

Quiçá, a melhor forma de iniciar este pequeno escrito seja estabelecer que a litigância abusiva pode ser chamada de diferentes maneiras. Embora eu tenha optado pelo termo, sobretudo por seu uso na Recomendação n. 159/2024 do CNJ,1 ele também pode ser encontrado sob o manto de “advocacia predatória”, “litigância vexatória”, “estratégia de litigância fraudulenta”, “litigância predatória” (essa mais conhecida) etc. Para além da imprecisão semântica, preocupo-me com o reflexo de todo esse cenário na atuação forense, especialmente porque não se trata de “prática jurídica” recente, tampouco restrita ao direito brasileiro.

Para tentar demonstrar a diferença entre esses três “fenômenos”, vamos trabalhar com alguns cenários hipotéticos. Se questionarmos a conduta de propor uma ação sem qualquer conjunto factual razoável, apenas para tentar obter algum proveito que não tenha legalmente direito ou para conturbar a parte adversária, seria ela uma postura que caracterizaria a litigância abusiva? Em extensão, propor diversas ações com os mesmos fatos, fundamentos e causa de pedir, alterando apenas as partes, seria um outro exemplo para a hipótese de ocorrência de litigância abusiva?

De forma abstrata, parece que as hipóteses descritas em ambos os exemplos não configuram, prima facie, situações de litigância abusiva. Pode até ser que, em algum grau, sejam, mas dependem de análise mais cautelosa das suas circunstâncias, sobretudo porque as hipóteses anteriormente descritas irão representar respectivamente a litigância de má-fé e a litigância de massa.

Aqui o ponto que gostaria de chamar atenção dos Tribunais acerca do cuidado para não confundir esses três “fenômenos”: a linha de distinção entre a “litigância de má-fé”, a “litigância de massa” e a “litigância abusiva” é tênue, por vezes, de difícil percepção.2

A litigância de má-fé é uma conduta vetada e tipificada como ilícita pela legislação brasileira. O Código de Processo Civil, em seu art. 80, regula diversas hipóteses de sua ocorrência. Além do exemplo que já foi apresentado e que encontra previsão no art. 80, III, do CPC, também se considera de má-fé aquele que, por exemplo, altera a verdade dos fatos (distorcendo o conjunto factual narrado no processo), art. 80, II, do CPC, ou que a sua conduta seja contrária à boa-fé processual (art. 5º do CPC), como na hipótese de a parte criar barreiras injustificadas para embargar o andamento do processo (inviabilizar propositalmente a ocorrência da produção probatória processual), art. 80, IV, do CPC. A litigância de má-fé é um tema que se debate há muito tempo e cuja característica principal é o seu manifestado estado de ilicitude (art. 187 do Código Civil).

Diferentemente, na litigância de massa não há o que se falar da ocorrência de uma postura ilícita. Embora assuste em termos de quantidade e demanda operacional para o seu gerenciamento no Poder Judiciário, ela é lícita e ocorre por uma carência ou contradição legislativa, ou seja, provêm de uma condição social3 que é hipertrofiada pela expansão dos serviços e das técnicas relacionadas ao acesso à justiça.4 5

São exemplos comuns: as ações propostas por falhas na prestação de serviços públicos (a exemplo, quando uma cidade fica sem o fornecimento adequado de água ou luz) ou por falhas na prestação de serviços ao consumidor (como ocorre quando existe algum vício em um produto que é vendido, a exemplo do transporte aéreo). Essas reivindicações não são ilícitas. Ainda que caracteristicamente industrializadas, são ações decorrentes de um quadro social que demanda intervenção do Poder Judiciário.6

Essa apresentação é necessária porque além de poder fazer uma distinção entre cada uma delas, cada qual terá um elemento que formará a denominada “litigância abusiva” – por isso, outrora, disse que nenhuma dessas duas espécies devem ser consideradas primeiramente como abusivas, afinal de contas não são.7

Grosseiramente falando, será considerada abusiva a postura que somar o elemento “ilicitude” da litigância de má-fé com o elemento “quantidade” ou “volume” da litigância de massa. Refinando a afirmação. A litigância abusiva consiste em práticas ilícitas, como fraude e manipulação, orquestradas estrategicamente.8 Suas características principais são a atuação estratégica, coordenada e cronológica para a prática do ilícito por meio do processo.9 Inclusive, tem a ver com o abuso do direito de ação10 (abuso do processo)11 e pode ser subdividida em diferentes espécies, todas configurando a prática de abusividade.12

Aprofundando o tema de maneira prática, a litigância abusiva pode acontecer tanto pelo seu conjunto de fatos, a exemplo da situação envolvendo a infeliz fala de um jornalista,13 14 na rede social “X” (antigo Twitter), desencadeando uma enxurrada de ações coordenadas movidas contra ele em diversas partes do país, em foro distinto daquele de sua residência (dificultando o seu direito de defesa),15 pleiteando a sua condenação em danos morais, quanto por aspectos de forma do processo (como na apresentação de procuração falsa, de pessoas que sequer existem, falecidas ou que tiveram seus dados indevidamente captados por algum sistema e nem imaginam que “outorgaram” poderes para demandar em face de outrem), inclusive, essa segunda feição é a temática que está em debate no Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Tema Repetitivo 1.198.16

A litigância abusiva, portanto, representa uma postura ilícita coletiva (se fosse individual, seria caso de litigância de má-fé; se não contasse com o elemento “ilicitude”, seria caso de litigância de massa) minuciosamente planejada, cuja postura não é universal ou lógica, ou seja, pode ser orquestrada de diferentes maneiras para alcançar objetivos diversos, sobretudo, buscar cercear direitos processuais fundamentais, obter vantagem em contexto factual indevido, com (este, pensando na hipótese de ludibriar alguém com alguma vulnerabilidade técnica ou social, desacompanhado de qualquer assistência) ou sem o consentimento da parte, manipulando a narrativa e os documentos que lhe servem de prova ou são indispensáveis.17

Essas hipóteses são meramente exemplificativas e são apresentadas para demonstrar como o ilícito pode ocorrer no processo judicial, de forma que concluo este escrito com duas afirmações: (1) não tratem esses três “fenômenos” como se sinônimos fossem (não são; cada um foi explicado ao longo da matéria); (2) seria descabido apresentar um rol taxativo de hipóteses que se consideram como abusivas (para distinguir especialmente da litigância de massa) porquanto a conclusão acerca da sua ocorrência é infraprocessual, isto é, são as condutas ilícitas constatadas no processo que evidenciarão se se trata de litigância abusiva ou não.

Deixo um abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas. Vejo vocês no próximo mês.

 

Referências

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1. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação n. 159, de 23 de outubro de 2024. Recomenda medidas para identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva. Disponível em: <bit.ly/3PXLyYK>. Acesso em: 1 fev. 2025.

2. SOUSA, Alexandre Rodrigues de; OLIVEIRA JÚNIOR, Délio Mota de; SOARES, Carlos Henrique. Notas sobre a chamada litigância predatória: investigação de um conceito e métodos de mitigação. Revista de Processo, v. 355, p. 23-51, 2024. p. 33-35.

3. LAMY, Eduardo de Avelar; REIS, Sérgio Cabral dos. Da recepção do sistema de precedentes no CPC/2015 ao fortalecimento das ações coletivas rumo a uma tutela jurisdicional eficaz: encontros e desencontros dos sistemas de resolução de litigância de massa no Brasil. Revista de Processo, v. 292, p. 253-290, 2019. p. 272.

4. Descrevem o ponto, sob a ênfase da gratuidade da justiça, e buscam relacionar com a litigância predatória: Cf. SPENGLER NETO, Theobaldo; DORNELLES, Maini; KONZEN, Carolina Kolling. Gratuidade da justiça e a litigância predatória: necessidade de ajustes. In: SPENGLER, Fabiana Marion; SPENGLER NETO, Theobaldo. (Orgs.). O acesso à justiça no pós-Constituição de 1988. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2022. p. 35-51. p. 44-49.

5. RAVAGNANI, Giovani dos Santos. Automação da advocacia, gestão de contencioso de massa e a atuação estratégica do grande litigante. Revista de Processo, v. 265, p. 219-256, 2017. p. 220/221.

6. No particular, para melhor aprofundamento sobre os problemas sociais e técnicos envoltos no tema: Cf. GALANTER, Marc. Why the “haves” come out ahead: speculations on the limits of legal change. Law and Society Review, v. 9, n. 1, p. 95-160, 1974.

7. SILVA, Lucia Helena Salgado e; ZUCOLOTO, Graziela Ferrero; BARBOSA, Denis Borges de. Litigância predatória no Brasil. Radar, n. 22, p. 25-35, 2012. p. 27.

8. SOUZA, Gabrielly de. Litigância predatória, tutela coletiva e o porvir do acesso à justiça. Revista de Processo, v. 353, [s.p.], 2024. p. 2.

9. MÓL, Ana Lúcia Ribeiro; SILVA, Maria Inês Gomes da. Litigância predatória: a dualidade entre o acesso à jurisdição e abuso do exercício do direito de ação. Revista do Curso de Direito da Unimontes, v. 1, n. 1, p. 231-238, 2024. p. 234.

10. Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini. Ética, abuso do processo e resistência às ordens judiciárias: o Contempt of Court. Revista de Processo, v. 102, p. 219-236, 2011. p. 220-222.

11. TARUFFO, Michele. L’abudso del processo: profili comparatistici. Revista de Processo, v. 24, n. 96, p. 150-169, 1999.

12. ANDRADE, Juliana Melazzi; DAVID, Fernanda Rocha. Litigância predatória nos processos de execução: o uso abusivo do requerimento de falência pelo credor. Civil Procedure Review, v. 15, n. 2, p. 163-192, 2024. p. 173-176.

13. TEMER, Sofia. Ações coordenada, “demandas opressivas” e “litigância predatória”: notas sobre a Recomendação CNJ 127/2022 e o PL 90/2021. JOTA, 29 maio 2024. Disponível em: <https://bit.ly/40RRQPU>. Acesso em 28 jan. 2025.

14. TEMER, Sofia. J. P. Cuenca, o tuíte satírico e as ações coordenadas: como o direito processual pode ajudar na compreensão e tratamento do fenômeno?. JOTA, 14 jan. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/4hfHNKi>. Acesso em 30 jan. 2025.

15. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de decidir sobre o ponto ao julgar o tema “assédio judicial a jornalistas”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 6792/DF e ADI 7055/DF. Órgão julgador: Tribunal Pleno Relator: Ministra Rosa Weber. Redator do acórdão: Ministro Luís Roberto Barroso. Julgamento: 22/05/2024. Tese fixada “1. Constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos, em comarcas diversas, com o intuito ou o efeito de constranger jornalista ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa; 2. Caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro de seu domicílio. 3. A responsabilidade civil de jornalistas ou de órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos)”.

16. Anteriormente, o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de dissertar sobre o tema “abuso do direito de ação/defesa” (litigância abusiva) em alguns julgamentos, como no: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. […] ABUSO DO DIREITO DE AÇÃO E DE DEFESA. RECONHECIMENTO COMO ATO ILÍCITO. POSSIBILIDADE. PRÉVIA TIPIFICAÇÃO LEGAL DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. AJUIZAMENTO SUCESSIVO E REPETITIVO DE AÇÕES TEMERÁRIAS, DESPROVIDAS DE FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA E INTENTADAS COM PROPÓSITO DOLOSO. MÁ UTILIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE AÇÃO E DEFESA. POSSIBILIDADE. […] 2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se houve omissão ou obscuridade relevante no acórdão recorrido; (ii) se o ajuizamento de sucessivas ações judiciais pode configurar o ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa; (iii) se o abuso processual pode acarretar danos de natureza patrimonial ou moral; (iv) o termo inicial do prazo prescricional da ação de reparação de danos fundada em abuso processual. […] 4- Embora não seja da tradição do direito processual civil brasileiro, é admissível o reconhecimento da existência do ato ilícito de abuso processual, tais como o abuso do direito fundamental de ação ou de defesa, não apenas em hipóteses previamente tipificadas na legislação, mas também quando configurada a má utilização dos direitos fundamentais processuais. 5- O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça. […] STJ. REsp n. 1.817.845/MS (2016/0147826-7). Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data de Julgamento: 10/10/2019. Terceira Turma. Data de Publicação: 17/10/2019.

17. LINO, Daniela Bermudes. Nota sobre litigância predatória (abuso do direito de demandar). Boletim Revista dos Tribunais Online, v. 38, [s.p.], 2023.

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