Milícias e direitos humanos: o impacto da atuação miliciana em comunidades periféricas no Rio de Janeiro

Milícias e direitos humanos: o impacto da atuação miliciana em comunidades periféricas no Rio de Janeiro

milícia

Este Artigo Científico tem como objetivo analisar o fenômeno das milícias no Brasil a partir de uma perspectiva focada nos direitos humanos, com ênfase no impacto da atuação miliciana em comunidades periféricas no estado do Rio de Janeiro. Por meio desta pesquisa, busca-se compreender como a atuação miliciana compromete o acesso à cidadania, à segurança pública e à dignidade das populações afetadas, portanto, pretende-se contribuir para uma reflexão crítica sobre a necessidade de políticas públicas efetivas e ações integradas de enfrentamento, pautadas no respeito aos direitos humanos e na proteção das comunidades vulneráveis.

Palavras-chave: Milícias; Direitos Humanos; Comunidades no Brasil; RIO DE JANEIRO.

INTRODUÇÃO

A existência e o crescimento do número de grupos armados fora do controle estatal é um problema global, mas se mostra especialmente preocupante no Brasil. Esse fenômeno é estudado e relatado a partir de relatórios públicos e pesquisas acadêmicas sobre as regiões metropolitanas no país, a partir deles é possível analisar que as milícias e grupos paramilitares têm crescido de forma acelerada principalmente nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro.

As milícias urbanas e privadas têm se destacado bastante como uma forma de controle armado em áreas de periferia, explorando economicamente as comunidades locais por meio de práticas ilícitas, como extorsão e fornecimento de serviços clandestinos; áreas que antes eram ocupadas pelo tráfico de drogas.

Para dimensionar empiricamente esse cenário, foram analisadas 689.933 denúncias anônimas sobre tráfico de drogas e milícias entre 2006 e 2021, o que permitiu traçar a evolução histórica do controle territorial e populacional de facções e milícias em mais de 13.308 sub-bairros, favelas e conjuntos habitacionais que abrigam 12.164.017 habitantes da região metropolitana do Rio de Janeiro. Entre o primeiro e o último triênio da série histórica do Mapa dos Grupos Armados, as milícias registraram crescimento territorial de 387,3% nas áreas sob seu controle (de 52,60 km² para 256,28 km²) e crescimento populacional de 185,5% (de 600.813 habitantes para 1.715.396). Esse salto, mais acelerado do que o observado para outros grupos, elevou a participação das milícias de 23,7% para 49,9% da área total controlada por grupos armados e de 22,5% para 38,8% da população sob domínio.1

Portanto, com base nos dados e artigos analisados, a pergunta que orienta este trabalho é direta: em que medida a atuação das milícias no Rio de Janeiro viola direitos fundamentais e revela falha estatal de proteção? A análise articula o enquadramento penal do fenômeno, os efeitos sobre o catálogo de direitos do art. 5º da Constituição e a subversão de princípios da ordem econômica do art. 170, à luz das obrigações positivas de prevenir, investigar, punir e reparar previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos. Esse enfoque permite compreender como a constituição de um “Estado paralelo” combina coerção, extração de renda e captura institucional, corroendo a cidadania e a legitimidade do poder público nas periferias.

Trata-se de pesquisa bibliográfica e documental, com abordagem jurídico-analítica na qual o objetivo geral é analisar, como a atuação miliciana no Rio de Janeiro viola os direitos fundamentais do ser humano e expõe as omissões estatais relevantes; especificamente, demonstrando os contornos normativos e penais do fenômeno, evidenciando as violações constitucionais e econômicas, examinando a responsabilidade civil do Estado por omissão (art. 37, § 6º, CF) em diálogo com a Convenção Americana de Direitos Humanos, indicando parâmetros de políticas públicas e de controle judicial compatíveis com a proteção de direitos nas áreas afetadas. Pretende-se oferecer subsídios para políticas públicas e o fortalecimento da proteção dos direitos humanos nas comunidades periféricas.

A relevância deste trabalho de conclusão de curso reside em oferecer subsídios normativos e probatórios para decisões judiciais e para possíveis formulações de políticas públicas capazes de reverter a captura territorial e econômica promovida por milícias. Ao integrar parâmetros constitucionais e interamericanos de devida diligência, a pesquisa pretende fortalecer a proteção de direitos humanos nas comunidades periféricas, recompor a autoridade estatal legítima e orientar estratégias de responsabilização proporcionais, verificáveis e sustentáveis.

1 Contextualização do Fenômeno miliciano

As milícias brasileiras distorcem o conceito histórico do termo “milícia”, que em sua origem latina e em tradições como as da Inglaterra e Suíça, designava civis armados apenas para a proteção de sua comunidade, com caráter exclusivamente defensivo e coletivo. Já no Brasil, entretanto, Alba Zaluar e Isabel Siqueira Conceição (2007), em seu artigo “Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz?”2 descrevem o termo como grupos armados compostos por agentes do Estado (policiais, bombeiros, militares etc.) que atuam de forma clandestina e coativa, impondo domínio territorial nas comunidades.

O crime organizado precisa de brechas estatais para existir. As milícias vão além dessas brechas. Nasceram de dentro do Estado, com forte presença de agentes das próprias polícias. Esse fenômeno tem dimensão política. O debate público recente trouxe acusações que ligam lideranças e famílias de políticos a grupos milicianos. Conforme
Bruno Paes Manso (2020), em A república das milícias, explora essa trajetória, dos esquadrões da morte à articulação contemporânea entre crime, poder e território.

As milícias, principalmente, no Rio de Janeiro tem formação estatal, primordialmente por agentes públicos que, valendo-se do seu antigo ou até mesmo cargo atual, redes e armamentos do próprio aparato de segurança, passaram a privatizar o uso da força e a explorar economicamente territórios por meio de “taxas” de proteção e monopólios de serviços. Com isso, com o passar do tempo, se consolidaram vínculos político-eleitorais, que convertem o controle territorial em capital politico, e com isso geram influencias nas candidaturas, financiamento de campanhas e possivelmente negociar proteção e acesso a politicas públicas, o que gera direta ou indiretamente um pode paraestatal dominante no estado; o que foi descrito por Bruno Paes Manso ao rastrear a trajetória “dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”, evidenciando a simbiose entre agentes estatais, economias ilegais e arena política.3

Portanto, este trabalho apresenta as origens e os impactos causados pelas milícias e grupos paramilitares no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro investigando seus objetivos, modus operandi. Dessa forma, espera-se contribuir para o debate acadêmico e para o desenvolvimento aprimorado do reconhecimento das legalidades e ilicitudes praticados por estes grupos. Com base nessa contextualização, passa-se à análise jurídica e normativa do fenômeno das milícias no Brasil.

2 As milícias no contexto brasileiro

2.1 a conceituação e a ideia

Segundo Rafael Soares, em seu livro “Milicianos”4, o termo “milícia” se refere a redes criminais que são formadas por agentes estatais, sobretudo policiais e ex-policiais, além de outros agentes de segurança, que privatizam o uso da força, controlam território a partir de um poder paraestatal. Segundo Soares as milícias instauram um mercado coercitivo de serviços e segurança nas periferias o que segundo ele demonstra que “agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele”, o que ressalta ainda mais a fusão entre aparato policial, política e economias ilegais.

No estado do Rio de Janeiro, existe uma grande concentração de milícias, que é demonstrado a partir do dado obtido pelo Mapa Histórico dos Grupos Armados no Rio de Janeiro (GENI/UFF + Instituto Fogo Cruzado) que apresentaram em 2023, que 38,9% das áreas da Grande Rio que estavam sob domínio de algum grupo armado eram controladas por milícias. Entretanto é necessário destacar que houve uma ligeira diminuição desta porcentagem em relação ao pico que houve no ano de 2021, na qual foram relatadas uma porcentagem de 46,5% das áreas sendo dominadas pelas milícias; porém essa oscilação percentual não reduz a gravidade do fato e sim revela uma capacidade adaptativa e uma estabilização de rotinas das milícias em territórios onde a presença miliciana se consolida como “ordem” no cotidiano dos moradores destas comunidades afetadas, ainda que baseada na coerção, na extorsão difusa e na captura de serviços locais.

Nesse contexto, para José Cláudio Alves (Docente do Departamento de Ciências Sociais (ICHS/UFRRJ)), existe uma teoria na qual a economia política da violência é o território que passa a ser administrado por regras privadas, onde ordem, mercado e política se entrelaçam; Em suma, as milícias nascem da própria estrutura estatal, assumem funções de gestão nas periferias e criam mercados paralelos de segurança e serviços, produzindo um arranjo híbrido em que violência, economia e política caminham juntas.

No contexto carioca, trata-se de um fenômeno voltado à exploração dos moradores de áreas periféricas por meio de uma estrutura armada. Um exemplo emblemático é a favela de Rio das Pedras que é apontada como o berço das milícias modernas, onde a associação de moradores e a “polícia mineira”5 passaram a controlar o território de forma rígida e violenta, mesmo sob uma certa aparência de ordem. Com base nisso, é possível diferenciar as milícias de outros grupos paramilitares, conforme exposto a seguir.

2.2 Distinção de grupos paramilitares

A distinção conceitual é tênue e, muitas vezes, os termos são usados de forma intercambiável entre eles, na prática milícias são frequentemente descritas como grupos paramilitares, entretanto existem distinções teóricas e conceituais que podem ser observadas entre elas.

O termo “organizações paramilitares” geralmente se referem a organizações armadas que operam de forma semelhante às forças militares regulares, porém não são forças oficiais do estado. No geral podem funcionar sob a cobertura de leis nacionais e internacionais que validam sua existência e atividades, elas, por definição, não são sempre ilegais; enquanto suas operações permanecerem dentro dos limites da lei, incluem-se exemplos como organizações afiliadas a Estados ou missões de segurança criadas por tratados e convenções internacionais.

No entanto, as milícias embora paramilitares, possuem hibridismo institucional: combinam elementos legais e ilegais, atuando sob a conivência ou omissão do Estado que particularmente no Brasil, estão frequentemente vinculadas a crimes como tráfico de influência, extorsão e controle territorial paralelo ao Estado. Seu principal diferencial é a composição majoritariamente por agentes públicos e a simbiose com a estrutura do Estado.

As milícias têm uma relação de parasitismo e simbiose com o Estado. Elas se infiltram nas instituições políticas e de segurança pública para legitimar sua atuação e expandir seu domínio.

De acordo com Ignacio Cano em seu livro “No sapatinho: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008–2011)” (LAV/UERJ + Fundação Heinrich Böll), ele define milícias como estruturas estáveis e territoriais, em grande parte formadas por ex-agentes do Estado, que administram o cotidiano da área dominada e monetizam esse domínio por meio das chamadas “taxas de proteção” e monopólios de serviços. Já os grupos paramilitares clássicos têm atuação episódica, voltada a execuções por encomenda ou “limpeza social”, sem pretensão de governar o território nem de organizar mercados locais como as milícias.

Essa diferenciação é essencial para compreender as formas de atuação miliciana e sua inserção no contexto jurídico brasileiro, tema abordado a seguir.

2.3 MILíCIAS públicas e privadas no contexto brasileiro

As milícias no Brasil podem ser classificadas em dois grupos teóricos: que são elas as milícias privadas e milícias públicas. Ambas representam formas de atuação armada paralela ao Estado, mas elas apresentam divergências quanto à sua composição, finalidade e relação com a estrutura estatal.

Segundo Alba Zaluar e Isabel S. Conceição6, as milícias privadas são grupos organizados por agentes não estatais que são frequentemente compostos por ex-policiais, agentes penitenciários, bombeiros ou civis armados que exercem controle territorial em comunidades urbanas, com o objetivo de obter lucro por meio de atividades ilícitas, como cobrança de taxas de “proteção”, controle do transporte alternativo, fornecimento clandestino de serviços públicos, exploração imobiliária e prática de execuções extrajudiciais. Todavia estas milícias se organizam à margem da legalidade, e frequentemente se beneficiam de omissões ou conivência institucional.

Há entrevistas na qual Alba Zaluar contrapõe que as milícias nas favelas e a segurança privada em áreas de classe média/alta, tem tensionando a fronteira que há de se notar entre os contextos público e privado no policiamento ostensivo das regiões.

Ademais, as chamadas milícias públicas consistem na atuação abusiva e sistemática de agentes estatais, sendo eles, em especial, membros das forças de segurança que valendo-se de sua posição oficial, praticam execuções, torturas, desaparecimentos forçados e outras graves violações dos direitos humanos, com aparente respaldo institucional ou impunidade estrutural. Embora atuem “sob o manto do Estado”, tais práticas configuram graves desvios de função e caracterizam a atuação de verdadeiros esquadrões da morte.

O ponto crítico não é apenas o desvio individual do agente, mas a paraestatalidade descrita por Luiz Eduardo Soares: frações do próprio aparato estatal passam a operar como governo paralelo, usando credenciais, informação, armas, logística e rotinas da burocracia para privatizar o uso da força e produzir “ordem” seletiva. Entretando isso depende exclusivamente de uma conivência institucional das chefias que toleram essas praticas ilegais. O resultado disso é uma corrupção estrutural que não é apenas uma propina episódica, mas sim uma captura institucional, com erosão da legitimidade democrática.

A principal diferença entre as duas categorias está de fato no vínculo formal com o Estado: enquanto as milícias privadas operam sem investidura oficial, embora muitas vezes compostas por agentes públicos afastados ou corruptos, as milícias públicas são conduzidas diretamente por agentes estatais no exercício de suas funções, revelando uma corrosão interna das instituições democráticas. Compreender essas diferenças é essencial para identificar os limites entre a atuação legítima do Estado e sua captura por interesses criminais.

 

2.4 LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

2.4.1 A introdução das milícias no ART. 288º – A do Código Penal

As milícias foram apresentadas no art. 288-A do Código Penal, introduzido pela Lei nº 12.720/2012, na qual tipifica expressamente a conduta de “promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização paramilitar, milícia privada, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código”. A pena cominada é de reclusão de 4 a 8 anos, além da pena correspondente à violência exercida.

As milícias são enquadradas previamente no ordenamento jurídico brasileiro como organizações criminosas, entretanto, pode se notar que ela foi introduzida para distinguir-se de outras formas de associação criminosa (art. 288 CP) e de organização criminosa (Lei 12.850/2013). A milícia envolve usurpação da função estatal de segurança, com exercício privado e violento do controle territorial e “venda” compulsória de segurança e serviços.

É um crime autônomo e de perigo (a mera existência juntamente com a integração da milícia já lesiona a paz pública e a autoridade do Estado), frequentemente concurso material com homicídios, extorsões, corrupção, coação no curso do processo, porte/posse de arma, lavagem, organização criminosa, dentre outros.

A partir da análise dos julgados do Superior Tribunal de Justiça relacionados ao tema, é possível constatar que o entendimento jurisprudencial do ordenamento jurídico brasileiro caminha a partir de três critérios primordiais para haver o enquadramento do acusado no art. 288-A do Código Penal; são eles: a necessidade da existência de milícia privada estruturada, estável e voltada à prática de crimes; uma ou mais provas produzidas em juízo, não só elementos do inquérito; e por fim o respeito ao contraditório e à ampla defesa no processo criminal.

No geral é possível perceber a partir da análise dos julgados dos tribunais superiores que o enquadramento neste artigo é limitado, pois há uma especificidade necessária para poder se enquadrar além do art. 288 mas sim na alínea A do artigo.

Seguindo neste mesmo entendimento, segundo Rogério Greco, em sua doutrina sobre o crime de Constituição de Milícia Privada (Art. 288-A do Código Penal), ele adota uma posição que exige a análise da finalidade do grupo com certas reservas, especialmente no que tange à abrangência da expressão “qualquer dos crimes previstos no Código Penal” como está descrito no fim do artigo.7

Para ele, este artigo deve ser interpretado a luz do princípio da especialidade em relação ao crime de associação criminosa do art. 288 do Código Penal para que não haja possibilidade de distorção de pensamentos com relação a lei 12.850/2013 que configura apenas organizações criminosas, portanto, o dolo específico desse crime é a associação para a prática de crimes típicos de milícias, tais como: homicídio, lesão corporal, extorsão, sequestros, ameaças. Essa limitação do entendimento, busca evitar o que se considera um excesso de punição ou a desconsideração da natureza do delito de milícia.

Tal dispositivo de lei busca reprimir de forma mais incisiva o avanço das milícias, reconhecendo seu caráter estruturado, armado e voltado à prática sistemática de crimes graves, como extorsão, homicídio e usurpação de função pública, configurando evidente ameaça à ordem pública e aos direitos fundamentais das populações por elas subjugadas.

Nas comunidades periféricas do RJ, o art. 288-A é o pivô repressivo: permite responsabilizar os agentes mesmo antes (ou independentemente) de provar cada delito-fim, pois o bem jurídico tutelado é a paz pública, segurança coletiva e a monopolização estatal da força.

2.4.2 Art. 5º da Constituição Federal

Além disso podemos analisar que a atuação miliciana fere direta e profundamente o núcleo essencial dos direitos fundamentais consagrados no Art. 5º da Constituição Federal, instaurando ordem paralela e negando, na prática, a titularidade e fruição de direitos fundamentais corroendo a soberania estatal. Esta negação prática dos direitos constitucionais geram uma reflexão sobre a falha estrutural e a responsabilidade do estado na proteção desses direitos.

O primeiro exemplo que se percebe ao ler o artigo é que o caput do art. 5º garante a inviolabilidade do direito à vida e à segurança. As milícias negam esses direitos ao instaurar a violência como regra primordial. A prática de homicídios, a imposição dos chamados “tribunais do crime” e as punições extralegais que corrompem os incisos LIV, LV por não permitirem o direito do contraditório e ampla defesa, além de substituírem o devido processo legal e o sistema judicial por meio de intimidação das vítimas descrito no inciso XXXV.

Analisando o artigo com maior destreza nota-se que há uma violação do inciso III com relação a tortura e o tratamento desumano ou degradante utilizados como métodos de disciplina e cobrança, transformam o espaço comunitário em uma zona de exceção, negando a dignidade da pessoa humana, fundamento basilar da República.

As milícias agem como o seu próprio poder Legislativo e Executivo “informal”, o que vai de encontro com o princípio da legalidade do inciso II. As “leis” impostas por elas como toques de recolher, tributos e proibições de negócios, obrigam o cidadão a fazer ou deixar de fazer algo que não é em virtude de lei, usurpando a competência estatal e cerceando a liberdade.

A conivência do Estado frente à atuação miliciana configura o que a doutrina de Direito Administrativo chama de “culpa do serviço” (faute du service) ou “falha no dever de proteção” (duty to protect). A falha é estrutural, manifestada pela omissão deliberada, pela conivência de agentes públicos (que configuram o braço armado ou político da milícia) ou pela incapacidade de fornecer segurança pública básica. Essa falha pode ensejar a responsabilidade internacional do Estado brasileiro, especialmente perante o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário.

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), como no paradigmático caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, estabelece que o Estado tem a obrigação de prevenir, investigar e punir violações de direitos humanos. Quando a violência é tolerada ou praticada com participação estatal, ou quando as vítimas não têm acesso à justiça efetiva, o Brasil viola os princípios da obrigação de respeitar os direitos, o direito a vida e o direito a integridade pessoal.

A atuação das milícias ataca diretamente a ordem econômica, configurando uma grave violação dos direitos fundamentais econômicos. Ela não apenas pratica extorsão, mas assume o controle de atividades essenciais, instaurando um monopólio criminoso a partir da eliminação da livre concorrência art. 170 e incisos, como analisaremos a seguir.

2.4.3 Art. 170 da Constituição Federal

O art. 170 funda a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, observando princípios como livre concorrência, função social da propriedade, defesa do consumidor e do meio ambiente e redução das desigualdades. A partir desta análise, podemos destacar que as milícias constituem uma subversão sistêmica desse arranjo, ao instaurar monopólios coercitivos sobre cadeias essenciais tais como gás, transporte alternativo, TV, internet clandestinas e construção civil.

Cria barreiras de entrada e cartelização “à força”, eliminando a livre concorrência. Que resta demonstrado ao explorar mão de obra e expulsar empreendedores não alinhados, desincentiva investimento, formalização e a busca do pleno emprego; ao promover grilagem, parcelamentos irregulares e ocupações controladas, distorce a função social da propriedade e o uso racional do solo urbano; ao impor produtos e serviços sem qualidade, segurança ou qualquer regulação, suprime a defesa do consumidor e o direito de escolha, bem como a possibilidade de ressarcimento; ao extorquir ou excluir pequenos comerciantes que não aderem ao esquema, destrói o tratamento favorecido às pequenas empresas e o dinamismo local; ao realizar obras irregulares, despejo clandestino de resíduos e ocupação desordenada, agrava a degradação ambiental; e, por fim, ao substituir o mercado regulado por uma economia paralela violenta, aprofunda desigualdades regionais e sociais e afugenta serviços públicos e investimentos formais.

Em síntese, as milícias corroem os vetores axiológicos do art. 170 ao trocar a regulação constitucional do mercado por coerção armada e extração predatória de renda nas periferias, negando, na prática, a promessa de uma ordem econômica voltada à dignidade e ao desenvolvimento inclusivo.

2.4.4 Art. 37º, §6º da Constituição Federal

À luz do art. 37, § 6º, da Constituição, a responsabilidade civil do Estado por danos causados “por seus agentes” é objetiva, ou seja, é um risco administrativo quando o comportamento é comissivo. Já nas omissões, a jurisprudência majoritária exige demonstração de culpa do serviço, que é demonstrada pela falha específica, negligência, imprudência ou imperícia, além de dano e nexo causal. Há, porém, exceções de dever específico de proteção, em que o STF reconhece responsabilidade objetiva mesmo diante de omissão, por exemplo um caso clássico: integridade física de detentos sob custódia estatal.

Em termos práticos para o fenômeno miliciano, o raciocínio se estrutura em três camadas: I- dever jurídico específico de agir; II- possibilidade concreta de atuação preventiva ou repressiva; e III- nexo causal entre a falha estatal identificável e o dano sofrido pela coletividade ou por vítimas determinadas.

2.5 O caso do Rio de Janeiro: entre o enfraquecimento estatal e a consolidação miliciana

No mundo moderno, as polícias viraram o instrumento central de coerção para manter a ordem pública. A vigilância privada perdeu espaço e o controle da segurança passou ao poder público.

Por conta disso houve a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em 2008, que mudaram o jogo no Rio de Janeiro. A partir do Complexo do Alemão, no fim do ano de 2010, deve ser analisada não apenas como uma estratégia de policiamento, mas como um condutor para a reconfiguração da criminalidade que, paradoxalmente, criou condições para a expansão do modelo miliciano.

O investimento no policiamento ostensivo elevou o “custo operacional” do domínio territorial armado. Conforme apontam estudos do Laboratório de Análise da Violência (LAV/UERJ) e análises de Ignacio Cano8, essa pressão estatal forçou uma adaptação das dinâmicas criminais. O projeto acelerou a perda de território do Comando Vermelho e de outras facções, pois as facções, antes focadas no confronto bélico e no domínio territorial ostensivo, migraram para uma economia ilegal mais silenciosa e terceirizada, buscando, à semelhança das milícias, a infiltração na máquina pública e a “blindagem institucional”.

Entretanto há um problema a ser discutido a partir deste fato de que segundo Alba Zaluar destaca-se que essa migração não eliminou o crime, mas o reorganizou, favorecendo grupos que operam sob a lógica da extorsão e do controle de mercados, características centrais da atuação miliciana. As organizações se espalharam pelas periferias, reforçaram suas redes e armas, buscaram apoio em agentes da segurança e em políticos e abriram novas formas de ocupar e administrar áreas. A disputa virou também um campo de narrativas e símbolos.

Todavia, a promessa de uma possível “retomada do território” por parte do Estado esbarrou em alguns limites estruturais intransponíveis. A política de pacificação dependia de um tripé muito restrito, que seria: o policiamento comunitário, as políticas sociais robustas (UPP Social) e coordenação intersetorial. O problema neste ponto foi que houve uma falha na implementação da vertente social transformou a presença do Estado em mera ocupação militarizada. A crise fiscal a partir de 2015 apenas acelerou o desmantelamento desse projeto, expondo a fragilidade do controle estatal. As falhas estruturais observadas nas UPPs revelam, na prática, a ineficácia das garantias constitucionais analisadas no item anterior (2.4).

A resposta criminal leu essas fragilidades. Facções retomaram armas longas em corredores estratégicos. Confrontos cresceram em alguns complexos. A confiança de moradores oscilou. Sem controle externo efetivo e mecanismos de integridade, casos de abuso policial minaram legitimidade local e alimentaram discurso antiestatal.

De acordo com os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública9 e do IPEA, percebe-se que eles expõe que o vácuo deixado pelo colapso das UPPs não foi preenchido pela ordem legal, mas pelo recrudescimento da violência e pela consolidação de poderes paralelos que, valendo-se da ausência estatal, impõem sua própria “lei”. O que apenas demonstra que a militarização sem cidadania é insustentável.

3 A violação sistemática de direitos humanos e a falência seletiva do Estado de Direito

A manifestação miliciana na comunidade periféricas do Rio de Janeiro, excede a mera ausência estatal ou ate mesmo um simples vácuo de segurança pública, ela se manifesta como uma expressão estrutural de uma falência seletiva do estado de direito, onde o um poder paralelo substitui as funções governamentais e distorce a atuação estatal para fins criminosos.

Em muitos territórios, o poder público encontra-se ausente ou conivente, e a presença das milícias que acabam assumindo o lugar do Estado, mas sem qualquer tipo de legitimidade democrática. Como consequência disso, a intensificação de um cotidiano que é marcado pelo medo, pela coação e pela supressão de direitos básicos, como o direito à segurança, à liberdade de ir e vir, à integridade física e até mesmo à vida.

Diferente de um pensamento primordial de divergência estatal, a milícia não é um poder antagônico ao Estado, mas frequentemente seu braço operacional ou análogo ilegítimo.

No campo dos direitos humanos, a atuação miliciana impõe uma lógica de terror que afasta qualquer possibilidade de exercício da cidadania plena. Como afirmam Alba Zalular e Isabel S. Conceição, “a ausência de garantias estatais nas periferias urbanas é o que legitima, no imaginário local, a presença de poderes armados paralelos, ainda que estes operem pela violência”. Nesse sentido, o problema das milícias não pode ser tratado apenas como uma questão de segurança pública, mas como uma violação sistemática dos direitos humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) têm consistentemente responsabilizado o Estado brasileiro não apenas pelas ações diretas de seus agentes, mas pela falta de devida diligência em prevenir, investigar, punir e reparar as violações cometidas por terceiros (grupos armados). No mesmo sentido, estudos como o de Ignácio Cano (2012), em sua análise sobre violência armada e controle territorial no Rio de Janeiro, evidenciam que a ação de milicianos substitui o Estado por meio da imposição de normas próprias, operando uma espécie de privatização da força e da justiça.

Como citado no tópico anterior (2.4.2) o emblemático caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, embora focado inicialmente na violência policial, estabelece o paradigma de que a tolerância estrutural à violência letal em comunidades vulneráveis gera a responsabilidade internacional do país. Frente a esse cenário, o desafio analítico deste trabalho é demonstrar que a milícia é o sintoma mais perverso de uma falência seletiva, que gera a seguinte questão: o Estado é ausente para garantir direitos, mas presente ou conivente para permitir a exploração e a opressão?

4 REFERENCIAL TEÓRICO

Esta análise do impacto miliciano nos direitos humanos necessita um referencial teórico que ultrapasse as noções básicas de apenas grupos criminosos, olhando para o fenômeno como uma expressão complexa de poder paraestatal e de uma falência institucional. A presente análise se constrói a partir do diálogo entre a sociologia da violência, a criminologia crítica e os estudos de segurança pública, utilizando como pilares as obras de Alba Zaluar, Isabel Siqueira Conceição, Luiz Eduardo Soares, Ignacio Cano, juntamente com outros estudos em livros como Milicianos: O Submundo do Crime, da Polícia e da Política no Brasil, de Rafael Soares (2020), que abordam os conceitos de grupos paramilitares e milícias, suas características e implicações jurídicas e sociológicas.

O ponto de partida para a tese deste trabalho é a natureza da milícia como fenômeno híbrido, que se distingue dos grupos criminosos tradicionais pela sua íntima conexão com o aparato de segurança pública e o sistema político. Por exemplo, para Alba Zaluar, destacava-se que as milícias não são um fenômeno novo, mas têm raízes nas práticas paramilitares de “justiça privada” realizadas por seus integrantes que segundo ela, possuem vínculos diretos com instituições formais, exemplo de ex-policiais e outros agentes de segurança.

Já para Rafael Soares, em sua investigação detalhada, oferece um panorama sobre as milícias no Brasil, consolida essa tese ao rastrear o surgimento e a evolução das milícias no Rio de Janeiro, evidenciando que elas se consolidam não apenas pela ausência estatal, mas pela conivência e participação de agentes públicos.

Analisando seu surgimento, evolução e impacto social. Segundo o autor, as milícias se consolidaram em um contexto de ausência estatal em comunidades vulneráveis, onde agentes de segurança pública, inicialmente sob a justificativa de combater o tráfico de drogas, instauraram um regime de exploração e opressão. A obra destaca que as milícias, diferentemente de grupos paramilitares, operam essencialmente fora da legalidade, com atividades criminosas como extorsão, controle territorial, exploração imobiliária e serviços clandestinos.

Agora quanto a Isabel S. Conceição, ela argumenta que as milícias não são apenas grupos criminosos, mas sim formas de poder territorializadas, que exercem controle social, político e econômico sobre os espaços urbanos. Elas não se limitam à violência física, mas se consolidam pela regulação do cotidiano dos moradores, controlando inclusive práticas legais e ilegais. “As milícias se institucionalizam nos territórios. Elas regulam o uso do espaço, decidem quem pode abrir comércio, quem pode circular, e até quem pode viver ali.”10

Um dos pontos mais fortes de sua análise é a crítica à dicotomia legal vs. ilegal. Ela argumenta que as milícias transitam nesses dois mundos, sendo muitas vezes toleradas ou até legitimadas por parte do Estado, seja por omissão, conveniência política ou corrupção direta.

Já quando estudamos Luiz Eduardo Soares, para ele, as milícias como poder paraestatal que ocupa os vácuos do Estado, captura instituições e transforma territórios em mercados coercitivos de segurança, transporte, gás, TV e internet, com extração de renda e controle político local. Ele sustenta que o problema no Rio deixou de ser o tráfico como eixo central e passou a ser a expansão miliciana, pela sua capilaridade, enraizamento em agentes públicos e capacidade de governar áreas inteiras.

O substrato da análise de Soares demonstra a milícia não se desmonta com operações episódicas. Além de apresentar que vê a violência como produto de desigualdade e racismo estrutural, é reforçado por perspectivas como a de Vera Malaguti Batista, que, a partir da criminologia crítica, questiona a seletividade penal e o papel do Estado na produção da violência. A milícia, portanto, é a manifestação da distorção do Estado, onde a força e o poder coercitivo são utilizados para oprimir a população que o Estado tem o dever fundamental de proteger.

5 O Pacto de San José e o dever estatal de proteção

Como inicialmente apresentado no tema 2.4.2 deste artigo, o avanço das milícias, caracterizado pela captura de funções estatais e pela violência sistemática, configura uma grave violação dos direitos humanos que encontra no Pacto de San José da Costa Rica a gramática jurídica para responsabilizar o Estado brasileiro.

A Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), mais conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica” foi subscrito em novembro de 1969, porém só entrou em vigor no Brasil em 25 de setembro de 1992, com o decreto 678/1992, que estabelece deveres positivos do Estado de prevenir, investigar, punir e reparar violações a direitos fundamentais. A Convenção possui estatura supralegal no direito interno, conferindo força normativa reforçada ao controle de atos públicos.

Os arts. 1.1 e 2 impõem o dever de respeitar e garantir direitos e o dever de adotar medidas internas de efetivação. É sob este prisma que a conduta omissiva ou conivente do Estado brasileiro diante das milícias é avaliada.

A jurisprudência da Corte Interamericana consolidou o padrão de devida diligência, um teste objetivo para avaliar a conduta estatal. Em um caso chamado Velásquez Rodríguez vs. Honduras, firmou-se que o Estado responde também por omissões quando sabia ou deveria saber de riscos reais e não atuou com diligência para impedir o resultado, investigar de forma séria e punir os responsáveis, além de reparar integralmente as vítimas. Esse teste exige três elementos centrais. Dever jurídico de agir. Conhecimento ou cognoscibilidade do risco. Atuação eficaz e oportuna para prevenir e, se o dano ocorrer, investigar e sancionar. A insuficiência genérica de políticas não basta. É necessária a demonstração de falha concreta de proteção.

Casos posteriores detalharam as obrigações procedimentais. Em decisões contra o Brasil, como Favela Nova Brasília vs. Brasil, a Corte reforçou exigências de investigações independentes, céleres e com perspectiva de gênero e raça quando cabível, bem como medidas estruturais de não repetição. Em precedentes sobre paramilitarismo e conivência estatal, como Mapiripán vs. Colômbia, a Corte reconheceu a responsabilidade internacional quando a falta de controle e a tolerância institucional viabilizam a violência privada e a captura territorial. Esses marcos definem parâmetros claros de prevenção, atuação investigativa, sanção e reparação.

A lógica da responsabilidade civil do Estado (Art. 37, §6º, da Constituição Federal), que exige a reparação por danos causados por seus agentes, se repete e se amplifica na esfera internacional. O Brasil responde por ação, quando agentes públicos praticam atos milicianos e por omissão quando, sabendo da existência da milícia, não adota medidas proporcionais para desmantelá-la, investigar seus crimes e garantir a reparação das vítimas.

Em síntese, o Pacto de San José fornece a gramática jurídica para enquadrar violações graves de direitos por ações e omissões estatais. Estabelece um teste objetivo de devida diligência. Exige respostas estatais proporcionais e verificáveis. Orienta a interpretação constitucional interna. E sustenta remédios estruturais quando há falhas sistemáticas de proteção. O Pacto de San José não é apenas referência histórica, mas instrumento normativo que impõe obrigações concretas ao Estado e sua inefetividade no caso das milícias gera responsabilidade internacional.

Conclusão

Esta análise, demonstrou que as milícias no Rio de Janeiro não constituem apenas um desvio episódico da criminalidade, mas formam uma específica e estruturada forma de poder paraestatal. O fenômeno miliciano articula agentes públicos e privados, captura territórios periféricos, explora mercados locais e regula a vida cotidiana por meio da violência. Sob a ótica jurídico-constitucional e interamericana analisadas neste artigo, essa atuação viola o tipo penal do art. 288-A do Código Penal, compromete o núcleo essencial dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição, distorce a ordem econômica prevista no art. 170, além de expor a insuficiência do cumprimento do dever estatal de proteção previsto no art. 37, §6º, em diálogo com os deveres de devida diligência da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Os dados empíricos sobre a expansão territorial e populacional das milícias na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, somados à literatura sociológica e criminológica, evidenciam que se trata de um projeto estável de controle social e extração de renda, e não de simplesmente uma criminalidade difusa. As milícias assumem as funções quando há um vácuo na proteção estatal, como segurança, regulação de serviços e resolução de conflitos, mas o fazem por meio da coerção e da supressão de direitos.

A substituição do direito estatal por normas impostas por grupos armados revela que os espaços periféricos passam a operar sob um regime de exceção permanente naquele local, no qual a legalidade constitucional se torna um discurso abstrato e distante, ou seja, quase inexistente, da experiência concreta dos moradores.

Do ponto de vista analítico-jurídico, o trabalho evidenciou que a atuação das milícias configura violação estrutural de direitos humanos e uma falha do dever estatal de proteção. A combinação entre os art. 37, §6º, da Constituição e os arts. 1.1 e 2 da Convenção Americana impõe ao Brasil obrigações positivas claras de prevenir, investigar, punir e reparar as violações praticadas por milícias.

Quando o Estado conhece ou deveria conhecer todo o risco imposto por esses grupos e independente dos acontecimentos se mostra omisso, seletivo ou conivente, evidentemente consolida-se a responsabilidade interna e internacional. A jurisprudência interamericana, a exemplo dos casos Velásquez Rodríguez, Mapiripán e Favela Nova Brasília, oferecem parâmetros objetivos para qualificar essa omissão como descumprimento do dever da devida diligência, sobretudo em contextos de violência reiterada contra as populações mais vulneráveis.

O fenômeno miliciano não aparece, apenas, como uma exceção ao Estado de Direito brasileiro, mas sim como uma expressão de sua fragilidade estrutural nos seus territórios periféricos. A partir do momento em que o Estado se retrai na garantia de direitos e se mantém presente apenas pela via repressiva, abrem-se condições para que agentes estatais e privados reconfigurem a violência em arranjo econômico e político estável. Portanto as milícias se tornam apenas o sintoma mais agudo de uma ordem jurídica que se aplica de forma desigual: cidadãos com direitos plenos em algumas áreas, populações submetidas a poderes armados paralelos em outras.

A principal contribuição deste trabalho é mostrar que a questão das milícias não se esgota apenas na esfera do direito penal. Mas trata-se de problema dos direitos humanos e de uma clara responsabilidade estatal, que envolve a forma como o Estado organiza sua presença nas periferias, distribui proteção e admite ou não a captura de suas estruturas por grupos armados. O estado deve reconhecer as milícias como violação estrutural de direitos e uma falha de proteção, pois este é o passo necessário para reorientar políticas públicas, decisões judiciais e o próprio debate público sobre segurança.

As milícias representam a negação concreta da cidadania e do Estado de Direito nas periferias. Enfrentá-las exige restaurar a legitimidade do poder público e o valor normativo dos direitos humanos.

 

 Notas

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1. HIRATA, Daniel; COUTO, Maria Isabel. Mapa dos grupos armados no Rio de Janeiro: As milícias se tornaram claramente a principal ameaça à segurança pública no Grande Rio e sua expansão é facilitada pela ineficácia dos esforços de combate ao crime organizado dos últimos 40 anos. [S. l.], 1 set. 2022. Disponível em: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/mapa-dos-grupos-armados-no-rio-de-janeiro/. Acesso em: 10 nov. 2025.

2. ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 68, p. 11-23, set./out. 2007.

3. MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.

4. SOARES, Rafael. Milicianos: como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele. Rio de Jaeiro: Objetiva, 25/10/2023. 320 p.

5. No contexto do crime organizado e das milícias, especialmente no Rio de Janeiro, “polícia mineira” é uma designação popular para práticas extralegais de justiça privada realizadas por grupos paramilitares ou policiais fora da lei.

6. ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 68, p. 11-23, set./out. 2007.

7. GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 16. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2022.

8. CANO, Ignacio. “Os donos do morro”: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública; LAV-UERJ, 2012.

9. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública: 2023. Ano 17. São Paulo: FBSP, 2023

10. ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel Siqueira. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: que paz? Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 15, n. 68, p. 11-23, set./out. 2007.

 

 Referências

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