Modernidade líquida e processo civil

Modernidade líquida e processo civil

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Para a coluna do mês de outubro, proponho uma reflexão sobre o diálogo entre a tese da «Modernidade Líquida», de Zygmunt Bauman, o Processo Civil e seus institutos. Essa está inserida, na verdade, em uma contextualização maior, fruto das discussões e aperfeiçoamentos teóricos que discorri (e segue indefinido, porém, com melhores contornos) com o Prof. Dr. Darci Guimarães Ribeiro nas salas de aula da Universidade do Vale do Rio dos Sinos: os estágios socioculturais do processo – sequencialmente, de forma breve, voltarei nesse ponto.

Não nego que para aqueles que são estritamente dogmáticos, o tema pode parecer um pouco fantasioso. Portanto, vamos estabelecer uma frase a título de prólogo para a compreensão do ponto da minha insurgência nessa relação.

Dentre os seus diversos pensamentos, para Protágoras, «o ser o humano a medida de todas as coisas». Isso significa, para fins desta reflexão, sem divagar na filosofia – a qual, vale menção, tenho muito a aprender; reconhecendo a minha limitação sobre ela –, que por mais óbvio que pareça, a percepção sobre o que é «Direito» parte do ser humano.

O que chamo atenção com a frase de Protágoras é que já que o ser humano (ou coletividade ou, simplesmente, sujeito, como queiram) é o ponto de partida do nosso processo de interpretação das coisas, proposições e reformulações no Direito possuem intrínseca lógica com esse ponto balizador.

Na matéria do mês passado (setembro de 2022), que levou o título de «As formas de resolução de conflitos e o seu papel no direito processual brasileiro hodierno», apresentei algumas linhas teóricas sobre esse raciocínio que são de extrema pertinência para este prólogo.

Ainda (e sempre) em J. J. Calmon de Passos, rememoro o seu pensamento do «Direito como um produto social», isso é, desenvolvido pelo ser humano e para ser utilizado por ele. Caso esse pensamento com a ideia do saudoso Prof. Galeno Lacerda, para quem o «processo reflete uma realidade social específica». O que eu concluo deste prólogo: tanto o Direito, quanto o processo, não estão lacrados em uma cápsula inviolável e desconexa da sociedade; pelo contrário, afinal, as movimentações ou transformações sociais refletem diretamente e indiretamente nos seus desenvolvimentos – aqui, grosso modo, a ideia dos «estágios socioculturais do processo», recortando de René Descartes (razão) a Karl Popper (ética).

Com essa base, avançamos para o tema desta matéria: «os tempos líquidos e o direito processual (civil)».

Zygmunt Bauman foi um sociólogo polonês que desenvolveu a amplamente difundida tese da Modernidade Líquida.

Em síntese, o pilar dessa tese está na constatação de que «hodiernamente», diferentemente do passado (e logo adentraremos nesse ponto), não mais é possível contar com previsibilidade, estabilidade, rigidez ou solidez nas estruturas da sociedade, ou, ainda, nos conceitos e nas ideias.

Para que seja possível a compreensão da teoria de Bauman é primordial que se associem o «hodierno», pragmaticamente falando, observando, de forma ampla, as dimensões da sociedade e do próprio indivíduo, com o passado, metodologicamente situado naquilo que Bauman denomina – logo no prólogo de sua Magnum Opus – por Modernidade Sólida, ou seja, a Modernidade Cartesiana, a Modernidade caracterizada pelo sujeito racional (em viés estrito).

Não que deixamos de ser racionais – e por isso a ênfase no «estrito» –, no entanto, o contraponto apresentado pela Modernidade Líquida está assentado na percepção de que aquela sociedade hegemonicamente composta por indivíduos que interpretavam as coisas de maneira binária, ou seja, daquela sociedade cartesiana, em que as ideias, os conceitos e as ações humanas eram previsíveis e estáveis a partir de uma simples proposição de as coisas serem ou não e se são é porque existe um método racionalmente compreensível que permite esse resultado – chamando atenção, aqui, para a tese de René Descartes –, é muito distante dessa manifestação social que temos na atualidade.

A Modernidade Líquida, ou os tempos líquidos, está presente em inúmeros exemplos cotidianos (exemplificativamente, como a «caracterização de famílias», «identidade», «relações humanas», «revisão da dimensão do medo», «trabalho», «educação» etc.).

Não posso ser intelectualmente desonesto e afirmar que não existem outros teóricos (entre filósofos e sociólogos) que dissertam sobre essa transformação (como Niklas Luhmann e Edgar Morin, por exemplo), entretanto, por uma questão de preferência, visto a magnitude do estudo proposto por Bauman, assim como, coerência metodológica com as minhas pesquisas, costumo trabalhar com a sua tese, mesmo que discorde que isso que ele chama por Modernidade Líquida seria a «Pós-Modernidade».

Agora, o ponto alcantil desta reflexão.

Fenomenologicamente, sem nos apegarmos a compreensão de todo o conturbado cenário do século XX, não posso descartar que inexistiram ressignificações na sociedade e no próprio indivíduo que implicaram, diretamente, na formulação, reformulação e, até mesmo, na extinção de instituições jurídicas e processuais.

Epistemologicamente, o que eu busco destacar é que, em detrimento ao reducionismo (característico) da modernidade cartesiana, essa tese concentrada na Modernidade Líquida carrega a retomada da «complexidade» na relação entre o sujeito e a coisa.

Portanto, falar sobre o «processo em tempos líquidos» não é afirmar que estamos diante de uma significação instável, limitada ou, até mesmo, imprevisível; na verdade, falamos de um direito processual condizente com as nuances do cenário social (já dito) «hodierno».

Vejamos as modificações legislativas operadas no direito processual brasileiro nas últimas décadas: evidencia-se a busca em proporcionar uma equalização do Direito e do processo ao cenário narrado – a ideia da «efetividade processual» é, neste ponto, um exemplo presente em muitos cursos de Direito Processual Civil (embora sem a conexão ora apresentada, o que, evidentemente, não é uma crítica).

Por exemplo, se refletirmos sobre o Código de Processo Civil de 1973, o paradigma ordinário é, para dizer o mínimo, onipresente.

Não estou criticando os adeptos da «ordinarização do processo», mas chamo atenção para os problemas dessa tentativa de buscar trazer tudo para um plano comum, como se fosse uma panaceia procedimental, no plano «hodierno».

Verdade seja dita: o Código de 1973 não foi elaborado a partir desse «cenário líquido da sociedade». Se tinha um belíssimo código processual – estruturalmente muito bem desenvolvido –, entrementes, sua narrativa era estritamente reducionista, ocasionando na lapidação das instituições e das teorias do processo, da época, em mesmo sentido. Aliás, vale menção de que aquilo que fugia à essa narrativa, era trabalhado em um plano de técnica diferenciada por meio de procedimento diverso (procedimentos especiais).

Minha missão com esta breve reflexão não é fuzilar o Código de Processo Civil de 1973, tampouco promover uma hecatombe aos processualistas daquela época – até porque, em termos de ciência processual brasileira, considero esse período como a belle époque do processo, com inúmeros processualistas que nos serão referência para sempre.

Na linha de apontar o Código de Processo Civil de 1973 e os movimentos legislativos processuais das últimas décadas, o que se pretende é elucidar que o processo está em um infinito movimento de ressignificação para atender os fins que dele se espera. Nisso, se se tem um Novo Código, é porque o antigo não mais comportava consolidações legislativas diante de uma ruptura completa de sua genealogia, um antagonismo em relação à manifestação dos institutos da sociedade. Cá, finalmente, o ponto da minha fala.

Vejamos, por exemplo, a jurisdição. Essa noção de jurisdição que temos como uma ideia de ordem e organização de um sistema representado por uma coletividade delimitada por um território por meio da aplicação do texto da lei, como é a proposta de Giuseppe Chiovenda (grosseiramente falando), é algo que hoje é particularmente frágil, como podemos ver a ampliação da ideia de jurisdição para situações que até então nada se relacionavam com ela. «Novos contornos da ideia de jurisdição», assim podemos dizer.

Outro exemplo, a tutela provisória, um tema que para mim é muito caro. Essa transformação social retrata, senão, a sua genealogia.

Hodiernamente, levando em conta a obra «Brevidade da Vida», de Sêneca, a nossa percepção sobre o tempo é completamente distinta, isso falando em sentido que desde meados do século passado houve uma espécie de aceleração na forma de como levamos a nossa vida.

A ideia da cultura do imediatismo – termo paradoxal – é preponderante hodiernamente.

Isso, portanto, faz surgir uma necessidade de um «desenvolvimento de um instituto processual que seja apto a combater essa pressa pela obtenção do resultado»: aqui está a tutela provisória – isso, claro, de maneira geral, não se pode esquecer que existem situações que necessitam de uma urgência pela sua natureza.

Outro exemplo, e por fim, os «negócios jurídicos processuais», os quais retratam que a tese de Ovídio Araújo Baptista da Silva estava correta. Dogmaticamente, como enfatizado anteriormente, existia a crença de que o procedimento comum, no caso, ordinário, seria capaz de suportar toda a carga de peculiaridades que as relações jurídicas apresentam.

Inexoravelmente, os negócios jurídicos processuais vão muito além do apontado, todavia, não posso ignorar o pensamento de que o desenvolvimento desse instituto processual em nada teria com o «aumento de possibilidades de situações e de contextos que temos nesse mundo líquido».

Esses, dentre outros, exemplos mostram o quanto esses tempos líquidos implicam no nosso direito processual.

Do outono europeu, aqui em Florença, na Itália, deixo um fraterno abraço e aguardo vocês nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) para discorrermos um pouco mais sobre o conteúdo da matéria deste mês e sugestões para as próximas.

Vejo vocês em novembro!

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Guilherme Christen Möller

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