Resumo: A multiparentalidade tem transformado significativamente a estrutura das famílias brasileiras, trazendo consigo novos desafios jurídicos, especialmente no campo do Direito Sucessório, a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai ou mais de uma mãe, reconhecidos legalmente, altera a lógica tradicional da sucessão hereditária, exigindo uma reinterpretação das normas previstas no Código Civil. Esse fenômeno exige que os operadores do Direito considerem não apenas vínculos biológicos, mas também laços socioafetivos no momento da partilha de bens. Este artigo analisa de forma objetiva como a multiparentalidade impacta a sucessão legítima, com destaque para a partilha entre descendentes e ascendentes em famílias compostas por múltiplos genitores. A abordagem prioriza o aspecto prático, com reflexões sobre a divisão dos quinhões hereditários, os conflitos que podem surgir em virtude de vínculos afetivos não convencionais e a importância do planejamento sucessório preventivo diante dessa nova realidade, o estudo propõe uma leitura clara e acessível do tema, voltada tanto a profissionais quanto ao público leigo. Conclui-se que o reconhecimento da multiparentalidade no direito das sucessões é não apenas uma necessidade jurídica, mas uma resposta à diversidade familiar contemporânea, reforçando valores como igualdade, afeto e segurança jurídica na transmissão do patrimônio.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Herança. Transmissão patrimonial.
1. Introdução
Nas últimas décadas o panorama das relações familiares sofreu transformações significativas. A tradicional família nuclear deu lugar a diferentes arranjos, nos quais o vínculo afetivo, rompendo as barreiras estritamente biológicas, ganha papel central.
Nesse contexto, o instituto da multiparentalidade que admite mais de um genitor ou mais de uma genitora para um mesmo filho ou filha, aparece como resposta jurídica à complexidade dessas formas familiares.
No direito sucessório também se observam impactos importantes, já que a transmissão patrimonial por causa de morte pressupõe a identificação dos herdeiros e seus vínculos jurídicos com o de cujus. Assim, o presente artigo busca examinar como a multiparentalidade interfere no direito das sucessões, quais são os desafios práticos e quais os caminhos possíveis para o ordenamento jurídico se adequar a essa realidade.
A relevância do tema decorre da necessidade de segurança jurídica aos laços familiares e patrimoniais, bem como de respeito aos princípios de igualdade e dignidade humana, diante de novas formas de filiação e de convivência familiar.
2. A evolução da família e o reconhecimento da multiparentalidade
A família, como instituição social, não é estática, durante muito tempo a concepção dominante era a figura formada pelo pai, mãe e filhos biológicos. Com o passar do tempo, culturas e realidades sociais se modificaram a convivência estendida, a adoção, a filiação socioafetiva e outras modalidades de composição familiar passaram a ter reconhecimento jurídico.
Nessa linha, a multiparentalidade surge quando uma pessoa tem reconhecidamente mais de um pai ou mais de uma mãe, seja por via biológica, seja por adoção, seja por reconhecimento socioafetivo. Trata-se de fenômeno que rompe o paradigma de apenas dois genitores e atesta que a filiação não se esgota no vínculo sanguíneo ou registral tradicional, mas incorpora o afeto, a convivência e o cuidado.
Esse novo panorama reflete um valor crescente à afetividade e à pluralidade das famílias, e demanda que o direito, inclusive o das sucessões, se adapte. Se o ordenamento jurídico reconhece múltiplos vínculos de filiação, então, no campo sucessório, cabe investigar como esses vínculos repercutem na vocação hereditária e na partilha de bens.
3. Conceito e características da multiparentalidade
Entende-se por multiparentalidade a situação em que um indivíduo possui juridicamente mais de um pai ou mais de uma mãe, reconhecidos como genitores ou genitoras, não havendo exclusão automática de qualquer vínculo. As características centrais são o reconhecimento formal ou judicial do vínculo parental (biológico, adotivo ou socioafetivo), a existência de convivência, cuidado, afetividade e responsabilidade por parte do genitor ou genitora para com o filho ou filha, a não exclusão de outro vínculo parental já existente, a multiparentalidade admite que coexistam genitores biológicos e socioafetivos ou genitoras diversas, o portador do vínculo multiparental pode exercer direitos e assumir deveres decorrentes da filiação, inclusive no direito sucessório.
Importante salientar que o reconhecimento do vínculo multiparental depende de requisitos concretos, tais como a prova da convivência, da estabilidade do vínculo, ou de ato voluntário de filiação, variando conforme a jurisprudência e a prática registral.
A filiação socioafetiva e a multiparentalidade decorrem da valorização do afeto, da dignidade da pessoa humana e da proteção à entidade familiar, o que impulsiona o reconhecimento jurídico desses vínculos.
4. O direito sucessório no Brasil: panorama geral
O direito sucessório trata da transmissão de bens, direitos e obrigações de uma pessoa falecida (de cujus) para os herdeiros ou legatários, mediante sucessão legítima (quando operada por força da lei) ou testamentária (quando operada pela vontade do testador).
No sistema brasileiro, a ordem de vocação hereditária e as regras de partilha estão disciplinadas no Código Civil. A sucessão legítima atribui aos herdeiros necessários como descendentes, ascendentes e cônjuge/companheiro, a parcela da herança exigida pela lei.
Entretanto, essa sistemática parte de pressupostos clássicos de parentesco e de convivência familiar. A alteração da visão tradicional de família com ingresso das uniões estáveis, da filiação socioafetiva e da multiparentalidade, impõe reflexão sobre a adequação das normas sucessórias a essa nova realidade.
Do ponto de vista prático, surge o desafio de identificar todos os herdeiros, determinar o quinhão de cada um, avaliar a concorrência desses herdeiros, e ainda observar os princípios que norteiam o direito das sucessões, como a proporcionalidade, a igualdade entre herdeiros, a proteção ao legítimo dos herdeiros necessários, e a segurança jurídica.
5. Reflexos da multiparentalidade no direito sucessório
A multiparentalidade impacta o direito sucessório em diversos planos, sobretudo no que tange à sucessão dos descendentes, dos ascendentes e à partilha entre herdeiros reconhecidos em distintos vínculos parentais.
5.1 Sucessão dos descendentes em famílias multiparentais
Quando o de cujus deixa descendentes e estes possuem multiparentalidade, emergem questões práticas, cada genitor reconhecido pode constituir vínculo sucessório com o filho ou filha falecido. Assim, o filho pode herdar de todos os seus pais ou mães reconhecidas, ampliando a rede de vínculos hereditários. Isso implica considerar mais de uma linha de filiação para efeitos de vocação hereditária. Logo, há potencial para que um filho figure como herdeiro em várias origens, da mãe biológica, da mãe socioafetiva, do pai biológico, do pai socioafetivo, conforme reconhecido.
Esse cenário exige cuidados a identificação clara de todos os genitores com efeitos sucessórios, a quantificação do quinhão de cada herdeiro, e a análise de eventual concorrência entre pais, mães e companheiros/companheiras dos genitores. Ainda, é relevante verificar se há testamento ou disposição de última vontade que modifique a ordem legal.
O planejamento sucessório deve observar essa configuração multiparental, de modo a evitar litígios, assegurar partilha equitativa e preservar a vontade do falecido e dos herdeiros.
5.2 Sucessão dos ascendentes em famílias multiparentais
Em hipótese em que o falecido não deixe descendentes ou cônjuge/companheiro, mas possua múltiplos pais ou mães reconhecidos (biológicos ou socioafetivos), surge a interrogação, como se dar-á a partilha entre vários ascendentes? A lei originalmente prevê regra de convocação dos ascendentes em grau mais próximo, mas não contempla expressamente situação de multiparentalidade.
Nesse contexto, impõe-se a aplicação de critérios de proporcionalidade, igualdade e razoabilidade para assegurar que todos os ascendentes reconhecidos não sejam preteridos arbitrariamente. Assim, a partilha deve observar que os vínculos afetivos e de filiação reconhecidos tenham tratamento equivalente, a fim de evitar hierarquização indevida entre genitores biológicos ou socioafetivos.
Concomitantemente, é necessário considerar a qualidade do vínculo (convivência, cuidado, reconhecimento formal), bem como eventuais concorrências com cônjuge/companheiro sobrevivente ou outros ascendentes. Essa dinâmica multiparental requer que o intérprete adapte a norma à realidade familiar concreta, de modo a respeitar os vínculos jurisdicionalmente reconhecidos.
5.3 Conflitos, lacunas e desafios práticos
A introdução da multiparentalidade no campo sucessório não ocorre sem desafios. Em primeiro lugar, há lacuna legislativa específica as normas do Código Civil não previram originalmente a hipótese de múltiplos pais ou mães para fins sucessórios, o que gera insegurança e multiplicação de litígios. Em segundo lugar, há risco de contestações patrimoniais ou desvirtuamento do instituto, quando se busca exclusivamente vantagens sucessórias, sem efetivo vínculo familiar. Em terceiro lugar, há a necessidade de clareza e planejamento, testamentos, pactos sucessórios, regimes de bens, para que os envolvidos sejam identificados e os efeitos sucessórios previstos.
Ainda, há desafios práticos ligados ao registro civil, à comprovação do vínculo socioafetivo, à quantificação de quinhões entre herdeiros de diferentes linhas parentais, e à eventual concorrência de herdeiros necessários com herdeiros testamentários ou legatários. O profissional que assessora em planejamento sucessório deve estar atento a essas contingências e promover mecanismos que evitem conflitos, polêmicas e incertezas.
6. Considerações finais
A multiparentalidade representa uma evolução significativa no direito de família e, por consequência, no direito das sucessões. Ao reconhecer juridicamente mais de um pai ou mais de uma mãe, o ordenamento jurídico assume a complexidade das relações familiares contemporâneas e exige adaptação das regras sucessórias.
No direito sucessório, os efeitos são diversos, reconhecimento de novos herdeiros, ampliação de vínculos sucessórios, necessidade de reavaliação da partilha e dos quinhões, bem como do planejamento patrimonial. Ainda que existam lacunas normativas e desafios práticos, o princípio da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da afetividade orientam a interpretação das normas em favor da inclusão dos vínculos multiparentais.
Para a atuação preventiva e pacífica, recomenda-se que os indivíduos em configurações multiparentais contem com planejamento sucessório concreto, testamentos específicos e cláusulas claras que contemplem as múltiplas filiações, evitando litígios entre herdeiros e garantindo a vontade do de cujus.
Em síntese, a multiparentalidade não é apenas fenômeno sociológico ou de direito de família, trata-se de realidade jurídica que exige resposta eficiente do direito sucessório, para que a herança seja transmitida com justiça, clareza e segurança em face da pluralidade familiar. O futuro apontará para aperfeiçoamentos legislativos e para uma maior sistematização dessa situação, mas o presente já exige atenção e adequação por parte dos operadores do direito.
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