Imagine a seguinte situação: a pessoa está recebendo normalmente seu Benefício de Prestação Continuada (BPC) até que recebe uma notificação do INSS informando que ele foi cancelado e pior: ela será obrigada a devolver valores recebidos indevidamente.
Parece surreal, não é mesmo? Mas é algo que acontece com frequência na advocacia previdenciária.
Neste artigo, me debruçarei um pouco mais sobre a temática, dando uma maior atenção ao BPC.
Caso você não saiba, o Benefício de Prestação Continuada é um Benefício Assistencial gerido pelo INSS e previsto na Lei 8.742/1993, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).
Em regra, o benefício de um salário mínimo mensal é pago às pessoas com deficiência, sem idade mínima estabelecida, ou pessoas idosas, acima de 65 anos de idade, em condição de baixa renda que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.1
Agora vamos voltar e refletir sobre a situação que relatei no início.
Como estamos diante de um benefício direcionado às pessoas de baixa renda, fica evidente que será quase impossível que elas devolvam algum valor ao erário, principalmente levando em conta que o valor do BPC é de um salário mínimo nacional por mês, quantia está praticamente insuficiente para a manutenção do cidadão, principalmente levando em conta os elevados índices de inflação dos dias de hoje.
Além disso, os beneficiários encontram-se, em regra, em situação de maior risco social comparado aos demais cidadãos, pois estamos falando de pessoas com deficiência e pessoas idosas.
Portanto, um cuidado maior é necessário quando falamos na quebra do direito dos beneficiários do BPC.
Voltando ao assunto, vamos dizer sobre o que a lei diz sobre a questão em estudo neste artigo.
A única menção sobre a devolução de valores na legislação previdenciária está presente no art. 115, II, da Lei 8.213/1991, que cita:
Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios:
II – pagamento administrativo ou judicial de benefício previdenciário ou assistencial indevido, ou além do devido, inclusive na hipótese de cessação do benefício pela revogação de decisão judicial, em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da sua importância, nos termos do regulamento; 2–3
O parágrafo 1º do dispositivo também menciona que o desconto será feito em parcelas, conforme dispuser o regulamento, salvo má-fé.
Em tese, essa norma é aplicada aos benefícios previdenciários revistos pelo INSS quando são constatados erros de cálculo e valores excedentes pagos equivocadamente.
Esse excedente pode ser cobrado do beneficiário por intermédio de descontos no valor atualizado do benefício que foi revisado administrativamente, conforme acabamos de ver.
Porém, não é o caso do BPC.
Digo isso pois não pode haver erro de cálculo neste benefício, já que ele é sempre igual a um salário mínimo. Então, nenhum tipo de cálculo irá alterar isso.
Portanto, o INSS não pode realizar cobranças ou descontos de valores recebidos de boa-fé pelos beneficiários do BPC, em nenhuma hipótese, pois não existe, inicialmente, nenhuma norma legal que regule isso.
Como o INSS é uma autarquia federal, pertencente à Administração Pública do Brasil, ele deve obedecer estritamente o que está escrito na lei.
Na falta de normas reguladoras, não pode o Instituto tomar providências por iniciativa própria, de forma discricionária.
Para evitar a devolução de valores à título do BPC, o advogado deverá demonstrar a condição de boa-fé de seu cliente.
Na minha visão, só o fato de a pessoa receber o benefício por muito tempo comprova esta condição, principalmente levando em conta que o CadÚnico é atualizado com frequência e que são feitas avaliações periódicas com os beneficiários.
A jurisprudência brasileira segue a mesma linha de raciocínio em relação ao que foi explicado, incluindo a informação que o BPC possui caráter alimentar.
Nesse sentido, o TRF-4 entende que:
PREVIDENCIÁRIO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL (LOAS). IRREPETIBILIDADE DOS VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ. DEVOLUÇÃO DE VALORES
INEXIGÍVEIS. Declarada judicialmente a irrepetibilidade de quantia recebida a título de benefício assistencial, considerando-se sua natureza alimentar e o recebimento de boa-fé por parte do beneficiário, devem ser restituídas à parte autora as parcelas indevidamente pagas em face da cobrança, no âmbito administrativo, dos valores declarados inexigíveis.4
Ou seja, os valores recebidos “indevidamente” de LOAS não devem ser restituídos à Previdência Social, em conta do princípio da irrepetibilidade dos alimentos.
No caso acima, o beneficiário já tinha pago valores ao INSS. Após a decisão, foi decidido que a pessoa teria direito à restituição das parcelas indevidamente pagas à Previdência Social.
O STJ também entende pela impossibilidade de devolução de valores à Previdência Social:
1. É pacífico no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento, segundo o qual é incabível a devolução de valores recebidos de boa-fé pelos beneficiários do INSS, pois reconhecidas a natureza alimentar da prestação e a presunção de boa-fé do segurado. Incidência da Súmula 83/STJ.
2. Agravo regimental não provido.5
Como já era de se esperar, o TRF-4 acompanha o posicionamento do STJ:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. CANCELAMENTO DO BENEFÍCIO. FRAUDE. NÃO-COMPROVAÇÃO DE DOLO OU MÁ-FÉ. PRESUNÇÃO DE RECEBIMENTO DE BOA-FÉ. RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE PELO INSS. IMPOSSIBILIDADE.
[…]
2. A boa-fé do segurado no recebimento no recebimento dos valores pagos a maior pelo INSS, aliada ao caráter alimentar das prestações previdenciárias, faz com que se mostre inviável o acolhimento da pretensão de repetição das verbas pela Autarquia Previdenciária. Precedentes desta Corte e do STJ.6
Falando em STJ, até o início deste ano estava pendente de julgamento o seu Tema Repetitivo número 979, que versava sobre a devolução de valores previdenciários.
Na sessão de julgamento do dia 10/03/2021 foi fixada a seguinte tese pelo Relator do Processo, Ministro Benedito Gonçalves:
Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido.7
Ou seja, os valores recebidos por erro administrativo devem ser devolvidos ao erário, exceto se for comprovada a boa-fé objetiva do beneficiário.
Vale dizer que no julgamento do Tema, os Ministros modularam os efeitos da decisão, sendo aplicada aos processos distribuídos na primeira instância a partir da publicação do acórdão, ocorrida no dia 23/04/2021.
Além disso, o Relator afirmou que o beneficiário não pode ser penalizado pela interpretação errônea ou má aplicação da lei previdenciária ao receber valor além do devido, uma vez que também é dever-poder de a administração bem interpretar a legislação, o que me parece coerente.
Por fim, o Ministro Benedito Gonçalves relembra a jurisprudência do próprio STJ quanto a não devolução dos valores pagos indevidamente à Previdência Social, pois é visível o caráter alimentar da verba, devendo ser respeitado o princípio da irrepetibilidade do benefício, se presente a boa-fé objetiva daquele que recebe parcelas tidas por indevidas pela Administração.
Visualizando todo o contexto, acredito ser impossível a devolução de valores recebidos pelo beneficiário do BPC com boa-fé.
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Referências
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1. BRASIL. Lei 8.742/1993. Disponível em: https://bit.ly/3EekxsW. Acesso em: 14 de set. 2021.
2. BRASIL. Lei 8.213/1991. Disponível em: https://bit.ly/3zcAVXd. Acesso em: 14. de set. 2021.
3. Cabe dizer que o próprio TRF-4 já relativiza esta norma. Confira: AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. IRREPETIBILIDADE DOS VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ POR FORÇA DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. É descabida a devolução de valores ao Instituto Nacional do Seguro Social, quando o segurado os recebeu de boa-fé, dado o caráter alimentar das prestações previdenciárias, com relativização da norma contida no arts. 115, II, da Lei nº 8.213/91. (TRF-4 – AG: 50456689020194040000 5045668-90.2019.4.04.0000, Relator: OSNI CARDOSO FILHO, Data de Julgamento: 04/02/2020, QUINTA TURMA).
4. TRF-4 – APL: 50185545520194049999 5018554-55.2019.4.04.9999, Relator: OSNI CARDOSO FILHO, Data de Julgamento: 23/06/2020, QUINTA TURMA
5. STJ, AgRg no AREsp 820.594/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 01/03/2016.
6. TRF4, AG 5037171-29.2015.404.0000, SEXTA TURMA, Relator (AUXÍLIO OSNI) HERMES DA CONCEIÇÃO JR, juntado aos autos em 19/11/2015.
7. BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo 979. Disponível em: https://bit.ly/3kdui2D. Acesso em: 15. de set 2021.