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Normas gerais em matéria tributária, ausência de lei complementar e federalismo: uma análise da jurisprudência do STF

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Para Aurélio Andrade, Pedro Mineiro e Bruno Feitosa

 

Tema recorrente nas discussões dogmáticas e jurisprudenciais é a relação entre a competência legislativa concorrente entre os entes políticos da federação em matéria tributária e as funções da lei complementar no direito brasileiro, em especial no que diz respeito ao estabelecimento de normas gerais. Tal questão é posta em debate, sobretudo, quando se analisam o art. 24, I e seus parágrafos e o art. 146, caput, todos do texto constitucional:

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;

(…)

1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.

2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.

3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.

4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

………………………………………………………………………………………………………………….

Art. 146. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:

a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.

Longe de esgotar todo o manancial do acervo de jurisprudência da Suprema Corte sobre o problema e de todas as nuances doutrinárias a ele relativas, tarefa absolutamente impossível para o espaço de que dispomos, pretende-se apenas analisar alguns arestos do STF que discutem os dispositivos supratranscritos, para buscar compreender qual a ratio que prevalece quando se conjugam as disposições citadas: o federalismo fiscal e/ou a hierarquia (formal ou material) normativa entre leis complementares e leis ordinárias.

Com efeito, a partir do advento da Constituição de 1988, o STF por vezes teve de lidar com a inteligência conjunta dos parágrafos do art. 24 e do art. 146 (especialmente o inciso III e suas alíneas) do texto constitucional.

Uma dessas oportunidades se deu quando análise da possibilidade de instituição de adicionais de IR por Estados e Municípios. É que, na redação original da Constituição de 1988, o art. 155, II, previa que os Estados e o DF poderiam instituir “adicional de até cinco por cento do que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos territórios, a título do imposto previsto no art. 153, III, incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital”. Com base no citado dispositivo e nos arts. 24, §3º e 34, §3º do ADCT, alguns Estados instituíram o referido adicional. Contudo, a edição das leis estaduais foi julgada inconstitucional pelo STF, ao fundamento de que os conflitos de competência advindos não teriam sido objeto de regulamentação por lei complementar, nos termos do art. 146 da Constituição. Assim, no julgamento do RE 149.955/SP,1 o art. 6º da Lei Paulista nº 6.352/88 foi julgado inconstitucional ao fundamento de que o fato gerador, a base de cálculo e contribuintes dos adicionais a serem instituídos não haviam sido definidos por meio de lei complementar, razão pela qual careceria de validade a legislação estadual.

Passagem do voto do Min. Celso de Mello põe em evidência o argumento federativo e uma suposta existência de hierarquia formal entre leis complementares e leis ordinárias:

Nessa condição formal, a lei complementar, que veicula regras disciplinadoras do conflito de competências tributárias e que dispõe sobre normas gerais de direito tributário, evidencia-se como espécie normativa que, embora necessariamente obediente às diretrizes traçadas pela Carta da República, constitui manifestação superior da vontade jurídica do próprio Estado Federal. A autoridade dessa lei complementar – cuja gênese reside no próprio texto da Constituição – vincula, em sua formulação normativa, as pessoas políticas que integram, no plano da Federação brasileira, a comunidade jurídica total.

Ainda que a matriz do adicional ao imposto de renda situe-se na esfera da própria Constituição, que confere competência impositiva a todas as pessoas estatais, pré-ordenando-lhes o exercício das atividades tributantes e limitando o poder de conformação do legislador ordinário em matéria tributária, não se pode prescindir, na concreta instituição dessa nova espécie de tributo estadual, das prescrições gerais e uniformizadoras constantes da lei complementar referida pelo art. 146 da Carta Fundamental.

Situação diversa se deu quanto à possibilidade de instituição do IPVA pelos Estados, mesmo diante da ausência de lei complementar a uniformizar o referido tributo no território nacional. Com efeito, desde 1997, no julgamento do AI 167.777 AgR/SP,2 a Suprema Corte firmou entendimento no sentido da possibilidade do exercício da competência pelos Estados e pelo DF com base no art. 24, §3º da Constituição. Mais recentemente, muito embora destinada a solver questão relativa à guerra fiscal entre os Estados quanto ao local onde o imposto deve ser recolhido, o STF novamente ressaltou a competência plena dos Estados para instituí-lo, mesmo diante da ausência de lei complementar, com fulcro no art. 24, §3º da CR/88, quando do julgamento do RE 1.016.605/MG3 (Tema 708 de Repercussão Geral):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 708. CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE DE VEÍCULOS AUTOMOTORES (IPVA). RECOLHIMENTO EM ESTADO DIVERSO DAQUELE QUE O CONTRIBUINTE MANTÉM SUA SEDE OU DOMICÍLIO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. (…)

3. Embora o IPVA esteja previsto em nosso ordenamento jurídico desde a Emenda 27/1985 à Constituição de 1967, ainda não foi editada a lei complementar estabelecendo suas normas gerais, conforme determina o art. 146, III, da CF/88. Assim, os Estados poderão editar as leis necessárias à aplicação do tributo, conforme estabelecido pelo art. 24, § 3º, da Carta, bem como pelo art. 34, § 3º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT.

Esse argumento também avalizou a instituição do ITCMD pelos estados brasileiros, salvo no caso de cujus que possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior, consoante se decidiu no Tema 825 de Repercussão Geral (RE 851.108/SP):4

Recurso extraordinário. Repercussão geral. Tributário. Competência suplementar dos estados e do Distrito Federal. Artigo 146, III, a, CF. Normas gerais em matéria de legislação tributária. Artigo 155, I, CF. ITCMD. Transmissão causa mortis. Doação. Artigo 155, § 1º, III, CF. Definição de competência. Elemento relevante de conexão com o exterior. Necessidade de edição de lei complementar. Impossibilidade de os estados e o Distrito Federal legislarem supletivamente na ausência da lei complementar definidora da competência tributária das unidades federativas. (…)

3. A combinação do art. 24, I, § 3º, da CF, com o art. 34, § 3º, do ADCT dá amparo constitucional à legislação supletiva dos estados na edição de lei complementar que discipline o ITCMD, até que sobrevenham as normas gerais da União a que se refere o art. 146, III, a, da Constituição Federal. De igual modo, no uso da competência privativa, poderão os estados e o Distrito Federal, por meio de lei ordinária, instituir o ITCMD no âmbito local, dando ensejo à cobrança válida do tributo, nas hipóteses do § 1º, incisos I e II, do art. 155.

4. Sobre a regra especial do art. 155, § 1º, III, da Constituição, é importante atentar para a diferença entre as múltiplas funções da lei complementar e seus reflexos sobre eventual competência supletiva dos estados. Embora a Constituição de 1988 atribua aos estados a competência para a instituição do ITCMD (art. 155, I), também a limita ao estabelecer que cabe a lei complementar – e não a leis estaduais – regular tal competência em relação aos casos em que o “de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve seu inventário processado no exterior” (art. 155, § 1º, III, b).

5. Prescinde de lei complementar a instituição do imposto sobre transmissão causa mortis e doação de bens imóveis – e respectivos direitos -, móveis, títulos e créditos no contexto nacional. Já nas hipóteses em que há um elemento relevante de conexão com o exterior, a Constituição exige lei complementar para se estabelecerem os elementos de conexão e fixar a qual unidade federada caberá o imposto.

Coisa distinta, porém, se deu no julgamento da ADI 1917/DF.5 Naquela oportunidade, a Lei Distrital nº 1.624/97 havia estabelecido a dação em pagamento como causa de extinção do crédito tributário. A referida lei foi reputada inconstitucional pela Suprema Corte, por violação ao art. 146, III, da CR/88. Vale salientar que a inclusão da dação em pagamento apenas foi incluída no art. 156 do CTN em 2001. Ou seja, nesse caso não haveria de se cogitar em exercício de competência plena pelo DF, mas sim de descompasso com as normas gerais em matéria tributária, em especial no que diz respeito àquelas relativas ao modo de extinção do crédito, matéria esta disciplinada pelo Digesto Tributário.

Em 2008, no julgamento da ADI 124/SC,6 o STF reputou inconstitucionais normas da Constituição do Estado de Santa Catarina (e de seu respectivo Ato de Disposições Constitucionais Transitórias) que veiculavam a extinção de crédito tributário por transcurso de prazo para apreciação de recurso em sede de processo administrativo. Novamente, nesta oportunidade a Suprema Corte entendeu que prescrição e decadência somente podem ser disciplinadas por lei complementar federal, uma vez que consistentes em normas gerais de Direito Tributário, sujeitas aos ditames do CTN.

Por sua vez, no julgamento do RE 437.776 AgR/MG,7 o art. 24, §3º da CR/88 foi invocado como fundamento a justificar a incidência da CPMF sobre movimentação financeira de sociedades cooperativas antes da edição da lei complementar a dispor sobre o tratamento diferenciado àquelas entidades, de natureza de norma geral. Idêntico raciocínio foi adotado no julgamento do RE 141.800/SP8 e na ADI 2811/RS,9 que cuidavam da incidência do ICMS sobre as cooperativas de consumo.

Interessante julgamento envolvendo a matéria se deu no julgamento da SS 3679 AgR/RN,10 versando sobre contribuições previdenciárias de servidores públicos do estado potiguar. Com efeito, por intermédio da EC 41/2003, incluiu-se o §18 no art. 40 do texto constitucional, segundo o qual “incidirá contribuição sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos”. Após, a EC 47/2005 acrescentou o §21 no mesmo dispositivo para dispor que “a contribuição prevista no § 18 deste artigo incidirá apenas sobre as parcelas de proventos de aposentadoria e de pensão que superem o dobro do limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 desta Constituição, quando o beneficiário, na forma da lei, for portador de doença incapacitante”. Cuidando-se, portanto, de imunidade, deveria ser disciplina por lei complementar federal. Ocorre que Lei Complementar do Estado do Rio Grande do Norte e Lei Estadual isentavam a contribuição previdenciária em benefício de aposentados e pensionistas portadores de doença incapacitante. O STF reputou a validez dos dispositivos estaduais, invocando os art. 24, §§ 3º e 4º da Constituição, uma vez não editada a lei complementar federal a dispor sobre o instituto. É ver trecho elucidativo do voto Relator do feito, o Min. Gilmar Mendes:

A decisão deve ser mantida. A isenção conferida pelo art. 106 da Lei Complementar Estadual 308/05, c/c o art. 3º, parágrafo único, da Lei Estadual 8.633/05, tem eficácia plena e imediata, diferentemente da imunidade prevista no art. 40, §21, com eficácia limitada, condicionada à edição de lei complementar. Assim, resta afastado o conflito aparente entre normas, em favor da aplicação dos regramentos estaduais.

Os institutos da imunidade e da isenção tributária não se confundem. É perfeitamente possível ao Estado conceder, mediante lei, isenção de tributo de sua competência, visto que está atuando nos limites de sua autonomia. Seguindo o mesmo raciocínio, também é possível ao ente federado revogar tal isenção.

Enquanto não editada a lei a que se refere o §21 do art. 40 da CF/88, vigem os diplomas estaduais que regem a matéria, que só serão suspensos se, e no que, forem contrários à lei complementar nacional (CF, art. 24, §§3º e 4º).

Na decisão agravada, consignei que, mesmo no caso de edição de lei complementar capaz de conferir eficácia à imunidade estabelecida pelo art. 40, §21, CF, ainda é possível a concessão de isenções que se coadunem com a limitação constitucional ao poder de tributar.

Outro julgado elucidativo – para cuja solução se valeu de grande esforço hermenêutico o Min. Gilmar Mendes – é o RE 917.950 AgR/SP.11 Com efeito, por meio da EC 33/2001, alterou-se a regra-matriz do ICMS-Importação, para assegurar a incidência do tributo estadual “ainda que não seja contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua finalidade”. A constitucionalidade da referida alteração foi julgada constitucional pelo STF, em sede de repercussão geral (RE 439.796/PR12 – Tema 171), no qual fixou-se a seguinte tese: “após a Emenda Constitucional 33/2001, é constitucional a incidência de ICMS sobre operações de importação efetuadas por pessoa, física ou jurídica, que não se dedica habitualmente ao comércio ou à prestação de serviços”. Dada a alteração na regra-matriz, ela deveria ser disciplina por lei complementar, e assim o foi, pela LC 114/02. A peculiaridade do caso reside no fato de que o Estado de São Paulo editou a Lei nº 11.001/01, 10 dias após a promulgação da EC 33/2001. A solução dada pelo STF, nesse caso, foi no sentido de que a lei paulista não poderia ser julgada inconstitucional, em face do art. 24, §3º da Constituição, mas sim ineficaz, até a edição da LC 114, de 16/12/2002. Veja-se excerto do voto do Min. Gilmar Mendes, redator do acórdão do RE 917.950 AgR/SP:

Não se pode punir com a pecha de inconstitucional o ato do ente federativo diligente que, amparado por autorização constitucional e no exercício de sua competência tributária, alterou seu arcabouço normativo estadual para expressar o exato contido naquela norma.

É bem verdade que a efetividade desse poder tributante dependeria de lei complementar federal, todavia não seria caso de inconstitucionalidade formal ou material, mas, tão somente, de condição de eficácia daquele exercício após a superveniência da legislação necessária.

Caso contrário, exemplificadamente no Estado de São Paulo, chegaríamos a situação na qual, em razão de até hoje não ter havido alteração normativa quanto ao contribuinte do ICMS-importação após a Lei Complementar Federal 114/02, o referido Ente Federativo estaria impedido de cobrar o aludido tributo.

Pensando consequencialmente, daríamos azo a incontáveis ações de repetição de indébitos, a promover desfalque ainda maior nas combalidas receitas estaduais.

Portanto, penso que, conjugando a linha do precedente da Corte, deve-se compreender que as leis anteriores à Lei Complementar 114/02 e posteriores à EC33/01 não são inconstitucionais.

A questão resolve-se no plano da eficácia.

Vale dizer, no período após a EC e anterior à Lei Complementar Federal, não haveria inconstitucionalidade, mas tão só ineficácia da legislação estadual até 17.12.2002 (vigência da Lei Complementar 114/02), de sorte que seriam insubsistentes créditos tributários advindos de fatos geradores anteriores a tal marco.

Em outras palavras, apenas a partir da edição da Lei Complementar 114/02, observado o princípio da anterioridade nonagesimal, é que estados estão autorizados a realizar a cobrança de ICMS-importação, nos termos da Emenda Constitucional 33/01. Preserva-se, portanto, a validade das leis estaduais editadas após a referida emenda.

A exposição dos julgados acima revela que a jurisprudência da Suprema Corte quanto à matéria, como poderia de se esperar, não é uniforme. Há, portanto, (i) julgados que rechaçam legislações estaduais sem edição das normas gerais por lei complementar – como no caso dos adicionais de IR; (ii) julgados que reputam válidas as leis estaduais, no exercício da competência plena dos entes subnacionais diante da ausência da lei complementar nacional – como no caso do IPVA e (iii) julgados que adotam um tertium genus, entendendo pela ineficácia da legislação estadual até a edição da lei complementar, como no caso do ICMS-Importação paulista, como viemos de expor.

Estamos em que a posição mais acertada é aquela afinada com a jurisprudência e o setor doutrinário que entende pela corrente (ii), com base no texto constitucional, no princípio federativo e na ausência de hierarquia formal entre leis complementares e leis ordinárias.

Cumpre uma vez mais ressaltar que o problema posto no presente artigo pressupõe, de forma simultânea, duas circunstâncias jurídicas fundamentais. A primeira delas constitui a exigência de lei complementar para a disciplina de determinada matéria – no caso, o estabelecimento de normas gerais em matéria tributária por meio de lei complementar. A segunda circunstância consiste, por sua vez, na ausência desta mesma lei complementar em um ambiente de condomínio legislativo, à moda de RAUL MACHADO HORTA,13 como ocorre na competência legislativa concorrente, consoante preceito do art. 24 da Constituição.

A peculiaridade que caracteriza o Direito Tributário – e a discussão que dela advém – reside exatamente na fonte legislativa responsável pela edição das normas gerais. Diferente do que ocorre na grande maioria das matérias elencadas no referido dispositivo constitucional (como, por exemplo, procedimentos em matéria processual ou proteção à infância e à juventude), em matéria tributária as normas gerais não são editadas por lei ordinária federal, mas sim por lei complementar, nos termos do art. 146 da Constituição.

Nesse sentido, o figurino constitucional impõe a conjugação dos parágrafos do art. 24 com o art. 146 do texto constitucional. Só e tão somente isso. No mais, não se vislumbra outra diferença, no plano do Direito Positivo.

Por via de consequência, a primeira premissa que se deve asseverar é a da inexistência de hierarquia formal entre lei ordinária e lei complementar, conforme magistério doutrinário de  SOUTO MAIOR BORGES,14 JOHNSON BARBOSA NOGUEIRA,15 REINALDO PIZOLIO JR16  e CELSO RIBEIRO BASTOS.17 Com efeito, para além da distinção do quórum, a lei complementar se distingue da ordinária porque só pode versar sobre matérias especificamente disciplinadas pelo texto constitucional. SACHA CALMON bem explica a questão:

As leis complementares, inclusive as tributárias, são entes legislativos reconhecíveis formal e materialmente (forma e fundo), senão vejamos:

a) sob o ponto de vista formal, lei complementar da Constituição é aquela votada por maioria absoluta (quorum de votação de metade mais um dos membros do Congresso Nacional), a teor do art. 69 da CF;

b) sob o ponto de vista material, a lei complementar é a que tem por objetivo (conteúdo) a complementação da Constituição, quer ajuntando-lhe normatividade, quer operacionalizando-lhe os comandos, daí se reconhecer que existem leis complementares normativas e leis complementares de atuação constitucional. A matéria das leis complementares é fornecida pela própria CF expressamente.18

Ora, a Constituição que outorga competência aos entes tributantes para instituírem seus tributos é a mesma que lhes outorga competência plena para legislar à falta de lei complementar a regular normas gerais em matéria tributária. Daí a inexistência de hierarquia formal entre elas.

A inexistência de hierarquia formal entre leis ordinárias e complementares não conduz a raciocínio similar quando se analisa a questão hierárquica sob o ponto de vista material. Com efeito, porque destinada pela própria Constituição para reger determinadas matérias é que a lei complementar possui ascendência sobre a lei ordinária, condicionando-lhe a própria validade. Em matéria de normas gerais em matéria tributária, a hierarquia material encontra-se expressamente prevista no próprio art. 24, §4º da Constituição, ao consignar que “a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário”.

Ademais, não se pode prescindir de brevíssimas considerações a respeito do princípio federativo insistentemente insculpido no texto constitucional, em especial no âmbito do Direito Tributário. Se é certo que o federalismo se destina a descentralizar o poder e assegurar autonomia jurídica, política e administrativa aos entes que compõem a Federação, então deve-se supor que a Constituição assegura aos entes tributantes os meios para obter as receitas destinadas à consecução de seus objetivos, também constitucionais, vale salientar.

Do que resulta a consagrada rigidez da repartição de competências, ao menos quanto aos impostos, levada a cabo pelo constituinte em 1988. Ora, não se nega que, em especial quanto aos impostos a serem instituídos por Estados e Municípios, é preciso uniformizá-los, para que sejam evitadas invasões de competência e guerras fiscais. Daí ter atribuído a Constituição a competência ao Congresso Nacional para editar leis complementares destinadas a tais desideratos.

O problema exsurge quando o Congresso se omite do seu mister. Deve-se, nesse sentido, reputar inconstitucionais ou ineficazes leis ordinárias instituídas anteriormente à edição das leis complementares? A resposta nos parece inequivocamente negativa. Ora, em face da omissão do legislador complementar é necessário assegurar os meios de exercício da competência dos entes subnacionais. Tanto assim o é que o art. 24, §3º assim o faz. Acredita-se, em verdade, que tal disposição é um tanto desnecessária. A competência plena na ausência da norma geral é questão que nos parece implícita, exatamente porque se traduz em manifestação pura do princípio federativo em matéria de legislação concorrente, ainda que com isso se admita o risco de invasões de competência e guerras fiscais. O remédio para tais doenças, não se perca de vista o observador, foi dado pelo próprio texto constitucional: a edição das leis complementares para a uniformização das matérias a ela destinadas para regulamentação. Contudo, não querendo o médico prescrever o remédio, não se deve deixar o paciente morrer por omissão.

Some-se a isto a necessidade de interpretar o princípio federativo em sua faceta política. A lei complementar, como qualquer outra lei, é produto do Poder Legislativo, cuja atividade se insere em um ambiente político. E quem edita a lei complementar de normas gerais em matéria tributária? O Congresso Nacional. Interpretar que Estados e Municípios não possam exercer sua competência na ausência de lei complementar uniformizadora significa subordinar a autonomia jurídica e política dos entes subnacionais à vontade política do mesmo órgão que legisla para a União. Ou seja, trata-se, a nosso sentir, de raciocínio extremamente centralizador, em nada condizente com o regime federativo.

O caso do IPVA é emblemático. Mesmo após 34 anos de promulgação do texto constitucional, até hoje não foi editada a lei complementar veiculadora de normas gerais do referido tributo. Imagine-se reputar inconstitucionais todas as leis estaduais e distrital instituidoras deste imposto. Seria subordinar o exercício da competência dos entes à omissão política central. Isso para não citar que o prejuízo com a ausência de arrecadação não estaria encastelado apenas nos Estados, mas também nos Municípios, uma vez que, nos termos do art. 158, III, da Constituição, os Estados estão obrigados a repassar às municipalidades 50% da receita arrecadada com o IPVA. Como conciliar o caos advindo de uma situação hipotética como essa com o capricho legislativo da União é tarefa a que não nos dispomos realizar.

Não se nega, no presente trabalho, a envergadura da lei complementar no ordenamento jurídico nacional e tampouco a sua relevante função uniformizadora, porque aplicável às ordens municipais, estaduais e federal, no estabelecimento de normas gerais em matéria tributária. Contudo, a sua ausência não impede o exercício da competência plena por parte dos demais entes componentes de nossa Federação.

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José Antonino Marinho Neto

 

Referências

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1. STF, Pleno, RE nº 149.955/SP, Rel. Min. Celso de Mello, jul. 19/08/1993, DJ 03/09/1993.

2. STF, Segunda Turma, AI 167.777 AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, jul. 04/03/1997, DJ 09/05/1997.

3. STF, Pleno, RE 1.016.605/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, Redator do acórdão Min. Alexandre de Moraes, jul. 16/09/2020, DJe 16/12/2020.

4. STF, Pleno, RE 851.108/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, jul. 01/03/2021, DJe 20/04/2021.

5. STF, Pleno, ADI 1917/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, jul. 26/04/2007, DJe 24/08/2007.

6. STF, Pleno, ADI 124/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, jul. 01/08/2008, DJe 17/04/2009.

7. STF, Primeira Turma, RE 437.776 AgR/MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, jul. 02/12/2010, DJe 01/02/2011.

8. STF, Primeira Turma, RE 141.800/SP, Rel. Min. Moreira Alves, jul. 01/04/1997, DJ 03/10/1997.

9. STF, Pleno, ADI 2811/RS, Rel. Min. Rosa Weber, jul. 25/10/2019, DJe 07/11/2019.

10. STF, Pleno, SS 3679 AgR/RN, Rel. Min. Gilmar Mendes, jul. 04/02/2010, DJe 26/02/2010.

11. STF, Segunda Turma, RE 917.950 AgR/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, Redator do acórdão Min. Gilmar Mendes, jul. 05/12/2017, DJe 11/06/2018.

12. STF, Pleno, RE 439.796/PR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, jul. 06/11/2013, DJe 17/03/2014.

13. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.

14. BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, EDUC, 1975.

15. NOGUEIRA, Johnson Barbosa. Lei complementar e a competência legislativa estadual. Direito Tributário Atual, São Paulo, v. 13, p. 133-145, abr. 1994.

16. PIZOLIO JR., Reinaldo. Considerações Acerca da Lei Complementar em Matéria Tributária. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, São Paulo, v. 4, n. 14, p.173-206, jan./mar. 1996.

17. BASTOS, Celso Ribeiro. A inexistência de hierarquia entre a lei complementar e as leis ordinárias. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, São Paulo, v. 7, n. 26, p. 11-20, jan./mar. 1999.

18. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. A Lei Complementar como agente normativo ordenador do sistema tributário e da repartição das competências tributárias. Revista do Superior Tribunal de Justiça, Brasília, ano 28, v. 242, p. 665-685, abr./maio/jun. 2016.

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