O tema dos agentes de fato ainda é pouco explorado pela doutrina do direito administrativo. A complexidade do instituto é tamanha e os efeitos gerados podem extrapolar os limites da Administração e atingir outras funções estatais, como a jurisdicional, sendo necessária uma análise interdisciplinar. De acordo com Carvalho Filho1 , esse grupo de agentes não tem uma investidura regular no cargo, emprego ou função pública que desempenham e, mesmo assim, executam uma função em nome do Estado. Trata-se de situação excepcional, sem cominação legal, mas que é suscetível de ocorrer no âmbito da Administração Pública.
Os agentes de fato podem ser divididos em agentes necessários e agentes putativos. Os necessários desempenham funções públicas em uma emergência na qual o Poder Público deve agir, a exemplo de situações de calamidade, de modo que os efeitos de seus atos são confirmados pela Administração, em razão da situação de excepcionalidade. Já a figura do agente de fato putativo, enfoque deste texto, pode ocorrer no cotidiano das atividades administrativas, sendo que desempenha a atividade pública na presunção de que esta é legítima, embora não tenha existido investidura dentro do procedimento legal específico. Ou seja, o agente acredita que sua investidura é legítima e age como se os seus atos legais fossem, ignorando qualquer defeito ou falha que possa ter ocorrido para que assumisse a função pública. Por exemplo, quando o aprovado em concurso público não apresenta documento necessário à investidura na data da posse e Administração não verifica tais documentos. Não está falando aqui em situações de dolo, nem do agente e nem da Administração, mas sim, uma situação em que todos estão de boa-fé e há um vício na investidura.
É necessário pensar como são tratados os atos administrativos emanados dos agentes de fato putativos, doravante apenas agentes de fato, no que tange à sua validade e eficácia. Considerando Carvalho Filho, ainda que possam existir questionamentos desses atos no âmbito interno da Administração, externamente, o autor defende que deva ser considerada a teoria da aparência, ou seja, que os atos emanados por esse agente sejam considerados válidos e eficazes, de modo que não se prejudique o terceiro de boa-fé. Por exemplo, o débito tributário recebido e quitado por agente incompetente deverá ser convalidado pela Administração Pública, de modo que o contribuinte não seja mais o sujeito passivo da respectiva obrigação tributária.
Nota-se que a figura do agente de fato não se confunde com o usurpador de função, configurada no artigo 328 do Código Penal. O usurpador finge ser o que não é, sabe que está exercendo atribuições de agente público de modo indevido. Não se reveste nem da aparência da legalidade. Seus atos são considerados inexistentes pelo ordenamento jurídico.
O tema se torna mais complexo quando pensamos na infinidade de tipos de servidores que compõe tanto a Administração Pública, propriamente dita, como os membros dos demais poderes, o Legislativo e o Judiciário. Os juízes de primeira instância, por exemplo, são agentes públicos que ingressam na carreira por meio de concurso público para, essencialmente, exercerem a atividade jurisdicional do Estado, atuando de modo cooperativo e imparcial nos processos e via, preferencialmente, emanam uma sentença de mérito que produzirá efeitos entre as partes. Personificam, portanto, a função jurisdicional na solução dos conflitos. Desse modo, como afirma Daniel Amorim Assumpção Neves2 , a investidura do juiz de direito é um pressuposto de existência do processo, que pode atingi-lo tanto integralmente, quando inteiramente conduzido por um agente não devidamente investido, como parcialmente, quando somente alguns atos são realizados por tal agente e somente tais atos seriam considerados inexistentes. Uma sentença proferida nessas condições, portanto, seria inexistente perante o ordenamento jurídico de acordo com a teoria do direito processual civil.
A questão está em se pensar, nesse exemplo concreto, se a sentença emanada por um juiz de direito, considerado agente de fato, pode ser considerada ou não existente no ordenamento e, se sim, sua validade e eficácia.
Um argumento contra a consideração da existência e validade da sentença do “juiz de fato” é a compatibilidade com o princípio do juiz natural. Em que pese não ser explícito no ordenamento jurídico, é considerado a junção dos direitos fundamentais previstos nos incisos XXXVII e LIII do rol do artigo 5º da Constituição, os quais vedam a criação dos tribunais de exceção e que ninguém será julgado e condenado senão pela autoridade competente. Trata-se de vetor fundamental do princípio do devido processo legal. Como seria possível, então, considerar válida a sentença de um não devidamente investido?
Por outro lado, a insegurança jurídica de se considerar que por um defeito na investidura, um determinado juízo tenha seus processos tidos como inexistentes traria condições de instabilidade muito grandes para os jurisdicionados. Seja na tutela de conhecimento, seja na tutela satisfativa, um direito reconhecido ou um bem consumível atribuído a um dos sujeitos processuais que posteriormente deixariam de existir, gerariam uma demanda infinita no Judiciário. A análise do impacto das consequências práticas das decisões administrativas, controladora e judicial, por estar positivada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e considerada, portanto, uma norma sobredireito, também autoriza pensar a questão sob a perspectiva da segurança jurídica e do impacto ao jurisdicionado da inexistência de direitos já reconhecidos.
Ademais, há de se considerar a boa-fé dos jurisdicionados e a proteção da legítima confiança, que apesar de ser um princípio administrativo, entende-se aplicável a toda atividade estatal. O jurisdicionado acredita que o juiz é competente para resolver o conflito em razão do qual foi acionado. Ressalte-se por fim, que o princípio do juiz natural não é afetado pela consideração da validade da sentença proferida pelo juiz de fato. A teoria da aparência de ser o juiz, absoluta e relativamente competente para o ato é, segundo compreendo, capaz de sanar o vício na investidura, na medida em que todos os envolvidos na relação processual estão de boa-fé e sem qualquer intenção de direcionar o juízo competente. Trata-se de um possível caso de prorrogação de competência. A sentença seria proferida pelo juiz competente, seguindo as normas previstas no ordenamento, se não houvesse o defeito na investidura. Propugna-se pela prevalência da teoria administrativista aplicável ao “juiz de fato”, entendendo-se válidos e eficazes os atos emanados.
O tema é, de fato, complexo, gera discussões e merece um estudo mais aprofundado. O que se busca aqui é apontar o problema e a incompatibilidade teórica entre os dois ramos do direito, o administrativo e o processual civil, para um mesmo problema. Reforça-se, portanto, a necessidade da interdisciplinaridade dentro do ordenamento jurídico, para que sejam encontradas soluções para situações concretas que possam vir a ocorrer.
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Referências
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1. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo. Atlas, 2019. Versão Digital
2. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil– Volume único. 13 ed. Salvador. Ed. Juspodium, 2021. p. 167.