O Tribunal Superior do Trabalho, no início de junho, publicou o acórdão do Recurso de Revista AIRR nº 195-85.2020.5.12.0046, que abordou, especificamente, a prática de assédio eleitoral, no contexto das relações trabalhistas.1 Trata-se de um Acórdão extenso, em que a Corte Superior encaminha vários recados aos empregadores, sobre práticas eleitoreiras dentro do âmbito da relação de emprego.
No caso, é importante rememorar o cenário do qual exsurgiu o debate sobre o qual se debruçou o TST. As eleições municipais de 2020 foram marcadas por uma intensa disputa entre direita e esquerda, como um prelúdio do embate Lula e Bolsonaro, que acabou acontecendo nas eleições presidenciais de 2022.
Aquelas eleições foram muito diferentes. O Brasil é marcado por campanhas baseadas em propaganda televisa e abordagem “corpo a corpo” (carros de som, distribuição de “santinhos”, eventos com participação de candidatos, comícios, etc.); porém, em 2020 o mundo estava em meio à pandemia de SARS-COVID-19, assim, grandes aglomerações de pessoas não eram possíveis.
Diante desse contexto, as redes sociais, que já vinham influenciando o resultado de outras eleições pelo mundo, ganharam uma força extraordinária, e surgiram as “lives” de candidatos, ou apoiadores, que defendiam suas pautas e faziam sua campanha.
O modelo democrático contemporâneo transformou tudo em política. Economia é política; educação é política; convívio familiar e parental é política; meio ambiente é política. Assim sendo, o trabalho também é político.
Desde as eleições de 2018, primeira pós-Lava-Jato e pós-impeachment, todos os pleitos foram marcada por um intenso debate entre direita conservadora, representada (principalmente, mas não exclusivamente, por Jair Bolsonaro), e por uma esquerda progressista (representada por trás do guarda-chuva Lula/PT). As pautas de direita eram defendidas de forma aguerrida por empresários e detentores do Poder Econômico, na outra ponta, a esquerda tentava proteger trabalhadores de baixa renda, pobres e minorias.
As eleições de 2020, portanto, foram a reprodução desse debate no âmbito municipal, visto que os pleitos locais, principalmente em capitais e cidades-chave representam prelúdio das eleições presidenciais.
O pequeno resumo acima é para contextualizar um pouco o momento em que os fatos abordados pelo TST aconteceram, ou seja, um tempo de intensa disputa política, em que surgiu quase um “vale-tudo” eleitoral, pela vitória nas disputas de campanha.
Voltando ao precedente citado, trata-se da prática de o patrão, dono da rede de Lojas Havan (apoiador aberto de Jair Bolsonaro),2 obrigar empregados a assistir “lives” em apoio a certos candidatos, e se essa atitude é lícita, ou ilícita, apta a gerar danos indenizáveis.3
A prática de assédio moral nas relações de trabalho há muito tempo gera consequências no mundo jurídico. Existem inúmeros precedentes em que diversas práticas de assédio são coibidas, como constrangimentos em razão de cor, gênero, capacidade intelectual, carga excessiva de trabalho, metas inalcançáveis, enfim, várias práticas abusivas já geram o direito à reparação por danos morais. Porém, a conduta de assédio moral, por meio do constrangimento ao voto, é uma pauta um tanto quanto nova.
Por essa razão, que o relator, Ministro Alberto Bastos Balazeiro, foi um pouco além no voto, e realmente dissertou sobre o tema, mandando alguns recados fortes para empregadores, sobre a conduta de assédio eleitoral.
O ponto que mais chama a atenção no voto vencedor é que o TST fez questão de inserir o direito do trabalho no contexto democrático, como uma extensão das relações políticas. Assim, qualquer tentativa de intimidar empregados a votar num determinado candidato representa uma grave ofensa, não somente às relações de trabalho, mas ao próprio Estado Democrático de Direito:
“Portanto, o exercício da liberdade de convicção sobre as eleições e os candidatos inscritos na disputa eleitoral não pode ser subtraída ou publicizada contrariamente à vontade do eleitor por ser este pungido do medo de ver-se diante de situação de supressão de seus direitos trabalhistas. Entendimento em sentido diverso colide com os fundamentos basilares do sistema democrático brasileiro. Portanto, a ilícita imposição de voto (o assédio eleitoral) representa grave afronta à psique do trabalhador e gera fissuras diretas à própria democracia, na medida em que impede que a expressão popular seja verdadeiramente analisada no sistema eleitoral constitucionalmente instituído no país. Veja-se, não há que se cogitar a existência do livre exercício da consciência política se o trabalhador está diante do temor de perder o emprego em um país como o Brasil, cujos números absolutos revelam a existência de 8,5 milhões de desempregados no último trimestre (encerrado em fevereiro de 2024), conforme dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2023).”
Portanto, o voto deixa muito claro que a prática de assédio eleitoral é uma afronta a própria democracia, não sendo apenas algo pertencente à esfera privada empregado, mas que macula todo o contexto das relações de trabalho. Inclusive, o TST faz questão de afirmar que assumirá um papel ativo contra práticas “coronelistas” que relembram o “voto de cabresto”:
“Diante disso, a firme repreensão e a prevenção ao assédio eleitoral no mundo do trabalho são prioridades desta Corte trabalhista: este tipo de assédio (e todos os outros) é conduta odiosa e não se admite que seja proliferada como uma “versão atualizada do voto de cabresto, que marca processos eleitorais brasileiros ao longo da sua história”. Esta Corte não tolera quaisquer constrangimentos eleitorais impostos aos trabalhadores, em atenção estrita aos princípios basilares do Estado Democrático de Direito: liberdade de expressão, de voto e de convicção política; respeito às diretrizes constitucionais materiais e processuais; promoção dos direitos fundamentais trabalhistas; atuação direcionada à efetividade da justiça social.”
Nesse sentido, pedindo a máxima vênia ao Excelentíssimo Ministro Relator, o voto poderia ter abordado mais um ângulo da coação eleitoral no âmbito empregatício: o papel que as relações de trabalho tiveram ao moldar o modelo eleitoral/político contemporâneo. Os ideais em disputa nas eleições surgiram sobre as formas de abordagem das relações de trabalho, que são de exploração, por excelência.
Se rememorado as Revoluções Industriais, pegando o exemplo das intensas disputas de empregados por melhores condições de trabalho no final do século XIX e início século XXI, na Inglaterra, percebe-se que o combate entre a força individual do patrão versus o poder coletivo do empregado, é o fator que realmente marca a formação da democracia dita moderna.
Isso fica muito claro, quando quase todos os países possuem algum tipo de partido trabalhista. Além disso, no Brasil é evidente que muitos políticos são oriundos dos sindicatos de trabalhadores, o atual Presidente Lula tem suas raízes no movimento sindical.
Portanto, o TST, em uma nova oportunidade, pode reforçar o pacto democrático esclarecendo que as relações de trabalho já são política por si, e o patrão, dentro de seu poder diretivo, não pode cometer abusos, causando um odioso retrocesso e negando as raízes que formaram as democracias contemporâneas e a luta de classes. Essa história não pode ser esquecida, sob pena de os erros do passado se repetirem.
O TST mostrou convicção em seu voto, inclusive, na conclusão fez questão de arrolar algumas práticas consideradas assédio eleitoral:
“Diante de tudo quanto exposto, o assédio eleitoral representa grave atentado à democracia. Estará configurado quando observada qualquer ação do empregador ou de seus prepostos, com ou sem intencionalidade, relacionadas às eleições e/ou ao direito ao voto, a partir da qual são reproduzidas condutas (i) de caráter coercitivo ou discriminatório de cunho político; (ii) que influenciem ou obstem o exercício autodeterminado de escolha partidária ou de voto; (iii) que inibem, parcial ou totalmente, as escolhas políticas dos trabalhadores, tolhendo-lhes a liberdade; (iv) que instituam o psicoterror eleitoral (abusos de poder, dominação, intencionalidade).”
Agora, as empresas terão que se preocupar em manter um ambiente politicamente livre e saudável, para os seus trabalhadores, demonstrando o caráter infinito das práticas de ESG. Nesse caso, os eixos governança e social terão que atentar para que o ambiente empresarial não se torne um local de coação e restrição de liberdades políticas.
Campanhas eleitorais dentro das empresas acabam de se tornar um “campo minado”, e gestores terão que estar atentos a práticas permitidas ou proibidas, não fazendo mal algum organizar isso em uma forma de código de conduta, ou algo do gênero. Isso porque, dentro de um contexto de liberdade de expressão, os empregadores não poderão impedir seus empregados de debater política e externar suas opiniões de voto, mesmo no contexto empresarial. Por outro lado, o patrão pode impedir a campanha eleitoral aberta dentro de sua empresa, ou seja, que alguém distribua “santinhos” ou fale abertamente a todos, em algum tipo de reunião ou “mini-comício interno”.
O ponto nerval está em um quanto o empregador “obriga”, força, o seu empregado a prestar atenção na campanha eleitoral. A questão é que nas relações de trabalho sempre existe a sombra da demissão sem justa causa, definida no bom brasileiro em “manda quem pode, obedece quem tem Juízo”. Assim, os fatos tornam-se muito subjetivos, pois o medo de perder o emprego (real, em um país com tanto desemprego e alto grau de endividamento da classe trabalhadora) pode decorrer da simples expressão facial do patrão ou de fofocas vindo do RH.
Diante desse contexto, o melhor é deixar a campanha eleitoral fora da empresa, e somente respeitar a liberdade política do empregado. Uma maneira excelente de o empresário se orientar, é observar a Resolução n. 355/CSJT, de 28 de abril de 2023,4 em especial, o artigo 2º, que conceitua o assédio eleitoral:
“Art. 2º Para fins da presente Resolução, considera-se assédio eleitoral toda forma de distinção, exclusão ou preferência fundada em convicção ou opinião política no âmbito das relações de trabalho, inclusive no processo de admissão.
Parágrafo único. Configura, igualmente, assédio eleitoral a prática de coação, intimidação, ameaça, humilhação ou constrangimento, no intuito de influenciar ou manipular o voto, apoio, orientação ou manifestação política de trabalhadores e trabalhadoras no local de trabalho ou em situações relacionadas ao trabalho.”
Portanto, na véspera de mais uma eleição, agora municipais, é muito importante que empregadores priorizem o respeito à liberdade de voto do empregado, para evitar demandas trabalhistas desnecessárias, em razão da prática de assédio eleitoral. Ainda, fica a advertência que o Ministério Público do Trabalho se manterá alerta, no âmbito da proteção coletiva do trabalhador, contra o assédio eleitoral.
Os departamentos de compliance e responsáveis pelas medidas de ESG deverão prestar atenção ao precedente do TST, bem como às normativas aplicáveis à espécie, a fim de proteger as empresas de condenações que poderiam ser evitadas, e, igualmente, proteger a liberdade de expressão e voto dos empregados, doravante “colaboradores”.
Referências
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