O atraso na entrega de produtos e o direito do consumidor

O atraso na entrega de produtos e o direito do consumidor

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Com o advento da pandemia de Covid-19, observou-se uma significativa mudança nos padrões de consumo, particularmente no que diz respeito às transações comerciais realizadas por meio da internet. O aumento expressivo das compras online durante esse período resultou em uma transformação notável nos hábitos dos consumidores, impulsionando a economia digital e desafiando, por vezes, as estruturas regulatórias existentes.

Aponta Bruno Miragem:1

O comércio eletrônico de consumo observa grande crescimento no direito brasileiro, dadas as facilidades que permite, como a possibilidade de adquirir produtos e serviços sem ter de deslocar-se até o estabelecimento físico do fornecedor, ou a comparação de preços entre diferentes fornecedores.

Esse incremento no volume de compras online trouxe consigo desafios e reflexões no âmbito jurídico. O Código de Defesa do Consumidor, concebido em um contexto predominantemente presencial, viu-se confrontado com novas dinâmicas de relação de consumo, exigindo adaptações e interpretações atualizadas diante das especificidades do comércio eletrônico. O fenômeno do aumento nas compras online durante a pandemia destacou a necessidade de uma revisão constante das normas regulatórias para garantir uma proteção eficaz aos consumidores em um ambiente digital que perpassa por diárias evoluções.

Neste cenário, muito se questiona a relação entre o atraso na entrega de mercadorias adquiridas on-line e os direitos do consumidor. O primeiro ponto para o qual os consumidores e os fornecedores devem se atentar é o prazo limite de entrega, que deve ser fornecido no momento da aquisição de um produto, sob pena de violação ao artigo 39, XII, do CDC, que considera prática abusiva “deixar de estipular prazo para o cumprimento de sua obrigação”.

Estipulado o prazo pelo fornecedor, é esperado que o mesmo seja cumprido, em observância ao corolário da boa-fé objetiva e seus princípios correlatos, norteadores do Direito Contratual Brasileiro. Caso contrário, ocorrendo o atraso injustificado na entrega do produto adquirido, será considerado o descumprimento da oferta e o consumidor, a teor do que destaca o artigo 35 do CDC, poderá rescindir de imediato o contrato de consumo, dentre outras duas alternativas, menos utilizadas em casos de atraso na entrega.2

O inciso III do mencionado dispositivo possibilita ao consumidor exigir, desde logo, a rescisão do contrato de compra, com devolução imediata dos valores adiantados anteriormente, vez que extrapolado o prazo máximo de entrega, o consumidor não será obrigado a receber o produto.

Insta salientar, ainda, que esta alternativa não exclui o direito de arrependimento (ou desistência) consubstanciado no artigo 49 do CDC, o qual confere o prazo de sete dias para cancelamento da compra, com o lembrete de que o início do prazo se dá após o recebimento do produto, como entende a doutrina e jurisprudência.

O artigo 35 do CDC estabelece a possibilidade de rescisão contratual pelo descumprimento da oferta (o produto não chegou no limite máximo estipulado), conferindo ao consumidor o direito ao ressarcimento de todas as taxas embutidas. Por outro lado, o artigo 49 do mesmo diploma legal não isenta o consumidor de arcar, em princípio, com as taxas de transporte e de retorno, uma vez que a rescisão não se deu por culpa do fornecedor, mas tão somente pela liberalidade do consumidor ao desistir da compra.

Compreender esse ponto é fundamental para determinar quais valores estariam inclusos na devolução. Além disso, é crucial destacar que a razão da rescisão (por desistência em razão de arrependimento/ato potestativo ou por descumprimento contratual da oferta) faz diferença na prática, uma vez que possui enfoque em quem deu motivo à rescisão.

O mesmo artigo 35, III, do CDC não apenas confere a possibilidade de rescisão contratual, mas também abre espaço para a pleiteação de indenização por perdas e danos decorrentes do atraso na entrega. Essas compensações devem ser analisadas com cuidado em cada situação específica.

É importante ressaltar que o direito à indenização por danos materiais e morais não está condicionado ao mencionado dispositivo legal (possuindo fulcro no art. 14 do CDC), sendo independente do consumidor ter recebido ou não o produto.

Em outras palavras, o consumidor tem o direito de buscar compensação pelos danos sofridos, independentemente de ter rescindido ou não o contrato devido ao atraso na entrega. Isso significa que, mesmo optando por receber o produto, se houver prejuízos devido à entrega fora do prazo máximo estipulado, o consumidor pode buscar reparação por eventuais danos.

O mero atraso, em regra, não gera o dano apto a ser indenizado, não existindo um lapso temporal definido para o prejuízo, que deve tão somente ser analisado em concreto, considerando as circunstâncias e peculiaridades de cada caso. A título exemplificativo, destacam-se duas ementas relativas ao ano de 2023, de julgamentos da Egrégia 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO ORDINÁRIA – PRELIMINARES – VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE – REJEIÇÃO – COMPRA E VENDA DE MATERIAL DIDÁTICO ESCOLAR – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – APLICABILIDADE – ATRASO NA ENTREGA – FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – DANOS MORAIS – CONFIGURAÇÃO – IDENIZAÇÃO DEVIDA. I – Segundo a sistemática processual vigente, deve haver correspondência entre as razões recursais e a decisão hostilizada para que o recurso interposto seja admissível. II – De acordo com as disposições do Código de Defesa do Consumidor, é objetiva a responsabilidade do fornecedor pelos danos decorrentes do vício de seus produtos e da falha na prestação dos seus serviços. III – Comprovado nos autos o atraso na entrega dos materiais didáticos escolares adquiridos pelo autor, impõe-se o reconhecimento na falha da prestação dos serviços pela ré. IV – A privação do aluno do material didático por ele adquirido para acompanhamento das aulas e conteúdos ministrados enseja prejuízos ao seu ensino e desempenho escolar que ultrapassam em muito os meros aborrecimentos, configurando danos morais.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.23.183280-9/001, Relator(a): Des.(a) Fabiano Rubinger de Queiroz , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 21/11/2023, publicação da súmula em 27/11/2023)

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – COMPRA E VENDAS DE PATINS – CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – APLICABILIDADE – ATRASO NA ENTREGA – FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – MEROS ABORRECIMENTOS – DANOS MORAIS – AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO. I- Embora o atraso na entrega de produtos possa configurar falha na prestação de serviços, os danos decorrentes desse fato devem ser devidamente comprovados. II – Ausente a comprovação de dano e da consequente ausência de configuração dos pressupostos da responsabilidade civil, não há que se falar indenização.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.23.067346-9/001, Relator(a): Des.(a) Fabiano Rubinger de Queiroz , 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 18/07/2023, publicação da súmula em 24/07/2023)

Na primeira ementa colacionada, os pais de um menor adquiriram, em plataforma eletrônica, materiais didáticos relativos ao ensino letivo da criança, que só foram entregues 40 (quarenta) dias após o início das aulas, sendo que o menor ficou impossibilitado de acompanhar as lições em classe. Já na segunda ementa, uma mãe realizou a compra de patins para presentear sua filha no Natal, sendo que o prazo máximo de entrega era em 21/12/2018, sendo a mercadoria entregue apenas em 30/12/2018, após a data festiva.

Percebe-se que a diferença entre ambos os casos mencionados está na demonstração dos danos decorrentes da entrega do pedido. A Egrégia 10ª Câmara do Tribunal Mineiro entendeu que o atraso na entrega dos produtos essenciais ao desenvolvimento escolar resultou em danos ao menor, enquanto a demora no recebimento do presente de Natal não foi suficiente para causar prejuízos. Isso porque o Tribunal entendeu que não houve comprovação do dano.

Deve ser arbitrado, contudo, um razoável patamar para caracterização do dano que ultrapasse a esfera do mero aborrecimento, considerando-se a frustração das legítimas expectativas por período entendido como muito superior ao esperado, caracterizando ainda a perda do tempo útil do consumidor (desvio produtivo), o que se acentua quando o consumidor opta pelo reembolso imediato do valor gasto, porém, o fornecedor não o efetua, demandando do cliente uma considerável quantidade de tempo. Esse tempo não se refere apenas ao atraso na entrega do produto, mas também à demora na resolução (de maneira amigável) da questão.

Convém colacionar ementa do Egrégio Tribunal Mineiro neste sentido:

APELAÇÕES CÍVEIS – PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO PRIMEIRO APELO – RECURSO INOMINADO RECEBIDO COMO APELAÇÃO – PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE – REJEITAR – IMPUGNAÇÃO À JUSTIÇA GRATUITA – NÃO ACOLHIMENTO – AÇÃO INDENIZATÓRIA – PRODUTO ADQUIRIDO PELA INTERNET – MERCADORIA NÃO ENTREGUE – INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – RESPONSABILIDADE OBJETIVA – PEDIDO DE CANCELAMENTO – RESISTÊNCIA NA DEVOLUÇÃO DA QUANTIA PAGA – RESSARCIMENTO EM DOBRO – POSSIBILIDADE – DANOS MORAIS CONFIGURADOS – QUANTUM INDENIZATÓRIO – PROPORCIONAL E RAZOÁVEL – HONORÁRIOS – MANTER VALOR FIXADO EM SENTENÇA. (…)  4. Evidenciado nos autos que os produtos adquiridos e pagos pela autora não foram entregues, bem como que mesmo após a consumidora requerer o cancelamento a fornecedora insistiu na retenção indevida dos valores, impõe-se o ressarcimento em dobro do indébito, independente da ocorrência de má-fé (EAREsp 676.608/RS). 5. O mero descumprimento contratual, a provocar dissabor, não configura dano moral indenizável. Contudo, aliado ao descumprimento contratual, a não adoção de medidas necessárias para a resolução do problema e a persistência do consumidor em aflição, sem informações concretas sobre o reembolso ou entrega do produto, por período excessivo, é suficiente a causar-lhe ofensa moral. (…)  (TJMG –  Apelação Cível  1.0000.22.298649-9/001, Relator(a): Des.(a) Shirley Fenzi Bertão , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 29/03/2023, publicação da súmula em 30/03/2023)

É relevante salientar que, caso o consumidor se veja compelido a ingressar com uma ação judicial para solucionar a questão, poderá envolver toda a cadeia de consumo no polo passivo. Isso significa incluir tanto a fornecedora da qual adquiriu os produtos quanto a transportadora contratada para realizar os serviços de entrega. Nesse contexto, é importante observar que a responsabilidade de ambas as partes é solidária, conforme disposto no art. 25, §1º, do CDC. Entretanto, a fornecedora reserva-se o direito de buscar regresso em relação à transportadora, caso haja algum fundamento para tal reivindicação.

Ainda, devem se atentar às causas de exclusão do dever de indenizar consubstanciadas no artigo 14, §3º, do CDC, caso não exista o defeito no serviço de entrega ou caso exista culpa exclusiva do consumidor (como por exemplo cadastrar endereço incorreto) ou de terceiros.

Desta toada, é evidente que, diante da expressiva quantidade de produtos adquiridos em ambientes de comércio eletrônico, torna-se crucial a análise dos direitos do consumidor quando há atraso na entrega da mercadoria. Em resumo, é fundamental enfatizar o direito de rescindir o contrato, com a restituição dos valores despendidos, nos casos de demora injustificada no cumprimento contratual, conforme estabelecido pelo art. 35, III, do Código de Defesa do Consumidor, desde que atendidos seus pressupostos básicos.

 

Referências

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1. MIRAGEM, Bruno. Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo digital e o direito do consumidor. Revista de Direito do Consumidor. vol. 125. ano 28. p. 17-62. São Paulo: Ed. RT,2019.

2. A primeira opção é exigir o cumprimento forçado da entrega, ocasião em que o consumidor deverá comunicar ao fornecedor que o prazo máximo para recebimento do produto extrapolou e buscar que a entrega seja realizada em prazo adequado. A segunda é “aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente”, sendo, contudo, mais comum a aplicação da terceira alternativa nestes casos, por ser mais adequada ao consumidor.

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