A situação prisional brasileira se encontra em crítico estado, não sendo novidade o fato de que diversas unidades prisionais encontram problemas relacionados à superlotação,1 saúde precária, falta de higiene, abusos de terceiros e de entes governamentais, má administração pública, etc., fatores esses considerados como agravantes das condições degradantes e inadequadas nas quais os presos se encontram.
Ocorre que o objetivo do sistema prisional, em teoria, seria de que o indivíduo, ofensor da ordem pública e moral, em seu tempo cumprindo a pena imposta pelo Estado, pondere sobre os erros que o levaram até ali e assim possa retornar ao convívio na sociedade, atribuindo-se um caráter reformatório, e não essencialmente punitivo.
Contudo, a falta de condições humanas nos presídios acarreta na constituição de um cenário que não promove a reabilitação do indivíduo, mas na realidade “a desestruturação do sistema prisional ocasiona o descrédito da prevenção e da reabilitação do condenado, ante um ambiente, cujo fatores culminaram para que chegasse a um precário sistema prisional”.2
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento de Recurso Extraordinário, “reconheceu a lesão aos direitos fundamentais dos presos, independentemente do evento morte. O só fato de estar cumprindo a pena em situações degradantes faria surgir o dever de indenizar do Estado”.3
Da tese de repercussão geral aprovada pelo Plenário, se extrai:
Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, §6 da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento.4
A situação fática que motivou a busca pelo Poder Judiciário partiu do argumento de violação dos direitos humanos básicos, ocasião em que se buscou alguma espécie de reparação em âmbito cível, mais especificamente a figura da compensação, ante a impossibilidade de retorno ao status quo.
Neste toar, a busca pela reparação por danos morais, objeto sustentado no RE 580.252, escora-se na extrínseca condição degradante em que os presos se submetem, com respaldo no princípio constitucional da dignidade humana, considerado valor inerente à pessoa humana, trazendo uma pretensão de respeito por parte da coletividade. Basta classificar-se como ser humano para ver-se contemplado pelo princípio ora em comento.
A injusta violação a este fundamento deve ser reparada, de forma a se respeitar as sensações ou emoções desagradáveis e repulsivas sofridas pelo lesado, ensejando um mínimo de respeito aos direitos humanos, merecedores de tutela no ordenamento pátrio, quando inseridos no texto constitucional como direitos fundamentais e, notadamente, na legislação infraconstitucional, pertinente aos direitos de personalidade.
Todavia, problemática surge na impossibilidade de retorno ao status quo pelas violações aos direitos fundamentais dos presos, tendo sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal a compensação monetária no montante de R$2.000,00 (dois mil reais). Em primeiro plano, o mencionado valor por si só beira incertezas: a compensação monetária atribuída é considerada ínfima em relação à condição do preso (como se o presidiário possuísse despicienda relevância na busca por seus direitos fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana).
Noutro giro, ainda que se considere tal indenização como adequada, a realidade apresenta discordância com a nobre intenção do Superior Tribunal Federal. A atualidade fática exprime adversidades no tangente à impossibilidade, em termos monetários, de os cofres públicos compensarem todos os presos do país que se encontram em tal cenário, haja vista a maioria dos Estados Federativos não possuir recursos suficientes para que seja economicamente possível compensar a situação causada pelos mesmos. Assim, ante ao vasto contingente de indivíduos em situação carcerária no país, o erário não comportaria gastos de tamanha monta, ainda que individualmente a quantia de R$ 2.000,00 seja considerada como irrisória, vez que “presos em situação degradante, no Brasil, lamentavelmente, são quase todos”.5
Cumpre destacar, nesse compasso, que o Ministro Luís Roberto Barroso, acompanhado posteriormente pelos Ministros Celso de Mello e Luiz Fux, se posicionou na direção de substituir a compensação em pecúnia pela remição de pena.
Nesse toar, deslinda Rafael Maffini:
O Min. Luís Roberto Barroso finaliza suas considerações introdutórias com a sugestão de que a gravidade do cenário prisional brasileiro determina que eventual solução somente será possível, caso haja uma atuação coordenada pela qual sejam combatidas as três principais de suas tantas causas: a) a superlotação dos presídios; b) a lógica do hiper encarceramento; c) as deficiências na estruturação e funcionamento dos presídios.6
Diante da controversa decisão do Supremo Tribunal Federal, é suscitada a problemática da impossibilidade de compensação ao presidiário pela via da Responsabilidade Civil, vez que ambos os argumentos apresentados no STF implicam em resultados insatisfatórios sob a ótica em questão.
Ainda que a proposta apresentada pelo Ministro Luís Roberto Barroso possa lograr êxito no campo das políticas públicas, ricocheteando na área penal e administrativa, a seara cível ainda possui papel fundamental a ser desencadeado na problemática em comento, não devendo ser esquecida, mas sim devendo ser objeto de estudos doutrinário e análises jurisprudenciais com escopo de levantar possíveis soluções.
Nesse sentido, Caio César do Nascimento Barbosa e Fabrícia Barbosa Vicente apontam:
O Recurso Extraordinário 580.252, deste modo, parece não apresentar viáveis e realistas soluções para a realidade experimentada no país, de forma que a Responsabilidade Civil possui poucas chances de corresponder aos ideais da temática como deve, tal fator agravado pela ineficácia estatal ante aos indivíduos que deve manter sob sua custódia.7
Ainda que a decisão do Supremo Tribunal Federal ostente nobres intenções e de fato se alie com os avanços contemporâneos no campo da Responsabilidade Civil,8 a realidade não comporta modelo que satisfaça as demandas oriundas dos danos mencionados, vez que se encontra pautada em muitas contradições e incongruências.
Neste toar, extrai-se o entendimento de que, avaliado o panorama geral, seria impossível pelos atuais caminhos da Responsabilidade Civil compensar a vasta maioria de presos que se encontram na situação de lesão aos seus direitos fundamentais, ainda que demandas individuais possam lograr êxito com base no RE 580.252.
O caminho da prevenção (como uma espécie de risk management)9 parece ser o mais razoável e viável no atual cenário, vez que na atual conjuntura, impossível seria o ordenamento jurídico pátrio conferir resposta imediata de forma satisfatória, isto é, em que a parte seja compensada de forma justa e que os cofres públicos suportem arcar com os custos. É dizer que, mesmo com os notáveis avanços da matéria, ainda existem problemáticas que não comportam respostas satisfativas ou imediatas.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. A título ilustrativo, é contabilizado que cerca de 89% da população carcerária encontra-se em unidades classificadas como superlotadas e que 78% dos estabelecimentos estão com um número de presos superior ao de vagas originariamente ofertadas.
2. MACHADO, Nicaela Olímpia; GUIMARÃES, Issac Sabbá. A Realidade do Sistema Prisional Brasileiro e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Revista Eletrônica de Iniciação Científica. Itajaí, Centro de Ciências Sociais e Jurídicas da UNIVALI. v. 5, n.1, p. 573, 1º Trimestre de 2014. Disponível em: https://bit.ly/3PHeKB3. Acesso em: 20 jul. 2022.
3. FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1164.
4. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 580252. Relator: Min. Teori Zavascki. Data de Julgamento: 16/02/2017. Tribunal Pleno. Data de Publicação: DJE 11-09-2017. Disponível em: https://bit.ly/3okZ4Ii. Acesso em: 24 set. 2019.
5. FARIAS, Cristiano Chaves de. NETTO, Felipe Braga. ROSENVALD, Nelson. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1164.
6. MAFFINI, Rafael. Responsabilidade civil do estado por dano moral e a questão da prioridade da reparação in natura em torno da RE 580.252. Revista digital ESA. Rio de Janeiro, RJ: OABRJ, 2018. Vol. 1, n. 1 (set. 2018), p. 621, 2018.
7. BARBOSA, Caio César do Nascimento; BARBOSA, Fabrícia Vicente. Desenvolvimentos e dificuldades contemporâneas da responsabilidade civil ante ao paradigmático Recurso Extraordinário nº 580.252. Revista de Direito Magis, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 141, jan./jun. 2022.
8. Nesse sentido, ver: ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil: compensar, punir e restituir. Revista IBERC, v. 2, n. 2, 2019; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. A dimensão preventiva da responsabilidade civil. In: BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César (Org.). Direito privado e contemporaneidade: desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Belo Horizonte: D’Plácido, 2014; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. Contenção de ilícitos lucrativos no Brasil: o disgorgement of profits enquanto via restitutória. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, 2020.
9. Nesse sentido, ver: SCHREIBER, Anderson. Direito Civil e constituição. São Paulo: Atlas, 2013.