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O desvio de finalidade e a graça

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A Constituição Federal, por meio do sistema de freios e contrapesos, busca balancear e equilibrar os poderes orgânicos que integram a república brasileira: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A segmentação do poder e as diversas formas de controle existentes buscam punir e coibir eventuais abusos e desvirtuamentos nos seus respectivos exercícios. Desse modo, o abuso de poder, em sentido lato, pode ser segmentado em excesso de poder, quando há vício no elemento competência do ato administrativo, seja em razão de incompetência no agir, seja no agir para além dos limites legais; e desvio de poder, também chamado de desvio de finalidade, tanto em sentido amplo, quando o agente não busca o interesse público no seu agir, como em sentido estrito, no qual, a finalidade específica do ato emanado está viciada.

O desvio de finalidade está positivado na Lei de Ação Popular (Lei 4.717/65) ao tratar dos vícios que maculam os atos administrativos. De acordo com o texto da lei, “o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência” (art. 2º, parágrafo único, alínea ‘e’). De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro,1 o conceito legal está incompleto, na medida em que, existindo a finalidade em sentido tanto amplo como restrito, há o desvio de poder quando o agente público não observa o interesse público ou age com o objetivo diverso do que a lei apresenta, implícita ou explicitamente.

Assim, o agente afasta-se da finalidade que deveria atingir para buscar um resultado diverso, o qual não está previsto em lei. Exemplos de desvio de finalidade são a remoção de agente público, a interesse da Administração, com objetivo de punir o agente e não de compor os quadros de servidores de modo a atender as necessidades públicas. Da mesma forma, a desapropriação de um determinado imóvel para a construção de uma escola com objetivo de favorecer um particular, ao invés de se buscar o local mais apto em que se atingiria o objetivo público, como a facilidade de acesso aos estudantes, desvia completamente a finalidade deste instituto. Nota-se que o desvio de finalidade está imbrincado à vontade do agente, às suas razões inspiradoras de agir, no caso, indo contra o interesse público.

Recentemente, o Presidente da República concedeu a graça, isto é, o perdão da pena, a determinado deputado federal em razão de crimes cometidos contra as instituições democráticas, o qual foi condenado perante o Supremo Tribunal Federal. Em que pese a sentença não ter sido transitada em julgado, o presidente já concedeu o perdão aos oito anos e nove meses de prisão, fruto da condenação.

Nos dizeres da Constituição, é atribuição do Presidente da República “conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei” (art. 84, XII). O indulto e a graça nada mais são do que o mesmo instituto jurídico, diferindo apenas quanto à extensão de seus efeitos. Enquanto o indulto é coletivo e atinge determinado grupo de pessoas que tenham cumprido determinados requisitos, a graça é individual, ou seja, atinge uma determinada pessoa em específico. O artigo 734 do Código de Processo Penal é claro ao atribuir ao Presidente da República a faculdade de concedê-la espontaneamente. Portanto, a atuação do Chefe do Executivo está pautada dentro dos parâmetros de legalidade.

Tais institutos jurídicos, tanto a graça como indulto, possuem fundamentos humanitários, aplicáveis a condenados com doenças graves, que já estejam próximas de cumprir toda a pena, por critérios etários, dentre outros. A finalidade é a proteção à dignidade dessas pessoas.

Contudo, este não parece ser o motivo pelo qual o Presidente concedeu tal benefício ao deputado, seu aliado político. De acordo com o decreto de 21 de abril de 2022, o Presidente motiva o ato que concede a graça invocando a liberdade de expressão, como pilar essencial da sociedade, compreendendo o instituto como mecanismo apto a equilibrar o sistema de freios e contrapesos previstos pela Constituição. O Chefe do Executivo também baseia o ato em um suposto juízo legal, moral e político, além de alegar zelo pelo interesse público e a legítima comoção causada pela condenação do deputado, tendo em vista a inviolabilidade de opinião garantida aos parlamentares pela Constituição.

O Presidente, ao alegar a liberdade de expressão, tema relacionado aos crimes cometidos, e a inviolabilidade de opinião parlamentar, tema também discutido no processo quanto a sua extensão e limites, parece adentrar no mérito da decisão judicial e, extinguindo a punibilidade dos crimes, por meio da graça, busca inibir os seus efeitos. Ao apresentar o ato que concede a graça como legítimo meio para reequilibrar a tripartição dos poderes, o Presidente se apresenta como verdadeira instância revisora da decisão do Supremo Tribunal Federal. Ao discordar do mérito, anula-se os efeitos da decisão.

Evidentemente, a motivação do ato revela o seu verdadeiro motivo: revisar a decisão judicial e impedir a concretização dos seus efeitos em virtude de razões políticas. O instituto da graça foi, neste caso, desviado de sua finalidade humanitária, tanto em sentido estrito, como em sentido lato, já que o decreto se desviou do interesse público para valer-se do interesse pessoal do agente público do qual o ato foi emanado. O Presidente atuou como se estivesse sob égide da Constituição de 1824 e utilizou-se do Poder Moderador para fazer valer sua vontade.

Em um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, esse tipo de postura patrimonialista, na qual o Estado é utilizado como uma extensão do governante, a serviço dos interesses privados, não é admissível. Nota-se que, apesar da possibilidade de o Presidente conceder a graça, em autorização tanto constitucional como legal, o instituto deve seguir a finalidade a ele prevista. Os atos administrativos não são mais somente controlados com sua adequação ou não a lei. A legalidade estrita não é mais o único elemento no controle do ato.

Para além, o ato perpassa por um controle de legitimidade com os padrões constitucionais, como o princípio da moralidade e a busca real pelo interesse público. É isso que justifica o controle judicial do mérito administrativo em casos de desvio de finalidade: a adequação do ato, não só à lei, mas a todo o ordenamento jurídico. Ainda que se trate de um ato discricionário, como a concessão da graça previsto expressamente pelo Código de Processo Penal, tal característica não figura uma folha em branco para a atuação do agente público. Discricionariedade não é o mesmo que arbitrariedade. Ainda que discricionários, tais atos devem respeito aos princípios constitucionais e ao ordenamento como um todo.

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Paulo Victor Barbosa Recchia

 

Referências

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1. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27 ed. São Paulo, Atlas, 2014. p. 254-255.

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