O direito à prova, os poderes de instrução do juiz e a boa-fé objetiva no CPC

O direito à prova, os poderes de instrução do juiz e a boa-fé objetiva no CPC

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Para suprimir eventuais dúvidas a respeito da vigência do modelo constitucional de processo civil no Brasil, o legislador fez positivar algumas normas fundamentais de natureza constitucional nos 12 primeiros artigos do Código de Processo Civil. A providência foi oportuna, pois o dispositivo inaugural da Lei 13.105/2015 conclama o intérprete a determinar o sentido do CPC e aplicá-lo em conformidade com as disposições previstas na Constituição Federal.

Um dos mais importantes reflexos do modelo constitucional de processo está no preceptivo de abertura do direito probatório. Além de consagrar a atipicidade dos meios de prova, a regra prevista no artigo 369 do Código de Processo Civil densifica as garantias constitucionais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa (CF, artigo 5º, LIV e LV) ao prever que os litigantes têm o direito de se valer de todos os meios legais e moralmente legítimos para comprovar a veracidade das versões dos fatos alegadas em juízo.

Em contrapartida, para evitar o desenvolvimento de atividades probatórias inúteis ou contemporizadoras da entrega da tutela jurisdicional em tempo razoável (CF, artigo 5º, LXXVIII, e CPC, artigo 4º), o parágrafo único do artigo 370 do Código de Processo Civil impõe ao Estado-juiz o dever de, por meio de decisão adequadamente fundamentada, indeferir providências meramente protelatórias. Esse dever de coibir a prática de atos inúteis para a justa solução do litígio é o contraponto dos deveres-poderes de instrução do magistrado, que poderá, até mesmo oficiosamente, ordenar a produção de provas necessárias ao julgamento do mérito (CPC, artigo 370, caput).

A possibilidade de o juiz exercer poderes de instrução da causa de ofício levou o Superior Tribunal de Justiça a sustentar a inexistência de preclusão para o magistrado no que tange à iniciativa de determinar a produção de provas, uma vez que, a um só tempo, tal providência ocorre em favor da descoberta da verdade e “(…) é feita no interesse público de efetividade da Justiça” (exemplo: AgInt no REsp nº 1.610757/TO e AgRg no REsp 1.157.96/DF). Por outro lado, o dever de o juiz indeferir providências inúteis ou de cunho protelatório levou o mesmo Superior Tribunal de Justiça a entender pela possibilidade de não realização da prova anteriormente deferida, dado que “(…) é o magistrado o destinatário final das provas, podendo, com base em seu livre convencimento, indeferir ou deferir aquelas que considere dispensáveis ou não à solução da lide”. (exemplo: AgRg no REsp nº 1.212.492/MG e AgRg no Ag nº 1.402.168/RS).

Em nosso sentir, a preclusão para o juiz em termos de (não) realização da prova é assunto de alta indagação, que merece ser examinado com a devida acuidade e à luz do princípio da boa-fé objetiva, responsável por nortear a conduta de todas as personagens que atuam no processo judicial (CPC, artigo 5º). Em um Estado democrático de Direito, que zela pela preservação das garantias constitucionais dos jurisdicionados, parece desarrazoado ao Estado-juiz agir de modo a escamotear a confiança que as decisões judiciais criam para o jurisdicionado.

Os militantes do foro provavelmente já depararam com situações limítrofes — verdadeiras zonas de penumbra — em que existe fundada dúvida sobre a (im) pertinência da realização de certo meio de prova. Se tal ocorre no caso debatido em juízo, o magistrado deve ordenar a produção da prova, conforme bem explica William Santos Ferreira (“Breves comentários ao novo código de processo civil”. Coords. Teresa Arruda Alvim, Fredie Didier Jr., Eduardo Talamini e Bruno Dantas. São Paulo: RT, 2015, p. 996, 997 e 998):

 “O acesso à ordem jurídica justa (artigo 5º, XXXV, da CF) não significa o direito a uma decisão, mas a um modelo de processo em que as partes possam ser efetivos atores principais, em que suas postulações probatórias sejam vistas como admissíveis como regra, e restringíveis, mediante exaustiva precaução, apenas voltadas a evitar manipulações indevidas, ou dilação claramente descabida. Em linguagem direta: na dúvida, a prova deve ser deferida. A ‘titularidade da prova’ não é do juiz e nem das partes (princípio da comunhão da prova — qualquer um pode se utilizar da prova independentemente de quem a produziu), mas a parte tem ‘direito aos meios’. Embora os requisitos devam ser observados, tanto para o deferimento de uma prova, quanto para o seu indeferimento, não se pode deixar de reconhecer que, na dúvida, é preferível a autorização para produção de uma prova, isto porque um julgamento desfavorável é natural, mas um julgamento escorado em um obstáculo para que o fato pudesse ser demonstrado, além de uma violação das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, representa uma ruptura gravíssima do estado de direito, configurando violação do devido processo legal. Afinal, como ser atingido por um processo no qual a prova do fato necessário lhe foi obstaculizada? Em casos assim, a decisão judicial tomada é ilegítima constitucionalmente”.

Assim, o entendimento pretoriano de que o juiz não está sujeito à preclusão sobre o deferimento, o indeferimento ou mesmo a determinação oficiosa para a (não) realização de determinada prova necessita ser visto com cautela, sob os influxos da boa-fé objetiva e de acordo com as particularidades do caso concreto: muito mais sério do que deferir a produção de uma prova que, ao final, pouco ou nada colabore para a formação da convicção do juízo é o indeferimento sem a devida fundamentação de prova essencial para a resolução do mérito, que foi julgado improcedente exatamente pela ausência de comprovação das alegações da parte autora (exemplo: AgInt no REsp 1.759.721/PR).

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