O exercício da advocacia – buscar a verdade ou perpetrar a mentira

O exercício da advocacia – buscar a verdade ou perpetrar a mentira

Oratória para advogados

A profissão de advogado quando comparada aos outros labores e quando exercida e percebida na sociedade, em que pese se colocar dentre uma dos exercícios profissionais mais nobres, sendo função indispensável à administração da justiça, sofre de um estigma. Tal estigma, muito relacionado à modulação do discurso para atender interesses, os quais por vezes contradizem um escopo moral impregnado no consciente coletivo da sociedade, mais especificamente a brasileira, conduz a uma perspectiva totalmente equivocada no que concerne a justa atuação dessa profissão.

Não são poucos os círculos de convivência social, inclusive entre os próprios advogados, em que a advocacia é associada a mentira, ao uso astucioso das lacunas legais com vistas a subverter o ordenamento às necessidades e interesses particulares que, sob a ótica moral, são imensamente repudiáveis. Por esse motivo a figura do advogado se tornou sinônimo de alguém que não persegue a verdade, mas que faz uso da palavra, do discurso, prescindindo dos fatos, e da própria realidade.

Não à toa a pecha de sofistas ainda nos é lançada, à medida que estes, na Grécia Antiga, foram pintados por Platão como aqueles que, além de banalizar o conhecimento tornando-o mercadoria, relativizavam de sobremaneira o discurso a ponto de não só confundir, mas esvaziar os conceitos.

Esse embate, muito bem trabalhado pelo mais famoso dos discípulos de Sócrates, fica elucidado em vários de seus diálogos, tendo-se por exemplo Eutidemo e Górgias. Nesses, Platão faz uma crítica acirrada sobre a posição sofista ou erista, dando ênfase sobretudo ao fato de como esses instrumentalizavam o discurso não com vistas a vislumbrar a verdade, ou ao menos percorrer o caminho para alcançá-la, mas com o objetivo de vencer um debate, ainda que a vitória se desse sob bases frágeis, alheias ao discurso verdadeiro.

Platão, assume em suas obras, posição antagônica aos sofistas, definindo como tema de importância e necessidade para uma pólis sadia e justa, a reta construção e assimilação de conceitos. De outro lado, os sofistas, sob ótica platônica, são percebidos como aqueles que popularizaram o saber, mas que na mesma medida corromperam a dialética por meio de uma retórica desfeita do ensinar.

Esse embate de posições, as quais refletiram diretamente a forma como se estabelece a fundação do conhecimento, é perceptível no uso que o advogado contemporâneo faz do discurso. Com uma formação filosófica muitas vezes pobre e despreocupada com a necessária linearidade lógica do raciocínio, é preocupante que muitos advogados se exerçam a profissão sem cuidar do discurso técnico, apelando a argumentação de caráter apaixonado, ficcional, visando muito mais a afecção passional do juízo do que propriamente trazer as varas e aos tribunais debates sofisticados que analisam o caso, as provas e a narrativa das partes com acuidade e coerência a partir de uma leitura minimamente objetiva do texto legal. Em que pese muitas faculdades de Direito preocuparem-se com a elaboração técnica de uma peça jurídica, a tradição do ensino jurídico persegue muito mais a estética. Embora seja aspecto fundamental quando se está lidando com pessoas, esse não deve ser o ponto central, mas sim, ser inserido no discurso jurídico de maneira complementar.

O visual law, abarca essa estrutura, porém ainda enfrenta certa resistência de uma advocacia marcada pelo uso de termos em latim e de frases de efeito. O apego a certas práticas antiquadas, acabam por desviar o objetivo precípuo da advocacia que, conforme assinala o código de ética, se presta a administração da justiça.

Tal noção, que enreda desde a elaboração de leis, a interpretação dessas, assim como a aplicação com vistas a resolver conflitos, deveria ser o fator direcionador do uso do discurso. A justiça, entendida não única e exclusivamente sob o símbolo da balança, mas sob o conceito teleológico de promoção a satisfatividade de direitos dentro e fora da esfera judicial.

O mentir, contrapondo essa pretensão, se coloca como a subversão dos fatos, desde o ponto de vista lógico quanto do ponto de vista probatório. Uma vez que se construiu ao longo de um processo, seja ele judicial ou extrajudicial, material capaz de esclarecer o que está sendo posto em jogo, não há que se trabalhar com o intuito de  fragilizar o sentido das palavras e o sentido da lei, visando, ao invés de um resultado que atenda os princípios do processo e do próprio texto constitucional, a defesa de uma argumentação que não encontra amparo objetivo, testificável, mas é claramente perpetrada em linhas subjetivas que escapam ao Discurso do Direito Democrático.

Indo na contramão da via da tergiversação, onde conceitos são fluídos, voláteis, a figura do advogado deve tracejar o caminho da técnica, do uso científico do Direito, fundando-o sob o alicerce da segurança jurídica e da previsibilidade. Nesse sentido, apegar-se a verdade, não é apoiar-se em noção absoluta, mas voltar-se a um discurso em que o entendimento seja viabilizado sem perder de vista o factível e sendo avesso a idiossincrasias e ao solipsismo, vez que o âmago de cada um é um universo desconhecido, tumultuado e invadido a todo momento pela contradição.

 

Referências

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PLATÃO. Eutidemo. Texto estabelecido e anotado por John Burnet; tradução, apresentação e notas de Maura Iglesias.  ed. Loyola. Rio de Janeiro: Loyola, 2011.

PLATÃO. Górgias ou a Oratória. Tradução, apresentação e notas de Jaime Bruna. Difusão Europeia do Livro. São Paulo.

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