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O Pacto, o Direito e o Litígio

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Um dos contratualistas mais certeiros em se tratando de definição do ser humano, é Thomas Hobbes. Pessimista antropológico de carteirinha, Hobbes, em sua célebre obra “Leviatã”, define o “homem”, a partir do estado de natureza. Neste, o qual entende como sendo o estado da barbárie, da guerra de todos contra todos, é o antro da humanidade, e mais especificamente, é o topos do indivíduo, performado pela competição, pela desconfiança e pela glória.

A luta pela autopreservação, nunca foi uma escolha, mas uma necessidade. Desde os primeiros homens, o conflito foi a ordem da sobrevivência, da autopreservação, em que a existência se pautava em duas premissas, a do Direito Natural e da Lei Natural.

O Direito Natural reconhecido como liberdade, ou seja, uma livre possibilidade de fazer de tudo para preservar-se e para satisfazer as paixões, era a ordem do dia dos homens no estado de natureza, onde valia, quase tudo. A Lei Natural, freava essa liberdade, mas tão somente em um ponto, a proibição da autodestruição, isto é, de atentar contra a própria vida, ou de renunciar aos meios para preservá-la.

Diante desse panorama da luta de todos contra todos, em que o homem é o lobo do homem, Hobbes, com fundamento no contrato, propõe a união das vontades e do interesse comum dos indivíduos, para que abdicando da sua liberdade, possam viver em segurança.

O Direito então, enquanto sistema ordenador surge desse encontro de vontades, os quais culminam num pacto social, em que deve-se seguir as normativas estabelecidas pelo Soberano. Este, uma vez elegido à função de representante da manifestação dessas vontades, passa a dirigir as pretensões dos sujeitos, que a seu turno passam a viver sob  jugo do Estado Leviatã, que a tudo e a todos alcança.

O Direito sob esse panorama surge enquanto produto de contenção do litígio, percebido no estado de natureza.

Colocando em perspectiva a proposição hobbesiana, e levando em conta essa como projeto do que veio a se chamar de Estado Moderno, percebe-se que o pacto, essa tese de conformação social, apenas comportou o estado da guerra, modulando-o sob desavenças as quais hoje, não são dirimidas pela força física, pelo confronto direto, mas pelas vias do judiciário.

Hoje, quando se fala em realidade jurídica e judiciária brasileira, não tem como não se falar em litígio. A guerra apenas é algo corriqueiro, mas é algo estimulado, e supervalorizado em detrimento do consenso, da concórdia, da melhor resolução dos conflitos. O poder judiciário brasileiro já alcança, no corrente ano de 2022, a marca de quase 80 milhões de processos em tramitação, sendo que o número de advogados já ultrapassa o número de 1.2 milhões.

Tal cenário reflete uma mentalidade institucional e coletiva de que todas as questões em que surge o impasse, essas por sua vez devem percorrer o caminho da disputa judicial e se voltar ao magistrado, que não forçosamente, dentro desse contexto, acaba por ocupar o lugar do soberano. Este, percebido como sujeito alheio a relação ensejadora do conflito, é quem irá firmar os direitos e deveres dos que a ele lançaram o poder de resolução.

Mas, penso eu, o que leva os indivíduos e a sociedade por esse caminho, será uma imprudente vontade de retorno ao estado de natureza, em que as pulsões, são exacerbadas, podendo a manifestação do ser, se realizar no processo do combate judicial, da briga, da vingança da insistência por algo perdido, do que deveria antes ter sido prevenido? Talvez, nessa senda, o Direito tenha tomado o rumo errado, sendo hoje utilizado como instrumento não promovedor da justiça, mas da alimentação da discórdia, da exclusividade de interesses, da conformidade com o estado tutelar.

Platão, em a República, já remediava nesse sentido, dizendo não exatamente nestas palavras, mas sobre as mesmas aspirações, “uma sociedade que a muitos advogados, juízos e médicos possui, mas injusta e doente é”. A lei só recai sobre os não emancipados, os que insistem em viver sobre o  expectativa da penalidade, e da possibilidade de recorrer caso o dano lhe acometa, visto ser esse iminente.

Uma vez engendrado por motivações individuas, as quais, não por vontade genuína, mas por conveniência, se voltam dissimuladamente a um bem comum, pois fundado na autopreservação, o pacto enquanto princípio da ordem, do Direito, perpetua o ambiente selvagem de todos contra todos, porém, de forma camuflada, mais sofisticada e sistematizada.

O Direito nessa linha, ao se restringir ao litígio e ao desfecho desse, esvazie-se dos seus outros rumos possíveis, os quais, se pensados de maneira esclarecida, para além de um pacto visando um fim particular, podem fazer de uma sociedade radicalizada na luta, uma sociedade da prudência não limitada ao individual, mas projetada deste para o coletivo.

Tal leitura por óbvio, merece ressalvas e se dirige primeiro a reflexão, haja vista ser uma leitura singular da obra hobbesiana, não podendo ser assimilada como afirmação que se verifica no Estado Democrático de Direito. O que se quer à princípio é lançar o pensamento de Hobbes, sobre uma lógica específica que toca o Direito, especificamente quando se mantem a ilusória noção desse, enquanto instrumento da pacificação social.

De fato em alguns pontos é forçoso pensar que o Direito contemporâneo se situa tão somente nesse lugar do contrato social, visto ser necessário ter em vista a tendência principiológica nascente pós segunda guerra mundial. Contudo não é incoerente lançar tal modelo de projeto social e de Estado sobre a dinâmica judicial e da satisfação de pretensos direitos a qualquer custo.

O Direito antes de tudo deve se conduzir pelo horizonto do que é mais prudente a se fazer, do acautelamento das ações, desde a simples realização de um contrato até a iniciativa de um empreendimento com potenciais impactos sociais, econômicos e ambientais. O litígio enquanto última instância é o objetivo de um bom ordenamento, de um ordenamento assimilado e não introjetado, posto imperativamente sobre os indivíduos.

Deve ser um produto sob o qual o indivíduo encontre sentido, e não pura e simplesmente a regra a ser obedecida. Só assim, o Direito, seja enquanto regra, seja enquanto direito, ganha dimensão autêntica, repercutindo na ética, no dever-ser, e finalmente no encontro com o ser.

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Felipe Gomes Carvalho

 

Referências

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CREPALDI, Thiago; GOES, Severino. Justiça Brasileira alcança a marca de 80 milhões de processos em tramitação. Disponível em:  https://bit.ly/3I9Araw. Acesso em: 01 jun. 2022.

SANTOS, Rafa. Pela primeira vez na história, número de advogadas supera o de advogados. Disponível em: https://bit.ly/3NzRlA8. Acesso em: 01 jul. 2022.

HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: MEDIAfashion: Folha de S. Paulo, 2021.

PLATÃO. A República. ão Paulo: MEDIAfashion: Folha de S. Paulo, 2022.

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