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O preço que você paga depende de você: considerações sobre preços personalizados [Parte 2]

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Na coluna passada falamos sobre preços personalizados, possíveis graças ao tratamento de dados pessoais de consumidores e potentes algoritmos que, após determinar o perfil de cada indivíduo, inferem seu preço de reserva. Assim, o preço que cada consumidor pretende pagar por determinado produto ou serviço passa a ser conhecido pelas empresas com tal tecnologia. Essa dinâmica envolve não apenas uma, mas diversas áreas do Direito, de acordo com os possíveis impactos que pode causar.

Primeiramente, é possível discutir a discriminação entre os indivíduos, pelo tratamento desigual e cobrança de preços diferentes a depender do seu preço de reserva, decorrente do tratamento de seus dados pessoais. Nesse sentido, a Constituição Federal em seus artigos 3º, IV, 5º, 227 dispõe sobre o direito fundamental à não discriminação e à igualdade. No âmbito internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data, já dispunha sobre o tema, assim como a Convenção Americana de Direitos Humanos promulgada no Brasil pelo Decreto 678 em 1992.

Por outro lado, a nossa Carta Magna também tem como valores a livre iniciativa e a liberdade econômica, vistas como alicerces da nossa democracia.1 Assim, não restam dúvidas da necessidade de aprofundamento sobre o tema e análise do impacto da dinâmica de preços personalizados considerando ambos os argumentos em âmbito constitucional.

Sob o Direito do Consumidor, a prática de preços personalizados também pode encontrar alguns empecilhos para se concretizar sem ser vista como um ilícito pelo nosso ordenamento jurídico. Notadamente no Código de Defesa do Consumidor dois artigos se destacam: artigo 39 e artigo 51. O primeiro artigo, com seus incisos, veda práticas abusivas nas relações de consumo, como exigir vantagem manifestadamente excessiva do consumidor e elevar sem justa causa o preço de produtos e serviços.

Já o artigo 51, em seu parágrafo 1º, explica algumas situações em que tal vantagem exagerada poderia ocorrer. Uma delas que poderia ser elencada ao estudar a prática de preços personalizados é a de ofensas a princípios fundamentais do ordenamento jurídico. Ainda, há vedação às hipóteses de restrições de direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato com o consumidor, o que poderia ameaçar seu equilíbrio e/ou objeto. Também podemos destacar a hipótese de onerosidade excessiva ao consumidor.

O artigo 51 também destaca que cláusulas abusivas devem ser consideradas nulas de pleno direito, como uma desvantagem exagerada ao consumidor, a imposição de obrigações incompatíveis com boa-fé e equidade e a permissão para variação unilateral de preços, por exemplo.

Em uma análise superficial, já é possível afirmar que para que tais disposições não sejam desrespeitadas e preços personalizados não afrontem direitos do consumidor são necessários cuidados. Entre eles, destacamos a importância da transparência sobre a dinâmica que, ao nosso ver, não basta apenas estar nos termos de uso e na política de privacidade, mas demonstrada de forma mais evidente quando ocorrer. Além disso, torna-se fundamental a existência de uma concorrência no mercado em que preços personalizados seriam praticados, caso contrário o abuso do consumidor como parte vulnerável poderia facilmente ocorrer.

Em tal contexto, destacamos o Decreto 7.963/2013, também chamado de Plano Nacional de Consumo e Cidadania, que estabeleceu como diretrizes a transparência e harmonia nas relações de consumo e “autodeterminação, privacidade, confidencialidade e segurança das informações e dados pessoais prestados ou coletados, inclusive por meio eletrônico”. Ainda, o artigo 6º, III do CDC dispõe sobre direitos básicos do consumidor, como a informação adequada e clara sobre produtos e serviços com especificação sobre diversas características, inclusive preço.

A esfera concorrencial também merece atenção quando falamos em preços personalizados, pois a prática em combinação com um abuso de poder dominante pode provocar prejuízos aos concorrentes e aos consumidores. Conforme a Lei de Defesa da Concorrência, a dinâmica pode encontrar obstáculos, pois é proibido “exercer de forma abusiva posição dominante” (artigo 36, IV), “discriminar adquirentes ou fornecedores de bens ou serviços por meio da fixação diferenciada de preços, ou de condições operacionais de venda ou prestação de serviços” (artigo 36, parágrafo 3º, X) e “recusar a venda de bens ou prestação de serviços” (artigo 36, parágrafo 3º, XI). No entanto, tais dispositivos devem ser analisados dentro de um contexto.

Vale destacar entendimento do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) de 2016 sobre o tema. O CADE concluiu que a discriminação de preços, na qual se insere a precificação personalizada (como vimos no artigo anterior), configuraria um ilícito antitruste apenas em algumas condições: (i) o agente praticante deveria ter posição dominante no mercado relevante; (ii) ocasionar um possível prejuízo à livre concorrência e (iii) não ter justificativas objetivas para a prática com racionalidade econômica legítima na conduta.2 Tal entendimento, todavia, não é capaz de sumarizar todas as questões concorrenciais que podem estar envolvidas na dinâmica da precificação personalizada.

Por fim, mas não menos importante, preços personalizados estão intrinsicamente relacionados com o tratamento de dados pessoais, de modo que sua dinâmica deve respeitar as disposições da Lei Geral de Proteção de Dados, notadamente as bases legais do artigo 7º (ou artigo 11, em caso de dados pessoais sensíveis envolvidos), os princípios previstos no artigo 6º, inclusive o princípio da boa-fé, e os direitos dos titulares que não se limitam ao artigo 18 da lei.

Nesse contexto, reiteramos a importância do princípio da transparência, da finalidade, da necessidade e da não discriminação. Assim, independentemente da base legal escolhida para a operação de tratamento, o titular não deve ser discriminado de forma ilícita ou abusiva, ter ciência sobre o que ocorre (e como) com seus dados pessoais, assim como sobre a finalidade do tratamento, além de o tratamento se limitar a dados não excessivos, proporcionais e pertinentes (o que se mostra um desafio em um contexto de criação de perfis).

Nosso entendimento é que um relatório de impacto à proteção de dados seria essencial para entender os riscos envolvidos e melhorar as salvaguardas do tratamento. Corrobora com isso o fato de que o tratamento irá envolver tomada de decisões automatizadas, criação de perfis e possível utilização de uma nova tecnologia.3

Diante do exposto, é importante ressaltar que nessas poucas páginas não seria possível esgotar o tema (e nem é o intuito deste artigo). Nosso objetivo é apenas levantar algumas questões que devem ser consideradas pelos consumidores, conscientizando-os de seus direitos em face das novidades tecnológicas e funcionamento de algoritmos, visto que a precificação personalizada se mostra cada vez mais presente, apesar de oculta a olhos nus.

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Pietra Daneluzzi Quinelato

 

Referências

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1. DOMINGUES, Juliana O.; GABAN, Eduardo M. Livre-iniciativa, livre-concorrência e democracia: valores constitucionais indissociáveis do direito antitruste? p. 11-130. In: NUSDEO, Fabio (coord.). A ordem econômica constitucional – Estudos em celebração ao 1º centenário da Constituição de Weimar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. p. 112.

2. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Nota Técnica 26/2016/CGAA4/SGA1/SG/CADE.  Processo administrativo 08700.002600/2014-30. Representante: Companhia de Gás de São Paulo. Representada: Petróleo Brasileiro S.A. Suposta conduta unilateral de discriminação de preços e condições de contratação. Setor de transporte e distribuição de gás natural canalizado. Hipótese dos incisos IV e X do §3º do art. 36 da Lei Federal nº 12.529/2014, combinados com os incisos I e IV do caput do mesmo dispositivo, correspondentes ao art. 20, incisos I e IV, combinados com o art. 21, incisos V e XII, da Lei Federal nº 8.884/1994. Configuração da infração. Disponível em: https://bit.ly/3DAfl1g. Acesso em: 20 maio 2021.

3. BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria de Governo Digital. Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais – RIPD. Oficina LGPD. Brasília, 2020. Disponível em: https://bit.ly/3iPd0ba. Acesso em: 10 jun. 2021.

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