O presente de aniversário do Superior Tribunal de Justiça para a Lei Anticorrupção

O presente de aniversário do Superior Tribunal de Justiça para a Lei Anticorrupção

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Esse é o mês de aniversário da Lei Anticorrupção, a Lei Federal n. 12.846/2013, publicada em 1º de agosto de 2013.1 São onze anos de uma história ainda um pouco conturbada, em que não se alcançou sua aplicação plena, até pela dificuldade inerente ao combate à corrupção. Atualmente a Lei Anticorrupção é regulamentada pelo Decreto Federal n. 11.129/2019,2 em que está regulamentado os Programas de Integridade, nome brasileiro para os programas de compliance.

A fim de prestigiar essa data, a coluna desse mês vai ser dedicada a um precedente recente do Superior Tribunal de Justiça, em que foi aplicada a Lei Anticorrupção, e reafirmada jurisprudência sobre o tema.3 O julgado versa sobre um grupo que manteve uma empresa de fachada para a realização do “giro” financeiro e sonegação fiscal:

ADMINISTRATIVO. LEI 12.846/2013 (LEI ANTICORRUPÇÃO). EMPRESA CONSTITUÍDA PARA DIFICULTAR A FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA. ENQUADRAMENTO NO ART. 5º, V, DA LEI 12.846/2013. FATOS MINUDENTEMENTE DESCRITOS NA PETIÇÃO INICIAL. DESNECESSIDADE DE PRÉVIA INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. APLICAÇÃO DE PRECEDENTE DO STJ FIRMADO NO RECURSO ESPECIAL 1.803.585/RN. HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Trata-se, na origem, de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra ESS Empresa de Serviços Salineiros Ltda., imputando-lhe conduta descrita na Lei 12.846/2013 (chamada Lei Anticorrupção, denominação truncada, na medida em que seu campo de aplicação não se circunscreve a apenas atos de corrupção stricto sensu), por ter integrado organização criminosa que conseguiu sonegar R$ 527.869.928,06 (quinhentos e vinte e sete milhões, oitocentos e sessenta e nove mil, novecentos e vinte e oito reais e seis centavos). 2. O Tribunal de origem manteve a sanção de dissolução compulsória da pessoa jurídica, sob o fundamento de que a recorrente, “como mais uma empresa paper company do Grupo Líder, durante toda a sua existência serviu à prática de atos lesivos à Administração Pública, tal como anotado no art. 5º, incisos III e V, da Lei Anticorrupção, haja vista que sua própria existência serviu apenas para dificultar as atividades de investigação e fiscalização tributária da Receita Federal do Brasil, fazendo uso de interpostas pessoas – laranjas” (fl. 359, e-STJ). AUSÊNCIA DE OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC 3. Não se configura a ofensa ao art. 1.022 do Código de Processo Civil/2015, uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado. APLICAÇÃO DE ENTENDIMENTO FIRMADO EM PRECEDENTE DA SEGUNDA TURMA 4. As alegações de mérito apresentadas pela recorrente nos presentes autos já foram anteriormente enfrentadas no Recurso Especial 1.803.585/RN, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 22.9.2020, em processo que versou sobre outra paper company do mesmo Grupo Líder, que atuou de forma idêntica. 5. Na ocasião, entendeu-se que a Lei 12.846/2013 não subordina a apuração judicial das infrações nela descritas à anterior instauração de processo administrativo. Limita-se a reiterar o consagrado cânone da independência das instâncias ao estabelecer em seu art. 18 que, “Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”. Em outras palavras, a abertura de processo administrativo prévio não se coloca como conditio sine qua non para o ajuizamento de ação com base na Lei Anticorrupção. 6. Em boa hora a Lei 12.846/2013 foi promulgada para ampliar e fortalecer, no ordenamento brasileiro, os mecanismos de combate administrativo e judicial a comportamentos “contra a administração pública”, fazendo-o sob um duplo regime de responsabilidade objetiva (para a pessoa jurídica) e responsabilidade subjetiva (culpa, para a pessoa física), consoante os arts. 1º, 2º e 3º, § 2º. Nela, a responsabilização se realiza no âmbito administrativo (art. 6 e segs.) e no âmbito judicial (art. 18 e segs), sem prejuízo de medidas adicionais fixadas em outras esferas e regimes jurídicos aplicáveis. São estipuladas três classes de atos de presumida lesividade à Administração Pública, nacional ou estrangeira. Os atentatórios, primeiro, contra o patrimônio público material e imaterial, nacional ou estrangeiro; segundo, contra os princípios da administração pública; e, terceiro, contra compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (art. 5º). 7. Acrescentou ainda a Segunda Turma: “A previsão do art. 5º, V, da Lei 12.486/2013, que caracteriza como ato atentatório contra o patrimônio público nacional a conduta consistente em ‘dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos’, abrange a constituição das chamadas ‘empresas de fachada’ com o fim de frustrar a fiscalização tributária.” AUSÊNCIA DE INÉPCIA DA PETIÇÃO INICIAL 8. […]. CONCLUSÃO 13. Recurso Especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido. (REsp n. 1.808.378/RN, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 26/9/2022.). Sem grifos no original.

O Acórdão, portanto, reafirmou importante jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que já havia fortalecido a aplicação da Lei Anticorrupção, no julgamento do RESp n. 1.808.952/RN (Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/9/2020, DJe de 1/7/2021). Dentre as posições do STJ, duas considerações se destacam:

a) a criação de empresas de fachada, ou a proliferação de CNPJ’s e pessoas jurídicas dentro de um grupo econômico, com o objetivo de dificultar a atuação fiscalizadora de órgãos estatais, caracteriza ato atentatório ao patrimônio público e pode tipificar a conduta prevista no artigo 5º, V, da Lei Anticorrupção: “V – dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.”.

b) seguindo a tendência jurisprudencial de separação entre esferas administrativa e judicial, e a prescindibilidade da primeira para a propositura da segunda, o Superior Tribunal de Justiça afastou a necessidade de procedimento administrativo prévio, para a aplicação de eventuais sanções da Lei Anticorrupção, forte no artigo 18,4 da referida legislação.

Essas duas posições fortalecem em muito a Lei Anticorrupção. A interpretação dada à extensão do artigo 5º, V, da Lei n. 12.846/2013, reforçam a intenção de a Lei Anticorrupção ser uma legislação de índole civil ou de direito administrativo, cuja aplicação não se restringe a atos de “corrupção”, em sentido estrito. Como a Lei não possui natureza criminal, o que pode ser extraído da sua própria ementa, a sua interpretação é mais ampla, admitindo-se, inclusive, a analogia para casos omissos.

Assim sendo, foi correto o Superior Tribunal de Justiça ao considerar que a criação de uma empresa de fachada obsta a atuação fiscalizatória de órgãos de investigação. Mesmo que a Lei não traga um tipo administrativo específico dessa natureza, admite-se a interpretação extensiva.

Ademais, a Lei Anticorrupção busca a formação de um compromisso com o empresário de que ele será capaz de agir em conformidade (compliance). No caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça, o grupo investigado violou esse compromisso, pois usou de uma empresa para burlar o fisco. É interessante notar que não há ilegalidade na criação de uma nova pessoa jurídica, a grande questão foi finalidade dada a ela e a consequente violação de dispositivo legal.

Por outro lado, a dispensa de procedimento administrativo prévio para a propositura de medida judicial, além de estar em consonância com ampla jurisprudência pátria, revela-se salutar pela dificuldade da definição de competências entre órgãos investigadores. No Brasil há uma espécie de paralelismo estatal em que vários órgãos ou instituições (Ministério Público; CGU; Receita Federal; COAF; Polícia Federal) possuem competência concorrente para a apuração de ilícitos tipificados na Lei Anticorrupção.

Acaso o STJ condicionasse a propositura de medida judicial ao procedimento administrativo prévio, criaria uma “porta dos fundos” para a impunidade. Ou seja: enquanto o Estado Investigador decide quem investiga, o Judiciário seria obrigado a deixar empresas corruptas impunes, o que não é a intenção da legislação. Ainda, se há provas suficientes do ilícito, nada impede a propositura da medida judicial sem procedimento administrativo prévio, entendimento esse adotado, inclusive, na esfera penal.

Então, ressalvados obviamente eventuais considerações específicas sobre o caso concreto, o que foge do objetivo dessa coluna, o Superior Tribunal de Justiça deu verdadeiro presente à Lei Anticorrupção, para o seu mês de aniversário.

Além disso, o precedente serve de alerta a prática muito comum de se proceder pela “criação” de CNPJ’s, sem sede e sem movimentação financeira própria, com a finalidade de burlar a fazenda ou qualquer outra forma de fiscalização. O Superior Tribunal de Justiça acaba de confirmar a ampliação do espectro de possibilidades de responsabilização de pessoas jurídicas.

Portanto, o Superior Tribunal de Justiça reafirma que o compliance deve ser levado a sério.

 

Referências

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1. Disponível em: link.

2. Disponível em: link.

3. Disponível em: link.

4. Lei Anticorrupção. Art. 18. Na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial.

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