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O que Gerald Postema pode nos ensinar em matéria de direito tributário?

Gerald-Postema

Para Thomas Bustamante, Misabel Derzi, Isabela Santos, Pedro Urashima e Pedro Antunes

 

Muita coisa, porque o Direito Tributário, juntamente com o Direito Penal, talvez represente a expressão juridicamente mais bem acabada do Estado de Direito. Com efeito, por razões tributárias muitos movimentos históricos relativos à contenção do poder estatal pelo Direito tiveram a sua motivação.1 A origem do princípio da legalidade – não apenas a tributária – é consensualmente atribuída à Magna Carta de 1215, assinada por João I, o João Sem Terra, rei da Inglaterra entre 1199 a 1216, sob pressão dos barões ingleses, no qual se previu que o estabelecimento de tributo naquele Reino dependeria do consentimento de arcebispos, bispos, abades, condes e barões.2 Também é consenso histórico o fato de que a Independência Americana teve como pano de fundo questões relacionadas à imposição de impostos sobre as colônias americanas, em especial o imposto sobre o chá. E como símbolo perene da contenção do poder resultaram a primeira constituição escrita e o federalismo. A Revolução Francesa foi precedida do Antigo Regime, em cujo tecido social a revolta foi motivada, dentre outros motivos, pelo fato de que a carga tributária era suportada pelo povo, sem a participação do clero e da nobreza. E com o advento da Revolução ecoaram os gritos de liberdade, igualdade e fraternidade. Assim, as principais projeções jurídicas do Estado de Direito, como por exemplo o valor da segurança jurídica e o princípio da legalidade são aqueles valores que preponderam para compreensão do nosso Direito Tributário, como bem apontado por MISABEL DERZI.3

Mas qual a relação disto com GERALD POSTEMA? Em 2022, o citado filósofo do Direito americano fez publicar seu Law’s Rule,4 no qual sustenta uma compreensão ético-jurídica do Estado de Direito, bem distinta da doutrina do Rechtstaat com a qual nossa doutrina está mais familiarizada.5

POSTEMA divide seu livro em duas partes: a primeira delas, composta por oito capítulos, é dedicada a expor os elementos que compõem (a “core conception”) o Estado de Direito, ao passo que a segunda parte é integrada por mais sete capítulos, nos quais o autor testa a concepção por ele criada e apresenta algumas das dificuldades contemporâneas enfrentadas pelo rule of law. Não se pretende fazer uma resenha deste substancioso livro, mas destacar algumas ideias trazidas pelo jusfilósofo americano em seu capítulo III, denominado “Soberania, Equidade e Fidelidade”, pari passu a conjugar as citadas ideias com o Direito Tributário brasileiro, seja para enaltecê-lo, seja para criticá-lo.

POSTEMA inicia o capítulo invocando MATIN KRYGIER, no sentido de que “o estado de direito exige que o direito conte”, e isso “por sua vez exige que seja amplamente esperado e considerado válido”.6 Contudo, para este autor é necessário que haja um compromisso da comunidade para que o direito conte, ou seja, governe. Daí as três ideias fundamentais para seu êxito: soberania do direito, igualdade perante o direito e fidelidade em relação ao direito.

Ao versar sobre a soberania do direito, POSTEMA observa que o conceito usual de Estado de Direito, qual seja, aquele no qual o poder – em especial o político – está submetido ao direito, esconde uma importante consideração: a de que o estado de direito exige que o direito governe o exercício do poder, não todo o comportamento ou todos os domínios da vida.7

Assim, para POSTEMA a ideia de soberania do direito compreende três subprincípios: legalidade, reflexividade e exclusividade, os quais, embora analiticamente separáveis, são interdependentes.

A legalidade, em cujo sentido é tratado por POSTEMA de modo mais amplo, tal como o que se compreende como juridicidade, completamente distinta da noção de “lei e ordem”, quer significar a necessidade de que aqueles que exercem o poder assim o façam por meio do direito, de modo a evitar o abuso do poder contra aqueles que estão sujeitos a ele, como ocorre no caso de leis destinadas a enfraquecer o Poder Judiciário, ou de imposições de obrigações inconsistentes aos cidadãos.8

Essa ideia pode suscitar algumas questões importantes em matéria tributária. A fiscalização tributária encontra-se disciplinada em nosso Código Tributário Nacional entre os artigos 194 a 200. Por certo, o poder conferido ao Estado para fiscalizar os contribuintes é amplíssimo, devendo ser usado com legalidade e proporcionalidade, porque naturalmente invasivo. Assim, a exigência de documentos não expressamente previstos no ordenamento consubstancia exercício abusivo do poder.

Ainda nesta seara, o STF autorizou o compartilhamento de dados bancários e fiscais entre a Receita Federal e o Ministério Público para fins penais sem autorização judicial prévia, no julgamento do Tema 990 de Repercussão Geral (RE 1.055.941/SP). Esta decisão foi objeto de crítica por nós, na companhia de JÚLIA PARTEZANI e MARIA ISABELA QUEIROZ, exatamente porque fere a legalidade, no sentido de POSTEMA, ao permitir que o direito seja usado contra os cidadãos e não em sua defesa contra o abuso do poder estatal.9

Retornando a POSTEMA e à soberania do direito, a reflexividade, por sua vez, visa impedir que o direito se torne uma ferramenta conveniente de governo, ou seja, quando favoreça aqueles que estejam no poder. Daí reclamar este subprincípio que os governantes também sejam governados pelo direito, sujeitando o exercício do poder a instituições fortes e eficazes e s arranjos de accountability.10

Por fim, a exclusividade predica que soberano, de fato, é apenas o direito. Todo poder apenas assim o é quando advém e é disciplinado pelo direito, sem haver espaço para poderes fora dele.11 Assim, a clássica concepção de legalidade no âmbito do Direito Administrativo – o cidadão pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, ao passo que o Estado só pode fazer aquilo que a lei permite – tem sua razão de ser, diria POSTEMA, em virtude de uma assimetria entre governantes e cidadãos, uma vez que as pessoas jurídicas (de direito público ou privado) não possuem posição moral fora do direito, o que não ocorre com as pessoas naturais.12

Esgotado o debate sobre a soberania do direito, POSTEMA passa a construir a noção de igualdade aos olhos do direito. Para ele, a principal preocupação da igualdade no contexto do estado de direito não é a igualdade material ou econômica, nem a igualdade política associada à democracia, mas sim a de oferecer igual proteção do direito contra o abuso de poder, ou seja, a inafastabilidade da jurisdição e o devido processo legal.13

A exclusividade ínsita à soberania do direito aliada à igualdade aos olhos do direito pode servir como um dos fundamentos para se repelir argumentos em matéria de planejamento tributário que visam desconsiderar procedimentos lícitos adotados pelos contribuintes visando economia tributária com base nos princípios da igualdade, da capacidade econômica e da interpretação econômica do fato gerador. Com efeito, a melhor doutrina ensina que a obrigação tributária surge com a ocorrência, no mundo dos fatos, do fato abstratamente descrito na hipótese de incidência tributária, à moda de GERALDO ATALIBA.14 Igualdade e capacidade contributiva devem estar mensuradas na lei. Qualquer interpretação econômica dos fatos desborda do mundo jurídico. Solidariedade, por si só, não faz surgir obrigação tributária.

Assim, POSTEMA introduz a noção daquilo que ele denominou princípio do recurso: cumpre aos governos fornecer aos seus cidadãos acesso efetivo às instituições de proteção do direito, notadamente ao Poder Judiciário, com direito a um processo justo.15 Assim, o princípio do recurso exige um projeto de accountability, de modo que a cidadão é lícito responsabilizar aqueles que exercem o poder perante o direito e aqueles que prejudicam alguém por meio do abuso de poder.16

Recentemente, com VINÍCIUS SOARES e BERNARDO CABRAL, pudemos apontar uma violação ao princípio do recurso, embora não tenhamos feito referência a POSTEMA. É que a possibilidade de recurso contra o abuso estatal não se restringe apenas ao acesso ao Poder Judiciário, cabendo também discutir a validade de atos administrativos de lançamento tributário perante a própria Administração Pública. Assim é que o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 1.160/2023, impedindo o acesso ao CARF dos processos administrativos com valores inferiores a 1000 salários-mínimos. Entendemos, naquela oportunidade, que tal previsão feria não apenas a igualdade tributária, mas também as garantias processuais dos contribuintes.17

Importa compreender que POSTEMA concebe o direito como um modo de associação de comunidades políticas, para que ele governe é necessário um ethos nesta mesma comunidade. Trata-se da fidelidade, compreendida por POSTEMA como a ideia segundo o direito apenas governa quando todos os seus membros (agentes públicos e cidadãos) assumem a responsabilidade de responsabilizar uns aos outros de acordo com ele.18

POSTEMA defende a ideia de uma accountability mútua. A capacidade de responsabilização não apenas está restrita aos oficiais, os quais responsabilizam os cidadãos perante e nos termos prescritos pelo direito. Assim, o autor sustenta que a cooperação amplamente voluntária dos cidadãos, essencial para o exercício do poder, somente ocorrerá se a comunidade política acreditar que aqueles que exercem o poder também obedecerão ao direito.19 O problema é resolvido quando se concebe uma rede ampla de prestação de contas comum e cooperativa entre os membros de determinada política, de modo que os cidadãos são responsáveis perante as autoridades, mas também as autoridades são responsáveis perante os cidadãos, os quais podem contestá-las perante o Judiciário.20

Portanto para POSTEMA, a fidelidade permite que o accountability se torne um poder “distribuído e compartilhado. Todos os membros da comunidade têm uma responsabilidade mútua de exercer esse poder. Cada membro deve esta obrigação uns aos outros membros e a todos – é mútuo e geral”.21 O próprio Estado de Direito, assim, se torna um bem comum da comunidade política.

Assim, a preocupação constante de POSTEMA, qual seja, a de que o direito – e apenas ele – governe implica na ideia segundo a qual determinadas normas informais possam minar a eficiência do estado de direito, de modo que “a fidelidade é uma condição necessária para a realização do estado de direito; não suficiente”.22

 

Referências

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1. Cf. UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999.

2. “(14) To obtain the general consent of the realm for the assessment of an ‘aid’ – except in the three cases specified above – or a ‘scutage’, we will cause the archbishops, bishops, abbots, earls, and greater barons to be summoned individually by letter. To those who hold lands directly of us we will cause a general summons to be issued, through the sheriffs and other officials, to come together on a fixed day (of which at least forty days notice shall be given) and at a fixed place. In all letters of summons, the cause of the summons will be stated. When a summons has been issued, the business appointed for the day shall go forward in accordance with the resolution of those present, even if not all those who were summoned have appeared”. (THE NATIONAL ARCHIVES. Magna Charta. Disponível em: site. Acesso em 03 jul. 2023.

3. DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. 2. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2007.

4. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022.

5. Cf. COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo (orgs.). O Estado de Direito: História, Teoria e Crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

6. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.52.

7. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.53.

8. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.54-55.

9. PARTEZANI, Júlia Amorim; QUEIROZ, Maria Isabela da Silva; MARINHO NETO, José Antonino. O compartilhamento de informações da Receita Federal com o Ministério Público e seus reflexos tributários: uma crítica ao STF. In: MATA, Juselder Cordeiro da; BERNARDES, Flávio Couto; LOBATO, Valter de Souza. (Org.). Tributação na sociedade moderna. 1ed.Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021, v. 2, p. 371-388.

10. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.55-56.

11. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.57-59.

12. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.60.

13. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.60-61.

14. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. – 6.ed., 16.tiragem – São Paulo: Malheiros, 2016.

15. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.63.

16. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.64.

17. SOARES, Vinícius André Oliveira; FILGUEIRAS, Bernardo Cabral; MARINHO NETO, José Antonino. Portaria MF 20/23: afronta à igualdade tributária e as garantias processuais. Opinião. CONSULTOR JURÍDICO (SÃO PAULO. ONLINE), 2023. Disponível em: site. Acesso em: 20 jul. 2023.

18. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.66.

19. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.67.

20. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.68-71.

21. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.72.

22. POSTEMA, Gerald. Law’s rule. Oxford University Press, 2022, p.75.

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