O que o caso Gisèle Pelicot nos ensina sobre violência sexual

O que o caso Gisèle Pelicot nos ensina sobre violência sexual

caso Gisèle Pelicot

O mundo assiste atônito aos episódios estarrecedores revelados no julgamento de Dominique Pelicot e mais 50 réus, entre idades de 26 a 74 anos, acusados de estupro da ex-esposa de Dominique, Gisèle Pelicot, no Tribunal de Avignon, no sul da França 1. Por quase dez anos, Pelicot, consoante a acusação, drogou a esposa para que, inconsciente, fosse estuprada por dezenas de homens desconhecidos, recrutados pelo ex-marido da vítima na internet. O casal, Dominique e Gisèle, conviveu por cinquenta anos sem que a mulher suspeitasse da conduta imputada ao ex-cônjuge. Dominique foi preso após filmar sob a saia de uma mulher em um supermercado. Em virtude desse fato, investigadores encontraram 300 fotografias e um vídeo dos atos (estupros) contra Gisèle. Ouviram a vítima, que relatou sofrer de lapsos de memória, tendo dito que chegou a consultar ginecologistas em virtude de dores inexplicáveis 2. Alguns réus admitiram a culpa, outros disseram que acreditavam estar realizando uma fantasia do casal e Gisèle saberia de tudo. Dominique insistiu que todos sabiam que Gisèle não estava consciente e na maior parte das vezes, os acusados não usaram preservativos 3, tampouco se preocuparam com o consentimento da vítima, frise-se, inconsciente.  Alguns dos réus afirmaram que como o marido havia outorgado permissão, concluíram que a vítima estava de acordo, como se houvesse mandato tácito ou algo similar. Ocorre que a legislação francesa a propósito do crime de estupro é silente quanto ao “consentimento” da vítima, definindo o delito em comento como “qualquer ato de penetração sexual , de qualquer espécie, qualquer ato oral-genital cometido sobre outra pessoa por meio de violência, coerção, ameaça ou surpresa” Em hipótese similar ao caso Pelicot, sob contexto de estado de inconsciência não intencional por parte da vítima, o crime é considerado como “estupro surpresa” em território gálico, discutindo-se no mesmo acerca da necessidade de adequação legislativa 4.

O Código Penal Brasileiro estabelece no artigo 217-A , parágrafo primeiro,o crime de estupro de vulnerável , correspondente ao fato de se consumar conjunção carnal ou praticar diverso ato libidinoso com alguém que, por “qualquer outra causa” (ou seja, além de menoridade, enfermidade ou doença mental), não puder oferecer resistência, caso da inconsciência da vítima Gisèle por ingestão de fármacos, fazendo-se um paralelo do tipo penal.

O artigo 7º , inciso III, in fine da Lei 11.340/06, por seu turno, preconiza a violência sexual a abarcar qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada de modo a anular o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos. Outras interpretações também são possíveis tais como manipulação para prostituição, exemplificativamente. Certo é que eventos que vitimizaram Gisèle Pelicot, para a legislação nacional, correspondem a graves crimes sexuais e violências sexuais francamente inomináveis.

Consigna-se que de janeiro a abril de 2024, apenas o estado de São Paulo registrou uma média de 38 estupros contra mulheres por dia, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP)5. Não obstante a proporção vultosa, com queda de 3% em relação a 2023, o levantamento da Secretaria de Segurança Pública apontou para a circunstância de que as ocorrências de estupro contra mulheres vulneráveis foram quase três vezes maior do que os casos não-vulneráveis em 2024.

Qual seria o ponto comum, então, para que tivéssemos apenas em nosso estado o aumento proporcional de estupros contra vulneráveis de maneira similar aos crimes consumados por Dominique Pelicot (e terceiros), este um pacato idoso, excelente avô e bom companheiro, residente em pequena cidade do interior da França, em detrimento da esposa?

A conexão entre tais fatores é relevante ao passo que assistimos à escalada da violência contra a mulher na atualidade.

Algumas das possíveis respostas a tais indagações correspondem à facilidade mais expressiva de cometimento de crimes contra vulneráveis, que menor resistência podem apresentar aos atos (quando não nenhuma, como o caso paradigma em comento) e cultura patriarcal vigente, na qual a objetificação da pessoa do gênero feminino é tão naturalizada que diversos agressores sexuais de Gisèle declararam que “como o marido anuiu, concluíram que a vítima também o havia feito, embora ela não se manifestasse”. De ver-se que Gisèle não se pronunciou por um motivo muito claro, estava dopada , fator que jamais seria conhecido e alvo de credibilidade pública se não fossem as imagens extraídas com câmera fotográfica ou similar e vídeo de autoria de Dominique Pelicot.

Lembremos que vulneráveis são também as pessoas que não podem se manifestar consoante a respectiva vontade em decorrência de elementos intrínsecos estruturais ou em virtude do respectivo desenvolvimento. E os menores de 14 anos.

Especificamente no que tange aos menores, a ideologia vigente da busca incessante da eterna juventude, perfeição estética, magreza somada à correspondência a padrões físicos eurocêntricos e brancos, que paulatinamente vem sendo atenuada, ainda é estimulada pela cadeia de produção de bens e serviços, com ênfase nas indústrias da beleza e  moda.

Psicopatologias, pedofilias ou francas covardias de personalidades perversas, perpetradas contra meninas (e também meninos), cujo recrudescimento é visível perante os dados estatísticos, revelam a legítima crise de valores humanos e porque não dizer, éticos, na sociedade pós-moderna.

Continua a espantar o apontamento de informes sobre violência sexual contra mulheres e meninas. Mais que isso, em detrimento de todas aquelas que se identificam com o gênero feminino.

Diante desse quadro, nos afigura imprescindível salientar-se que o episódio dos estupros perpetrados contra Gisèle Pelicot, mediante arregimentação de agressores pelo próprio esposo no qual a vítima plenamente confiava, não ostenta conotação de excepcionalidade.  A tarefa de conhecer o próximo se mostra quase irrealizável, para frustração coletiva.

Perante tais conformações, mais do que nunca nos incumbe lutar para conscientização da sociedade contra a violência sexual e de resto, toda forma de violência, em desfavor do gênero feminino.

Referências

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1. www.noticias.uol.com.br, matéria veiculada em 16/09/2024, acessada em 28/09/2024;

2. Leras Marc e Brice, Makini, Reuters, www.cnnbrasil.com.br, matéria veiculada em 17/09/2024, acessada em 28/09/2024;

3. www.noticias.uol.com.br, matéria veiculada em 18/09/2024, acessada em 28/09/2024;

4. Courbet, David, www.gauchazh.clicrbs.com.br (Zero Hora) , veiculada matéria em 27/09/2024, acessada em 28/09/2024;

5. Saldanha, Rafael, www.cnnbrasil.com.br, matéria veiculada em 14/06/2024, acessada em 28/09/2024;

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