A lei 14.230 de 2021 alterou substancialmente a Lei de Improbidade Administrativa. A reforma tem como fundamento evitar punições desnecessárias ou injustas aos agentes públicos, buscando afastar o chamado “direito administrativo do medo” e o “apagão das canetas”. Tais expressões denominam os movimentos realizados pelos agentes, sejam políticos, sejam administrativos, para evitar tomar alguma decisão que possa ser interpretada como ato ímprobo e ensejar a imposição de sanções pelas esferas controladoras. Assim, o objetivo claro da reforma é proteção do agente público em seus atos e garantir a segurança jurídica no agir administrativo.
Nessa toada, a lei destaca a necessidade de atuação dolosa para que seja configurado o ato de improbidade administrativa, extinguindo, portanto, a modalidade culposa como elemento típico do ilícito ímprobo. Ainda assim, as três modalidades de condutas ímprobas foram conservadas no diploma normativo: o enriquecimento ilícito, o dano ao erário e a violação à princípio da Administração, respectivamente mantidos nos artigos 9, 10 e 11 da Lei.
Além disso, a reforma reconheceu explicitamente que se aplicam ao sistema de improbidade administrativa os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1º, parágrafo 4º). Ainda que o Direito Administrativo Sancionador esteja cada vez mais consolidado, nas suas mais diversas áreas de aplicação, a positivação desse sub-ramo do direito administrativo afasta qualquer dúvida sobre as garantias constitucionais aplicáveis também no direito administrativo e não só no direito penal, o direito punitivo por excelência. Assim, os princípios constitucionais de protetivos aos indivíduos em relação às sanções estatais aplicam-se à tutela da improbidade. Legalidade, tipicidade, pessoalidade, irretroatividade, proporcionalidade, todos previstos no rol do artigo 5º da Constituição Federal estão, em suma, guiando os ilícitos e as sanções por improbidade.
Dentre os diversos princípios protetivos aplicáveis, neste texto, destaca-se a importância do binômio legalidade-tipicidade. Tais elementos são os que garantem, em sua totalidade a segurança jurídica necessária à aplicação do direito sancionador. Enquanto a legalidade está pautada pela primazia e reserva da lei, ao prever ilícitos e impor sanções, a tipicidade é o que dá substrato aos elementos trazidos pela lei e necessários à condenação pelo ilícito de improbidade. De acordo com Heraldo Garcia Vitta,1 as sanções restariam esvaziadas na medida em que seu conteúdo não pudesse ser definido de modo exaustivo, ainda mais em se tratando de sanções de supremacia geral, como as de improbidade. Para o autor, a tipicidade é corolário da legalidade.
Já Celso Antônio Bandeira de Mello2 complementa que os pressupostos de segurança jurídica estariam prejudicados, ainda que os ilícitos e as sanções estivessem previstos em lei em sentido formal, se estivessem dispostos de modo insuficiente, conferindo uma margem maior para o administrador aplicá-las de acordo com seus próprios critérios, de modo que os administrados não teriam condições de prever as maneiras necessárias para se afastar de condutas ilícitas. Portanto, tão importante quanto a previsão em lei das condutas e sanções por improbidade, é a tipificação clara e precisa do comportamento jurídico que enseja punição, de modo a garantir previsibilidade e segurança jurídica aos administrados.
Dentre tantos aspectos novos trazidos e que deverão ser objeto de discussão jurisprudencial, está a taxatividade ou não dos ilícitos por improbidade administrativa e consequentemente, sua relação com o princípio da tipicidade da norma administrativa sancionadora.
Antes da reforma, a lei 8.429/92 considerava que o rol de ilícitos, em suas três modalidades, tinha caráter exemplificativo, ou seja, a lei não se referia exaustivamente às condutas puníveis, podendo o agente ser sancionado por uma conduta que não estaria ali prevista. O argumento era validado pela presença do advérbio “notadamente” no caput dos referidos artigos, antes de apresentar o rol de condutas ensejadoras de ato de improbidade.
Como visto, o intuito da reforma da lei de improbidade é garantir segurança jurídica aos administradores públicos e adequá-la aos pressupostos do Direito Administrativo Sancionador, sendo o princípio da tipicidade um elemento relevante para a concretização desses objetivos. Desse modo, seria contra as próprias razões da reforma que o rol de ilícitos tipificados fosse meramente exemplificativo. Porém, a redação legal parece não condizer com esse argumento.
As dúvidas quanto a taxatividade dos atos previstos no artigo 11, ou seja, os que apontam os atos de improbidade atentatórios aos princípios da Administração Pública parecem ter desaparecido com a reforma da Lei. O advérbio “notadamente” foi retirado, não restando questionamentos: os atos de improbidade atentatórios aos princípios da administrativos são taxativos, ou seja, os agentes só podem ser punidos pelas condutas ali previstas. O caput do artigo considera ilícito “a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas”. A palavra “caracterizada” corrobora que, no que tange a tal artigo, o rol é exaustivo.
A celeuma subsiste para os artigos 9 e 10, nos quais o advérbio permaneceu mesmo após a reforma. O artigo 9º tipifica que “constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente”. Verifica-se que, a partir da interpretação literal, o enriquecimento poderia ser qualquer conduta que se subsumisse ao caput, e os incisos meros exemplos de condutas ilícitas.
Da mesma forma, o artigo 10 prevê que “constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente”. Com o mesmo problema do artigo anterior, a redação legal dá a entender que várias condutas podem ser enquadradas no caput e os incisos são situações hipotéticas que seriam puníveis.
Portanto, há uma incompatibilidade entre as redações legais dos artigos 9 e 10 e as razões da reforma da Lei de Improbidade Administrativa, que objetivou conferir segurança jurídica e previsibilidade à atuação dos agentes públicos, principalmente no que tange a tipicidade dos ilícitos ímprobos. Resta a jurisprudência definir quais os caminhos interpretativos a serem tomados, se calcado apenas na redação legal, considerando os ilícitos exemplificativos, ou se baseada nos princípios norteadores do direito sancionador, garantindo um rol taxativo e completamente típico às infrações administrativas.
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Referências
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1. VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 91-92.
2. BANDEIRA DE MELLO. Curso de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 809.