O salário do réu pode ser penhorado em ação trabalhista?

O salário do réu pode ser penhorado em ação trabalhista?

office-with-documents-money-accounts

A discussão a respeito da impenhorabilidade ou não do salário do reclamado, quando pessoa física ou em caso de despersonalização da pessoa jurídica  é de longa data, sendo que o Judiciário, na maioria dos casos, tem recusado o pedido de penhora pelo autor da ação trabalhista, com base no artigo 833, inciso IV do CPC.

No entanto, tal dispositivo de lei deve ser analisado e aplicado com cautela.

Sobre o artigo mencionado, leciona, com muita propriedade, José Martins Catharino:

(…) a impenhorabilidade total e ilimitada é demasiada, produzindo efeitos contraproducentes. O ideal seria a impenhorabilidade parcial e limitada. Impenhorabilidade total e ilimitada até certo valor do salário, e, daí para cima, penhorabilidade progressiva. Não é justa ausência de distinção por força do princípio constitucional da igualdade. O caráter alimentar da remuneração – fundamento da impenhorabilidade – decresce em proporção  inversa do seu maior valor. Por conseqüencia, impenhorabilidade total e limitada, impenhorabilidade regressiva e penhorabilidade progressiva deveriam ser coordenadas (no mesmo sentido: José Bonifácio de Abreu Mariani, Da penhora, tese, Bahia, 1949, n. 4, p. 90 e 91; na França, penhorabilidade e impenhorabilidade parciais existem desde 1895, por Lei de 12 de janeiro, datando sua última modificação de 2-08-1949, sendo que a Loi de Finances, de 20-12-1972, estabeleceu regras relativas às contas bancárias). 1 

Orlando Gomes também já se manifestou sobre o assunto, dizendo:

À primeira vista parece absurdo que se impossibilite, por esse modo drástico, a ação dos credores do empregado, já que proibindo a lei incida a penhora sobre os salários em geral, não há praticamente como compeli-lo ao pagamento das dívidas que tenha contraído. Não obstante, justifica-se plenamente a proteção por esta forma desde naturalmente que não seja concedida nos extremos de uma total e absoluta impenhorabilidade.2 (Sublinhamos)

Messias Pereira Donato,3 também é contra o sistema da impenhorabilidade total e faz, com muita propriedade, a seguinte ponderação:

Parte-se da presunção de ser alimentar o crédito salarial. Tese criticável, porque não atenta para o quantum remuneratório. Dá tratamento igual a quem aufere salário mínimo ou polpuda remuneração. Na verdade enfraquece o crédito do empregado, ao colocar os seus credores ao desamparo.

A C. Suprema Corte sobre o assunto já se manifestou:

A afirmação de que o salário impenhorável não alcança gratificações e lucros por vezes vultuosos não vulnera a letra da lei. (STF-RE 8.377, 2ª T., rel. Min. Orozimbo Nonato, DJ, 29.11.1951).

Portanto, conclui-se que deve haver a proteção do salário contra às investidas dos credores, desde que não seja de maneira absoluta, mas tão somente destinada a atender aquela parte correspondente ao piso vital mínimo, que deve ser assegurada a qualquer cidadão (Constituição da República, Art. 7º, inciso IV).

Sim, pois não é justo que o salário ou os proventos de qualquer natureza, quando elevados, gozem dos benefícios da impenhorabilidade em sua totalidade, haja vista que só parte dele possui o caráter alimentar, de subsistência, propriamente dita, do trabalhador.4

Aplicar o Art. 833, IV do CPC sem a análise das circunstâncias do caso concreto, só ao devedor beneficiaria, em total detrimento dos credores, em especial o credor trabalhista, cujo crédito tem natureza alimentar.

No caso do valor dos salários rendimentos dos réus serem passíveis de penhora, mesmo que parcial e mensal, sem que haja prejuízo em sua subsistência, assim como no caso dos devedores terem outras fontes de rendas, não encontro qualquer empecilho legal.

E, nos dizeres de Catharino, pode-se afirmar que no Brasil qualquer valor superior a dois salários mínimos já pode ser considerado excedente ao piso vital mínimo.

Catharino5 vai ainda mais longe e afirma não ser jurídica a ausência desta distinção, pois segundo o art. 833,  IV do CPC, tem tratamento igual tanto o salário do alto empregado como o do simples servente, de nada valendo a circunstância do último ter nítido caráter alimentar em flagrante contraste com o primeiro que não tem ou o possui de forma muito atenuada. Segundo ele, não é necessário comentar o erro do legislador, pois salta aos olhos, inclusive dos leigos.

E, utilizando-se o direito comparado, conforme destaca Orlando Gomes,6 hoje, com exceção talvez do Brasil e do México, todos os países admitem, por via legislativa ou judicial, a penhorabilidade parcial do salário.

A título de exemplo, a Lei Argentina nº 14.443, modificando a Lei nº 9.511, estabelece a impenhorabilidade até mil pesos. De mil até dois mil pesos, admite-se a penhora de 5% (cinco por cento); de dois mil pesos a três mil, 10% (dez por cento); de três mil pesos até cinco mil, 15% (quinze por cento); e acima desse valor, 20% (vinte por cento).7

A lei francesa (Lei de 2 de agosto de 1.949) também adota o critério da progressividade ou proporcionalidade, autorizando a penhora de 1/10 (um décimos) sobre o salário que for inferior a 150 mil francos; 1/5 (um quinto) sobre a porção superior a 150 e inferior a 300 mil francos; 1/4  (um quarto) sobre a porção situada 300 mil e 450 mil francos e 1/3 (um terço) entre 450 mil e 600 mil. Acima desse valor o salário fica descoberto, isto é, pode ser penhorado integralmente.8

O mesmo critério é adotado na Espanha (Art. 1.449, LEC), onde se admite a penhora proporcional. No caso de pensão alimentícia, é penhorável 1/7 (um sétimo) do salário não excedente de 18.000 pesetas e desde que não supera 22.000 pesetas anuais; até metade, se ultrapassa 38.000 pesetas. Para os demais créditos, permite-se a penhora proporcional, que vai de 25% (vinte cinco por cento) para as primeiras 5.000 pesetas que excedam de 18.000, até 50% (cinqüenta por cento) a partir das sextas 5.000 pesetas.9

A finalidade do art. 833, IV do CPC, é a de justamente não deixar o empregado ou segurado à mingua, de vê-lo privado de seu salário/pensão, bem como de seu sustento em razão de um ato constritivo do Estado (penhora) e não de beneficiar devedores, que fraudam o sistema legal vigente e se beneficiam das aberturas e “brechas” existentes na legislação para não cumprir com suas obrigações, perpetuando-se as dívidas e colocando o país numa verdadeira crise institucional.

Portanto, ainda que o Código de Processo Civil proíba de forma absoluta que a penhora recaia sobre os salários, a exegese da norma, a análise de seus fundamentos à luz do ordenamento jurídico brasileiro,  a análise do direito comparado e a análise do caso concreto orientam no sentido de que seja admitida a penhora parcial do salário do sócio executado a fim de satisfazer créditos que também são dotados de natureza alimentar (trabalhista).

E, como bem salienta Amauri Mascaro do Nascimento: se o salário pode sofrer descontos, pode ser penhorado pelas mesmas razões.10

Ademais, a impenhorabilidade salarial é excepcionada pela própria lei (Art. 833, IV do CPC) quando o crédito for de natureza alimentar, neste incluído o decorrente de sentença trabalhista, como preconizado no § 1º-A do artigo 100 da Constituição da República.

Assim, dependendo do valor dos proventos (se for maior do que o piso vital mínimo) a doutrina e jurisprudência têm admitido a penhora de parte da remuneração para satisfação do crédito trabalhista.

Neste sentido:

RENDIMENTOS AUFERIDOS DO TRABALHO ASSALARIADO. EXECUÇÃO DE CRÉDITO TRABALHISTA. PENHORABILIDADE. A teor do art. 649, IV, do CPC, os rendimentos decorrentes do trabalho assalariado são impenhoráveis, excepcionada as hipóteses em que envolvidas as prestações de natureza alimentícia. Nesse cenário, inserindo-se o crédito trabalhista na categoria daqueles de caráter alimentar, de acordo com a própria definição constitucional (art. 100, § 1º-A), não há como elidir a possibilidade de penhora dos rendimentos auferidos pelo devedor, decorrentes do trabalho assalariado, devndo-se, porém, nessa hipótese, à luz do art. 620 do CPC, buscar a adoção de parâmetros proporcionalmente adequados e razoáveis que possibilitem também o suprimento das necessidades vitais básicas do devedor. Agravo de petição conhecido e provido. (00928-1991-008-10-85-0-AP, TRT 10ª Região, 3ª Turma, Juiz Relator Douglas Alencar Rodrigues).

SALÁRIOS IMPENHORABILIDADE – ARTIGO 649, IV DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL – INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA – O art. 649, IV, do CPC deve ser interpretado à luz de princípios como o da dignidade humana e da valorização do trabalho humano. Assim, não se deve considerar que a impenhorabilidade de que trata o dispositivo atinja apenas o salário do trabalhador empregado. É que também o profissional liberal ou autônomo dependem, via de regra, dos frutos de seu trabalho para manutenção própria e da família. Essa forma de interpretar permite que, independente da natureza da relação de trabalho-de emprego, autônoma, serviço público, profissional liberal, ou outra legalmente possível-o trabalhador esteja protegido pela norma processual. Atente-se, todavia, para a necessidade de temperamento na interpretação, em face do caso concreto, para que a impenhorabilidade resguarde, efetivamente, a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e da livre iniciativa, princípios constitucionalmente consagrados. Deve-se evitar que, a pretexto de abrigar-se sob a proteção da norma processual, permaneçam intangíveis verbas que, a despeito de decorrerem do exercício de profissão, ultrapassem os limites da necessidade de sobrevivência digna. Recurso provido, em parte, para autorizar a penhora parcial dos créditos do executado pela prestação de serviços a terceiros. (TRT 9ª R. – Proc. 06070-1995-661-09-00-1 (AP 03172-2003) – (06249-2004) – Relª Juíza Marlene T. Fuverki Suguimatsu – DJPR 16.04.2004) (grifo nosso)

Portanto, o Juiz deve analisar a norma diante do caso concreto, levando-se em consideração os fins sociais a que ela se destina (Art. 5º da LICC), para que, somente assim, possa decidir com equidade.

____________________

Carolina Quinelato da Costa

 

Referências

________________________________________

1. CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho, 2. Ed., São Paulo : Saraiva, 1981, pág. 111.

2. GOMES, Orlando. O salário no direito brasileiro, Ed. fac. Sim., São Paulo : LTr, 1996, pág. 174.

3. Apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Manual do Salário. São Paulo : LTr, 1984, p. 181.

4. No mesmo sentido, Orlando Gomes e Elson Gottschalk, Curso de Direito do Trabalho, Pág. 255.

5. CATHARINO, José Martins. Tratado Jurídico do Salário. Ed. Fac-similada, 2ª Tiragem, São Paulo: LTr., 1994, Pág. 711.

6. Curso de direito do trabalho, op. cit., p. 255.

7. Apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. O Salário. Ed. fac-similada, São Paulo : LTr, 1996, p. 150.

8. Ibid., p. 150/151.

9. Apud NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Manual do Salário. São Paulo: LTr, 1984, p. 182.

10. Manual do Salário, op. cit. p. 183.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio