O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos diante dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos diante dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

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No que diz respeito à estrutura normativa do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, nota-se que os documentos que tratam de maneira expressa sobre os direitos econômicos, sociais e culturais ainda são parcos e possuem algumas contradições em sua trajetória, mas merecem destaque pelo fato de serem pioneiros. São eles: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) e o Protocolo de San Salvador.

A Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem se caracteriza como um documento complementar à Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA), uma vez que esta indica a existência de direitos da pessoa humana, enquanto aquela apresenta o rol destes direitos, a fim de guiar os seus signatários. O rol de direitos que consta na Declaração não separa os direitos econômicos, sociais e culturais dos direitos civis e políticos, o que gera inconsistência na utilização da Declaração Americana. Por essa razão, em algumas situações, o Sistema Interamericano se manifesta de maneira favorável à força vinculante da Declaração com relação aos Estados membros da OEA. Em outros casos, utiliza-se da integração das normas da Declaração com as da Convenção, quando os Estados integram a Convenção. E, ainda, atribui a si mesmo competência para julgar violações, ainda que os direitos não estivessem dispostos na Convenção (CEJIL, 2005, p. 70-71). Com relação à CADH, destaca-se o artigo 26, o qual dispõe:

Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.

Cumpre salientar que o alcance deste dispositivo é discutível, devendo ser observado, em primeiro lugar, se a CADH Americana garante a exigibilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais e, em caso positivo, quais são os direitos em sentido estrito e quais são as obrigações dos Estados.

Quanto à exigibilidade dos direitos retromencionados, existem pesquisadores que os entendem como norma programática (IIDH, 2008, p. 81; TRINDADE, 2003, p. 460), haja vista a dependência de outra lei regulamentadora, a fim de que seja capaz de produzir efeitos jurídicos. Portanto, nesta perspectiva, a exigibilidade e a justiciabilidade dos direitos econômicos, sociais e culturais são praticamente impossíveis. Em contrapartida, há autores que entendem que o artigo 26 da CADH já é dotado de efetividade sem que haja a necessidade de criação de norma regulamentadora para a produção dos seus efeitos, o que torna possível a adoção de medidas para aplicação dos direitos econômicos, sociais e culturais em casos concretos desde a sua entrada em vigor, assim como acontece com os direitos civis e políticos (ABRAMOVICH, ROSSI, 2007, p. 40; MELISH, 2003, p. 379-382; RAMÍREZ, 2003, p. 139-141; SALVIOLI, 2004, p. 112).

Entendendo-se pela segunda ótica, faz-se necessário demonstrar quais são os direitos em sentido estrito e quais são as obrigações dos Estados para que possa haver a sua exigibilidade. No que diz respeito aos direitos econômicos, sociais e culturais em stricto sensu, a própria Comissão Interamericana apresentou alguns direitos neste sentido no “Tecer Informe Sobre la Situación de los Derechos Humanos em Colombia”,1 quais sejam: direito dos indígenas, das comunidades negras, da mulher, das crianças e das pessoas privadas da própria liberdade (CIDH, 1999). Ressalte-se que este relatório foi fruto de uma análise minuciosa do Segundo Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Colômbia, o qual identificou a violência – nas suas diversificadas formas – como um dos principais problemas a ser solucionado no País. No intuito de verificar os fatores que a ocasionam, bem como dos instrumentos jurídicos que visam efetivar os direitos humanos e a administração da justiça, a Comissão estudou códigos legais oficiais, textos jurídicos publicados por entidades oficiais, jurisprudência dos tribunais colombianos, relatórios elaborados por instituições do Estado (Promotor de Justiça, Conselho Presidencial para os Direitos Humanos e Gabinete do Procurador-Geral). Por fim, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos redigiu o Terceiro Relatório dando ênfase à proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, especialmente nas áreas acima mencionadas, em razão de possuírem maior vulnerabilidade na Colômbia (CIDH, 1999).

Em que pese os artigos 1º e 2º da Convenção Americana enumerarem as obrigações gerais do Estado por intermédio dos verbos “respeitar”, “garantir” e “adotar medidas”, discute-se a respeito da aplicação destas determinações aos direitos econômicos, sociais e culturais, uma vez que não existe menção expressa. Para Ramírez (2003, p. 139) e Courtis (2014, p. 90-91), os encargos devem ser aplicados tanto aos direitos civis e políticos quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais, posto que a Convenção engloba todos eles. Por fim, o Protocolo de San Salvador aduz, em seu preâmbulo, que:

(…) a estreita relação que existe entre a vigência dos direitos econômicos, sociais e culturais e a dos direitos civis e políticos, porquanto as diferentes categorias de direito constituem um todo indissolúvel que encontra sua base no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pelo qual exigem uma tutela e promoção permanente, com o objetivo de conseguir sua vigência plena, sem que jamais possa justificar-se a violação de uns a pretexto de outros. (CIDH)

Assim, a ideia que se deseja perseguir com este preâmbulo é a indivisibilidade e integralidade dos direitos humanos, de maneira que os direitos econômicos, sociais e culturais integram um todo, assim como os direitos civis e políticos, não devendo serem excluídas algumas características pelo simples fato de se tratarem daqueles. Neste sentido, a Corte IDH, no caso Acevedo Buendia versus Peru, reconheceu que os direitos humanos devem ser interpretados sob a perspectiva de sua integralidade e interdependência, conjugando-se os direitos civis e políticos e os DESC, sem hierarquia entre si e exigíveis em todos os casos (CIDH, 2009, p. 32-33).

Outrossim, assim como o Tecer Informe Sobre la Situación de los Derechos Humanos em Colombia, este documento expõe uma série de direitos econômicos, sociais e culturais em sentido estrito, tais como: trabalho, condições justas, equitativas e satisfatórias de trabalho, direitos sindicais, direito à previdência social, à saúde, a um meio ambiente sadio, à alimentação, à educação, aos benefícios da cultura, à constituição e proteção da família, direito da criança, proteção de pessoas idosas e proteção de deficientes. Muito embora este seja o documento com mais detalhes sobre os direitos econômicos, sociais e culturais em estrito senso que vigora perante o SIDH, ele ainda não é o suficiente para garantir a concretização da justiça social (LEDESMA, 2004, p. 101), pois sua capacidade normativa limitada gera a necessidade de consulta ao artigo 26 do CADH, que, por sua vez, deve ter suas limitações jurídicas e práticas conhecidas pelos advogados atuantes na área. Isto porque o sistema de petições individuais apenas abrange os direitos sindicais (artigo 8.1.a)2 e o direito à educação (artigo 13),3 em situação específica. Portanto, em razão desta restrição, para a justiciabilidade dos demais direitos stricto sensu, torna-se imprescindível a aplicação do artigo 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Desta maneira, com a utilização do art. 26 da CADH, verifica-se que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos tem evoluído ao longo dos anos quanto à matéria referente aos direitos econômicos, sociais e culturais, aplicando-se o artigo 26 da Convenção Americana ou os dispositivos específicos ao direito à educação e aos direitos sindicais previstos no Pacto de San Salvador, a fim de possibilitar a aplicabilidade dos mencionados direitos em seu sentido estrito.

Como exemplos desta evolução, Rodriguez-Garavito e Kauffman (2014, p. 16-17) apresentam o caso de Massacre de Mapiripán versus Colômbia, no qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou a implementação de programas permanentes de educação sobre os direitos humanos e direito internacional humanitário nas Forças Armadas da Colômbia em todos os níveis de hierarquia. O julgamento ressaltou também a proteção aos direitos da criança, especialmente diante de sua situação de vulnerabilidade e que, no caso julgado, o Estado tinha conhecimento do alto índice de violência da região de caso de Mapiripán em razão do conflito armado interno que atingia toda a sua população. Ademais, os autores trazem ainda o caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni Comunidade versus Nicarágua, que versa sobre o reconhecimento do direito comunal dos povos indígenas às suas terras ancestrais. Neste julgamento, a Corte afirmou que os indígenas vivem uma “cidadania imaginária” porque seguem sofrendo de formas estruturais de discriminação, de exclusão social, de marginalização, apesar de formalmente serem titulares de direito. Além disso, reconheceu que há uma relação própria dos povos indígenas com a terra, compreendida “como uma parte do espaço geográfico e social, simbólico e religioso, com o qual se vincula a história e atual dinâmica destes povos” (CIDH, 2001, p. 25) e declarou que o Estado é obrigado a estabelecer e implementar um procedimento legal de demarcação e titulação de terras, abstendo-se de fazer concessões até que a emissão de posse seja resolvida, além de indenizar a comunidade.

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Márcia Carolina Santos Trivellato

 

Referências

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* Texto proveniente de resumo com título Os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais perante o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos para a Concretização da Justiça Social publicado nos Anais do 2º Encontro Brasileiro de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justiça Social (EABRAPPS) pelos pesquisadores Márcia Carolina Santos Trivellato, José Lucas Santos Carvalho e Flávia de Ávila no ano de 2017.

1. Terceiro Relatório sobre a Situação dos Direitos Humanos na Colômbia.

2. Neste artigo, lê-se que: “Os Estados Partes garantirão: O direito dos trabalhadores de organizar sindicatos e de filiarse ao de sua escolha, para proteger e promover seus interesses. Como projeção desse direito, os Estados Partes permitirão aos sindicatos formar federações e confederações nacionais e associarse às já existentes, bem como formar organizações sindicais internacionais e associarse à de sua escolha. Os Estados Partes também permitirão que os sindicatos, federações e confederações funcionem livremente”.

3. No inciso 2 deste artigo verifica-se que “os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientarse para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz.  Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades em prol da manutenção da paz”.

ABRAMOVICH, Víctor; ROSSI, Julieta. La tutela de los derechos económicos, sociales y culturales en el artículo 26 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Revista Estudios Socio-Jurídicos, Bogotá, v. 9, n. 1, 2007. Disponível em: https://bit.ly/3xMzb86. Acesso em: 29 maio 2017.

CENTRO POR LA JUSTICIA Y EL DERECHO INTERNACIONAL (CEJIL). La proteccion de los derechos económicos, sociales y culturales y el Sistema Interamericano. San Jose: Centro por la justicia y el derecho internacional, 2005. Disponível em: https://bit.ly/3dcuavY. Acesso em: 29 maio 2017.

CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS (CADH). Assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. 1969. São José: Organização dos Estados Americanos, [1969]. Disponível em: https://bit.ly/3Dh9JJ2. Acesso em 29 maio 2017.

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CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni versus Nicaragua. Sentencia de 31 de agosto de 2001. (Fondo, Reparaciones y Costas). Disponível em: https://bit.ly/3GfpKRH. Acesso em: 25 jun. 2017.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH). Tercer informe sobre la situación de los derechos humanos en Colombia. 1999. Disponível em: https://bit.ly/3ls6dpa. Acesso em: 29 maio 2017.

COURTIS, Christian. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales a través del artículo 26 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3xPIynn. Acesso em: 29 maio 2017.

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MELISH, Tara. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos: Manual para la Presentación de Casos. Quito: Sergrafic, 2003.

PROTOCOLO ADICIONAL À CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA DE DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS, “PROTOCOLO DE SAN SALVADOR”. 1988. São José: Organização dos Estados Americanos, [1988]. Disponível em: https://bit.ly/3Ig4lt7. Aceso em 29 maio 2017.

RAMÍREZ, Sergio García. Protección jurisdiccional internacional de los derechos económicos, sociales y culturales. Revista Mexicana de Derecho Constitucional, Cidade do México, n. 9, jul/dez 2003. Disponível em: https://bit.ly/3pFg5x9. Acesso em: 29 maio 2017.

RODRÍGUEZ-GARAVITO, César; KAUFFMAN, Celeste. Making Social Rights Real: implementation strategies for courts, decision makers and civil society. Bogotá: Dejusticia, 2014.

SALVIOLI, Fabián. La protección de los derechos económicos, sociales y culturales en el sistema interamericano de derechos humanos. Revista Instituto Interamericano de Direitos Humanos, São José, n. 39, jan/jun 2004. Disponível em: https://bit.ly/3EiPVpO. Acesso em: 29 maio 2017.

TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos Trivellato; CARVALHO, José Lucas Santos; ÁVILA, Flávia de. Os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais perante o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos para a Concretização da Justiça Social. Anais do 2º Encontro Brasileiro de Pesquisadoras e Pesquisadores pela Justiça Social, Aracaju, p. 156, 2017.

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