O tal do processo estrutural

O tal do processo estrutural

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Para a coluna deste mês, resolvi conversar um pouco com os leitores do Portal sobre um tema que se tem falado muito na atualidade: os processos estruturais e as medidas estruturantes. Pensando numa perspectiva temporal, se comparado com as investigações e reflexões em outros assuntos, esse tema é consideravelmente recente. Não distante disso, já há vasta produção teórica sobre o assunto, em diversas perspectivas e posições doutrinárias distintas (prol e contrária).

Não farei, aqui, juízo de valor sobre concordar ou discordar desse tema. A proposta é uma: fornecer elementos basilares sobre os processos estruturais e as medidas estruturantes a fim de permitir a compreensão desse tema por aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de ter esse contato, bem como, poder aprofundar o conhecimento daquele que teve contato superficial.

Aos que pretendem continuar o estudo nesse tema, sugiro a leitura de um capítulo que escrevi recentemente, chamado “Duas jurisdições?”, para a segunda série do livro “Teoria Crítica do Processo” (no momento, está no prelo), assim como, as bibliografias aqui utilizadas.

A compreensão acerca dos processos estruturais e medidas estruturantes parte do caso Brown v. Board of Education of Topeka U.S. 483 (1954 e, posteriormente, em Brown II, de 1955). Esse caso remete ao cenário estadunidense da década de cinquenta do século passado e aborda o lamentável tema da segregação racial no seu sistema (de ensino). Sintetizando o caso, no estado americano do Kansas, vigia uma lei que possibilitava que cidades com mais de quinze mil habitantes optassem por segregar as suas escolas.[1]

Essa lei obrigava Linda Brown, uma criança negra, a frequentar uma escola distante da sua residência. Mesmo ciente da situação de Brown, a autoridade escolar de Topeka nada fez. Ajuizada a ação com fins de remanejar a criança para uma escola próxima de sua residência, após o trâmite processual, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, a partir de uma interpretação na Décima Quarta Emenda Constitucional (Everyman’s Constitution), de 1868, defendendo a igualdade em seu mais amplo sentido, julgou e assegurou a pretensão de Brown.[2]

A discussão sobre o tema racismo no cenário estadunidense é muito anterior ao do caso mencionado e brevemente explicado acima – vejam, aqui, por exemplo, os emblemáticos casos Dred Scott v. Sandford (1857) e Plessy v. Ferguson (1896) –, entretanto, concordando com João Carlos Souto[3], apenas em Brown v. Board of Education of Topeka U.S. 483 é que foi possível promover a ruptura de paradigma no sistema estadunidense (afetando diretamente todos os segmentos da sociedade, melhor, promovendo uma interferência completa na vida humana) – Eduardo Appio[4], por exemplo, afirma que esse é o caso mais importante da história recente da Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

Brown II (1955), surgiu a partir das dificuldades encontradas pela Corte para implementar a decisão proferida em Brown I, afinal, além de decidir, a Suprema Corte estadunidense necessitava da implementação de medidas para o seu cumprimento e a sua perpetuação – o Poder Judiciário é, em verdade, colocado em uma posição em que passa a ter que enfrentar organizações para a obtenção desse resultado.

Com base nesse julgamento, Owen Fiss[5], sustenta o surgimento de uma nova forma de adjudication – como se fosse, para nós, jurisdição –, a qual recebe o nome de structural reform. Seriam, portanto, dois modelos de adjudication: o (1) dispute resolution – consistindo na ideia de que e a adjudication serve como forma para restaurar o status quo do caso; ligada com os indivíduos, abarcando valores, esse modelo isola o Poder Judiciário em relação aos Poderes Executivo e Legislativo – e a (2) structural litigation – contempla o Poder Judiciário no governo; estamos diante de entidades sociológicas que visam mais em valores públicos.

Os processos estruturais pressupõem a existência de um problema estrutural[6], isso é, de um estado de desconformidade estruturada ou de uma situação em que se observa a ilicitude de maneira contínua e permanente, necessitando de uma reorganização/reestruturação do próprio sistema a fim de que, com isso, seja possível alcançar o estado ideal de coisas (objetivo imediato do processo estrutural).

Chamamos de decisão estrutural (structural injunction) aquela com a qual se pretende atingir esse objetivo do processo estrutural. É decisão de cunho complexo que prescreve uma norma jurídica de conteúdo aberto, indicando o resultado que se espera alcançar, bem como homologando ou decidindo estruturalmente a forma como se logrará nesse resultado que promoverá, ao fim, a reforma estrutural (structural reform) esperada.

Com base, especialmente, na indicação desses elementos (problema estrutural e decisão estrutural) e a forma da sua relação com os processos estruturais, podemos falar que ele, o processo estrutural, é caracterizado por: (1) estar pautado na discussão sobre um estado de desconformidade (em relação ao ideal de coisas), com ou sem a presença de uma situação ilícita; (2) buscar promover a transição desse estado de desconformidade para o ideal de coisas por meio de uma reestruturação do sistema; (3) seu desenvolvimento ser realizado a partir de um procedimento bifásico (reconhecer e definir o problema estrutural e estabelecer um programa que vise a reestruturação a fim de se atingir o estado ideal de coisas); (4) seu desenvolvimento em um procedimento caracterizado pela sua flexibilidade intrínseca; e, (5) pela consensualidade.

Podemos falar, ainda, em caráter exemplificativo dadas as divergências existentes e a dinâmica do litígio, em outras três características típicas dos processos estruturais, essenciais ou não: (1) a multipolaridade[7] (diversos posicionamentos que, em muitas situações, estão em posições antagônicas); (2) a possibilidade de que ele não seja coletivo[8]; e, (3) a complexidade.

O que você pensa sobre esse assunto? Venha conversar comigo nas minhas redes sociais (@guilhermechristenmoller) ou me mande um e-mail (contato@guilhermechristenmoller.com.br) para continuarmos as reflexões desta matéria. Fraterno abraço e vejo vocês em maio.

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Guilherme Christen Möller

 

Referências

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1. AASENG, Nathan. You are the Supreme Court justice. Minneapolis: The Oliver Press, 1994. p. 39.

2. JOBIM, Marco Félix; ROCHA, Marcelo Hugo da. Medidas Estruturantes: origem em Brown v. Board of Education. In: ARENHART, Sérgio Cruz; ______. Processos Estruturais. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2021. p. 853-872. p. 861.

3. SOUTO, João Carlos. Suprema Corte dos Estados Unidos: principais decisões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 76.

4. APPIO, Eduardo. Direito das minorias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 246-251.

5. FISS, Owen M. Two models of adjudication. In: DIDIER JR., Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira. Teoria Geral do Processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: Jus Podivm, 2007. p. 761.

6. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicado ao Processo Civil brasileiro. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix. Processos Estruturais. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2021. p. 423-461. p. 427/428.

7. ARENHART, Sérgio Cruz. Processo multipolar, participação e representação de interesses coletivos. In: ______; JOBIM, Marco Félix. Processos Estruturais. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2021. p. 1071-1096. p. 1071/1072.

8. Levando em consideração o conceito apresentado por Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., de que “coletivo é o processo que tem por objeto litigioso uma situação jurídica”, entendemos que é possível que uma ação individual seja de natureza estruturante. Cf. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes. Conceito de processo jurisdicional coletivo. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, v. 229. p. 273. Vejam, por exemplo, a seguinte situação: “imagine que um sujeito, portador de deficiência ou com mobilidade reduzida, ingresse com ação individual para, com base nos direitos que lhe são assegurados pela Lei n. 10.098/2000, exigir que determinados edifícios públicos ou privados, de uso coletivo, aos quais precisa ele recorrentemente ter acesso (como sua faculdade, o hospital do seu bairro, o banco no qual possui conta corrente etc.), sejam obrigados a promover reformas para garantir a acessibilidade prevista em lei. Essa é tipicamente uma ação individual, mas que tem inequívoca natureza estruturante. Sua causa de pedir consiste na afirmação de uma situação de desconformidade, por uma permanente inobservância da legislação que impõe se promova a acessibilidade desses lugares.”. DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicado ao Processo Civil brasileiro. In: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix. Processos Estruturais. 3. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2021. p. 423-461. p. 435/436.

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