A contemporaneidade digital perpassa por inúmeras modificações que hodiernamente alteram de modo distinto as relações interpessoais, através de avanços tecnológicos que ensejam uma releitura ao Direito Privado, com intuito de desenvolver adequadas soluções aos novos danos decorrentes do mercado de consumo digital.
Assim, a conjuntura digital contemporânea, assinalada pelas repercussões do novo paradigma tecnológico e as transformações do mercado de consumo, com a consequente existência de novos danos, é o ponto de partida para uma análise crítica acerca da matéria geral de proteção de dados pessoais e sua intrínseca relação com os hábitos consumeristas através dos cruzamentos de dados pessoais e a sua manifesta falta de transparência.
Neste sentido, relevante destacar a publicidade comportamental presente nas redes sociais, caracterizando o “espaço-mercado” que clama pela atenção centralizada e insaciável dos consumidores,1 que são notavelmente influenciados por uma publicidade personalizada, elaborada através de dados coletados.2
O usuário das redes sociais disponibiliza para as plataformas seus dados em troca de um serviço aparentemente gratuito, mas, sem saber que, “ao mesmo tempo em que é compelido a fornecer seus dados na rede, poderá ver essas mesmas informações voltadas contra si num futuro não muito distante, a depender de como elas serão utilizadas”.3
Afinal, são cotidianos os episódios de cruzamentos de dados pessoais que direcionam a publicidade presente nas plataformas sociais, por intermédio do marketing algorítmico, capaz de orquestrar nossos hábitos consumeristas e tomadas de decisão, retirando-se a autonomia de vontade plena do indivíduo moderno.
O cruzamento de dados entre as plataformas e os fornecedores é possível através de uma análise preditiva de comportamentos padrões, realizada a partir da “mineração” algorítmica (data mining) e a criação de um perfil (profiling) que representa uma verdadeira biografia digital, marcada pela falta de transparência dos métodos utilizados, caracterizando a opacidade destes mecanismos em relação aos usuários.4
Com efeito, “ao coletar e analisar ainda mais dados sobre os usuários, os anunciantes online dão um grande passo para determinar se seus anúncios influenciam as compras e como melhor influenciar as compras”.5
Destaca-se nessa linha de intelecção que “o conteúdo divulgado na rede atinge um enorme grau de exposição, com alcance global e alta velocidade de disseminação e alta possibilidade de formação de convencimento de um público alvo”.6
Os algoritmos, assim, orquestram as diretrizes comportamentais, direcionando publicidades específicas para determinado público, personalizando-as e alterando a liberdade e autonomia de vontade dos indivíduos. É observado que “não são os dados, em si, que se busca tutelar, mas, sim, a pessoa humana”.7
A ausência de transparência na veiculação de dados pessoais, através da construção da criação do perfil baseado em seus hábitos no ambiente virtual, viola o dever constitucional de proteção das pessoas, em que a extrema fragilidade do consumidor denota um novo contexto de hipervulnerabilidade no ambiente digital.8
Nesse toar, o ciberespaço encontra-se definido pela manipulação de vontades de acordo com o perfil traçado pelo cruzamento entre dados, representando, assim, violações às disposições normativas que são pautadas como os novos danos da era tecnológica, como a moldagem forçada de padrões sociais e de consumo, que, em seu turno, se amoldam pela irracional eficácia de dados,9 ocasionando a chamada discriminação algorítmica, em que os perfis individuais são tratados como produtos e posteriormente vendidos.10
A crescente complexidade dos sistemas algorítmicos dificulta que pessoas não-especializadas possam compreender as tomadas de decisões, sendo a opacidade característica proposital, de modo que “o controle dos dados pessoais requer uma justificativa sobre tudo que possa nos afetar, desde a fase de coleta até o descarte”.11
Assim, considerando os resultados decorrentes de tais práticas expostas, é certo que se amoldam ao conceito de novos danos e, portanto, podem atrair a responsabilidade civil contratual – uma vez que existe um contrato firmado entre o usuário e a plataforma de rede social – e, também, a extracontratual, a depender da especificidade casuística.12
Destarte, importante é que se interprete o artigo 42 da Lei Geral de Proteção de Dados através de um ideal de responsabilidade objetiva especial como medida de mitigação de riscos,13 estabelecendo “critérios de governança, inclusive para fins de se auxiliar a compreender a responsabilidade dos agentes frente a casos concretos de violação de dados, tornando palpável a identificação dos limites de sua responsabilidade à luz do dever geral de segurança”.14
A responsabilidade civil contemporânea e seus novos contornos reclamam uma tutela ampla ante aos danos oriundos de tais violações, especialmente quando afetada a privacidade, direito fundamental e básico do consumidor enquanto situação jurídica existencial.15
Importante, por isso, é ampliar o conceito da responsabilidade civil clássica para uma maior atuação relacionada à sua tutela preventiva, desempenhando papel de desestímulo a tais práticas que ferem o interesse privado do consumidor, “daí porque se impõe categoricamente conferir adequada tutela, sobretudo em termos preventivos, à privacidade e à autodeterminação informativa”.16
Nessa linha de intelecção é notável que “tal elemento se apresenta de modo fluído e dinâmico, se inserido em todas as funções da Responsabilidade Civil e acrescentando a elas o caráter inibitório à ocorrência de futuros danos”.17
Portanto, espera-se que a tutela preventiva possa conferir respostas palpáveis aos novos danos da era digital, fortalecendo condutas jurídicas positivistas que possam desempenhar papel de segurança aos dados pessoais e aos direitos fundamentais dos usuários, afastando-se de um pensamento utópico, através de políticas legislativas que ampliem a eficácia preventiva pela adoção de novos métodos18 que desestimulem os ofensores.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. Cumpre salientar que, de acordo com o Recurso Especial nº 1.349.961/MG, as redes sociais integram a relação jurídica de consumo, sendo remuneradas de forma indireta, atraindo as disposições estabelecidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
2. Nesse sentido, ver: BASAN, Arthur Pinheiro. Novas tecnologias na publicidade: o assédio de consumo como dano. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI Rozatti, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 91-124.
3. FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 11.
4. MARTINS, Guilherme Magalhães; BASAN, Arthur Pinheiro. O marketing algorítmico e o direito de sossego na internet. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 350.
5. No original: By collecting and analysing even more data about users, online advertisers take a big step towards determining whether their ads influence purchases, and how to better influence purchases. STUCKE, Maurice E.; GRUNES, Allen P. Big Data and Competition Policy. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 27.
6. ATHENIENSE, Alexandre Rodrigues. O enfrentamento jurídico da reputação na mídia digital. In: BRANT, Cassio Augusto Barros (Coord.). REINALDO FILHO, Democrito Ramos; ATHENIENSE, Alexandre Rodrigues (Orgs.). Direito Digital e Sociedade 4.0. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 233.
7. MODENESI, Pedro. Privacy by design e código digital: a tecnologia a favor de direitos e valores fundamentais. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 73.
8. MARTINS, Guilherme Magalhães; BASAN, Arthur Pinheiro. O marketing algorítmico e o direito de sossego na internet. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 353.
9. Nesse sentido, ver: PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015.
10. Nesse sentido, ver: RIELLI, Mariana Marques. Críticas ao ideal de transparência como solução para a opacidade de sistemas algorítmicos. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coords.). Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021, p. 437-447.
11. FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 16.
12. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald destacam, nesse sentido, as problemáticas da constatação do nexo causal e a atuação do causador do dano em: FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021.
13. Nesse sentido, ver: DRESCH, Rafael de Freitas Valle; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Reflexões sobre a responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018). In: ROSENVALD, Nelson; WESENDOCK, Tula; DRESCH, Rafael. Responsabilidade Civil: novos riscos. Indaiatuba: Editora Foco, 2019.
14. STEIN, Lilian Brandt; DRESCH, Rafael de Freitas Valle. Direito fundamental à proteção de dados e responsabilidade civil. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; ROSENVALD, Nelson; MUNIZ, Francisco. Reponsabilidade Civil e Comunicação: IV Jornadas Luso-Brasileiras de Responsabilidade Civil. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p. 273.
15. BASAN, Arthur Pinheiro. Novas tecnologias na publicidade: o assédio de consumo como dano. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI Rozatti, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 119.
16. FILHO, Carlos Edison do Rêgo Monteiro; ROSENVALD, Nelson. Danos a dados pessoais: fundamentos e perspectivas. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, 2021 p. 16.
17. BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. Contenção de ilícitos lucrativos no Brasil: o disgorgement of profits enquanto via restitutória. Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, ano 2, 2020, p. 519.
18. Nesse sentido, questiona-se a viabilidade de ampliação de institutos como o disgorgement of profits, forçando os agentes ofensores a repelir os lucros obtidos através do cruzamento de dados pessoais e venda de informações.