Até duas semanas atrás, ainda não havia escutado a frase que dá título ao texto de hoje. Foi num desses muitos podcasts que enchem a internet, que me deparei com essa, que é uma mistura de ensinamento com provocação.
A frase “Para viver fora da lei, você precisa ser honesto” é uma, das muitas pérolas exclamadas pelo Belchior norte-americano, mais conhecido como Bob-Dylan. O trecho de “Absoluty Sweet Mary”, me bateu como um soco no estômago e me fez refletir com o fígado, o porquê de existir o Direito.
Se pararmos para analisar toda a trajetória evolutiva do homem na Terra, o Direito, ou mais precisamente a necessidade normativa de estabelecer regras, nasce conforme o grau de complexidade das tribos, e por conseguinte sociedades que vão se sedimentando.
Em uma breve análise, sem muita acuidade, percebe-se que o Direito, enquanto ordenamento jurídico, e não necessariamente como ciência, passa a ser implementado, por motivos de hierarquia, de direitos, como por exemplo, propriedade, e principalmente em razão da violência, que por vezes se dá como forma reativa aos dois aspectos anteriores.
Saindo o indivíduo, da instância tribal e passando para o cenário das sociedades, como por exemplo a romana, as relações e interações públicas e privadas foram se desenhando a partir da lógica jurídica. O Direito, entra em cena como fator limitante do homem, das suas pulsões e ações, e instaura-se na dinâmica da pólis, como um meio, digamos, de sustentar a coalisão de muitos indivíduos em um mesmo espaço, bem como reger a vida destes, com vistas a evitar o conflito.
Por óbvio, ao remontar ao império romano, ou indo ainda mais distante, à pólis grega, não deve-se pensar o Direito, como é hoje, deve-se refletir e buscar semelhanças no aspecto basilar da questão aqui levantada, qual seja a da parametrização do homem, para que esse consiga, em certa medida viver em equilíbrio com os seus pares.
Pode-se dizer, que essa tendência normativa, pautada em estabelecer limites e amenizar os conflitos, ganhou força com os chamados teóricos contratualistas, sendo importante aqui destacar o que ponderou Rousseau e Hobbes.
De um lado temos um jusfilósofo que postulou em sua teoria contratualista a ideia do bom selvagem, de um indivíduo genuinamente bom, que ao entrar em contato e em conflito com a sociedade, se vê destituído de sua bondade, se deixando corromper. Do outro temos um dos grandes pessimistas antropológicos da filosofia, que infere incisivamente que o homem é o lobo do homem, ou seja, o ser humano é por natureza um ser de conflito e de confronto, não havendo possibilidade de prosperidade, sem que o indivíduo e a sociedade se restrinjam e se amparem no quadro da legalidade.
A discussão acaba descambando para um perspectiva além de filosófica, também psicanalítica, visto que o Direito se mostra como instrumento de contenção dos desejos e impulsos do ser humano. Seria uma resposta racional, para as manifestações da vontade que nos fala Schopenhauer.
Indo mais a fundo, permite-se ponderar, como bem demonstra o professor Émillien, em seu livro “Degradação Ambiental – um diálogo entre Direito e Psicanálise” o Direito como ferramenta que freia e gere a pulsão de morte, o tânatos do homem, de na destruição retornar inconscientemente ao seu estágio primordial inorgânico. A normatividade é nessa linha, o bastião da civilidade.
Em que pese, a filosofia grega, ter inaugurado a percepção de ordem, baseada na ética, e mais tarde Kant trazer a sua ideia de imperativo categórico, a leitura de uma tendência belicosa e violenta do ser humano, levou a humanidade a se valer do escopo normativo enquanto ditame do percurso civilizatório.
Chagando ao positivismo, enquanto teoria implicada à ciência jurídica, é de se dizer que essa reforçou mais ainda a ideia de uma Direito enquanto fórmula, aplicável a produção legiferante, e principalmente a jurisprudência, ao dizer o direito dos magistrados e tribunais. Essa visão da ciência jurídica, quase que matemática, se viu prejudicada, haja vista que a lógica por ela levantada não se firmou como obstáculo nem como fator atenuante nas duas grande guerras do século XX.
Em virtude disso, o pós segunda-guerra, trouxe à discussão a necessidade de se pensar um novo Direito, um Direito de caráter principiológico, balizador da lei “seca” ao caso concreto.
Esse novo pensar jurídico, trouxe consigo um olhar mais subjetivo, e ensejou, de certa forma, uma emancipação do indivíduo frente a sociedade e a figura do Estado. Ao se olhar para os anos de 1945 em diante, apesar de vigorar a chamada guerra fria até o início dos anos 90, permite-se dizer que deu-se uma abertura para que o sujeito de direitos rompesse com o automatismo da lei, ao ser possibilitado figurar enquanto partícipe do discurso, na proporção em que o modelo democrático foi se expandindo.
Por mais que essa anseio do discurso democrático, tenha tido seu espaço, quando lança-se o olhar, sobretudo para o contexto brasileiro, o qual está sob regime democrático a pouco mais de 32 anos, percebe-se que o Direito, ainda vigora sob dinâmica da contenção, não estando propriamente alinhado, e apreendido espontaneamente pelo sociedade, tampouco pelo indivíduo em sua cotidianidade.
Daí que a frase aqui em questão, ganha sentido, visto que o fato gerador da norma está exatamente na pressuposição da sua transgressão, sendo necessário para viver fora da lei, o acolhimento autônomo de um dever ético, sem ter em conta a consequência repressiva ou sancionatória.
Aquele, segundo a frase, que vive fora da lei, é de per si um indivíduo ético, desprendido das amarras padronizantes do Direito, é antes de tudo guiado pelo que Kant chamou de imperativo categórico, ou seja, uma lógica universal que não é potencialmente prejudicial a outro indivíduo, nem ao corpo social do qual esse faz parte.
O sentido dessa exclamação ou constatação pode soar a primeira vista contraditório, mas ao contrário é lúcida em trazer a ideia de que antes do Direito a consciência humana é preexistente à afirmação normativa, isto é, o querer contribuir e agir em conformidade com os demais indivíduos e com a coisa pública. Por isso que para viver fora da lei, é preciso ser honesto, pois a ética é pretérita a norma.
Essa lugar da ética enquanto norteador das ações, relações e interações humanas, quando lançado sobre a contemporaneidade é ainda utópico, ou seja, não se encontra nas grandes metrópoles, nas massas sociais, no máximo é perceptível de maneira nuclear, grupal, é quase que contracultural.
Para alcançar esse topos, faz-se necessário, como já dito anteriormente nos texto dessa coluna, no horizontalidade do discurso, do fazer sentido.
Pode até soar ingênuo da minha parte que um dia o Direito, bem como todo o corpo de pessoas que a ele estão submetidas, venham a convergir num processo de construção e exercício espontâneo da norma. Reconheço que isso, a nível macro é tarefa extremamente dificultoso, senão impossível, mas a nível regional, ou melhor dizendo municipal, elaborar um ordenamento sobre esse molde é questão passível de ser implementada.
No âmbito microcósmico, o sujeito, o cidadão, tem contato com real, com a vivência do dia-a-dia, com a prática e rotina da cidade da qual é parte. Reconhecer então as mazelas, bem como aquilo que é desejável, aquilo que se deve preservar, e aquilo que merece renovação torna-se tarefa mais palpável, à medida que parte da cognição desse indivíduo vivente. Adotar uma postura ética, para assim normatizar, ou pôr em pauta e discussão o que merece ser a regra, é potencialização da maiêutica, que nos fala Sócrates.
Todavia, esse cenário, só é almejável e concretizável, mediante a igual oportunidade de percepção e livre expressão, visto que é esse o caminho de promoção do sentido e por consequência, da praxis e do hábito.
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Referências
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GAZOLA, Rachel. Platão e a adivinhação a partir do Timeu – Plato in divination in the Timaeus. São Paulo: HYPNOS, 2012, p. 204-217.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Lelivros [e-book].
De La Boétie, Etiénne. Discurso sobre a Servidão voluntária. [e-booksbrasil], 2006.
SAFRANSKI, Rüdiger. Schopenhauer – E os anos mais selvagens da filosofia. 2.ed. São Paulo: Geração Editorial, 2012.
STRATHERN, Paul. Rousseau em 90 minutos. Rio de janeiro, Editora Zahar, [e-book].
STRATHERN, Paul. Kant em 90 minutos. Rio de Janeiro, Editora Zahar, [e-book].