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Pepsi, where´s my jet? E o efeito vinculante da oferta publicitária

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Os anos noventa essencialmente serviram como pontapé inicial para a publicidade exagerada, persuasiva e chamativa, com alto apelo aos consumidores jovens, em decorrência da popularização dos aparelhos televisores à época. Se atualmente a publicidade é notavelmente veiculada pela internet e com influenciadores digitais servindo como propulsores para um maior alcance ao público alvo, nos idos dos anos noventa, a televisão era o palco dos anúncios das grandes empresas.

Neste sentido, e com a chamada “Guerra das Cocas” – batalha comercial entre as empresas Coca-Cola e Pepsico, que disputavam a preferência do público norte-americano com objetivo de definir maior alcance mercadológico –, os anúncios publicitários televisivos começavam a ganhar enorme proporção, com notável investida da Pepsi ao contratar celebridades como Michael Jackson e Madonna para impulsionar o apelo comercial da marca.

Percebendo que grande parte do público consumidor era de uma faixa etária jovem, as empresas começaram a veicular mais comerciais destinados a crianças, adolescentes e jovens adultos, sendo que notável o anúncio envolvendo o comercial da Pepsi “Drink Pepsi Get Stuff”, que mostrava um adolescente trocando suas fichas adquiridas após consumir determinado número de refrigerantes por um avião de caça Harrier.

O anúncio, em breves linhas, demonstrava um novel sistema de troca de pontos (em que os consumidores trocavam “pontos/fichas” por produtos com merchandising da marca, prática extremamente difundida no final dos anos noventa), com objetivo de que os consumidores comprassem mais refrigerantes e trocassem por produtos da marca, sendo que o “prêmio final” da ação – que correspondia à sete milhões de pontos – seria um avião de caça Harrier.

John Leonard, um jovem norte-americano, vislumbrado com a oferta de troca de pontos veiculada no comercial, percebeu que o anúncio não possuía “letras miúdas” (fine print), isto é, não continha nenhum aviso de que a oferta não seria válida. Desta forma, a proposta de troca de pontos pelo jato seria plenamente exigível.

Percebendo que o custo para conseguir os 7 milhões de pontos seria a compra de inúmeros refrigerantes, com gasto médio em torno de 4 milhões de dólares, Leonard descobriu que poderia simplesmente comprar os pontos, enviando assim um cheque de 700 mil dólares para a Pepsi e 15 fichas, requerendo, em troca, o avião de caça, tal como o comercial veiculara.

A Pepsi, contudo, não aceitou o cheque, destacando que a troca de 7 milhões de pontos por um jato era “uma brincadeira”, sendo “extremamente improvável” alguma pessoa acreditar que um avião de caça poderia ser trocado por fichas. Assim, veiculou nova versão do comercial (agora sim com as letras minúsculas dizendo se tratar de uma brincadeira), no intuito de desestimular Leonard (e outros aventureiros) a insistir na tentativa de cumprimento forçado da oferta.

O caso, que ganhou repercussão judicial (Leonard v. Pepsico, 1999),1 foi transformado em uma série documental pela Netflix, a qual narra, sobretudo, a fragilidade do sistema judicial norte-americano2 (em que grandes empresas, por meio de lobbys, conseguem influências em decisões judiciais) e a prejudicialidade da veiculação de publicidades falsas/distorcidas com intuito único de lucros, prejudicando terceiros no processo.

Em breves linhas, a demanda movida por Leonard alegava quebra de contrato, fraude e publicidade enganosa, uma vez que a Pepsi não cumpriu com a oferta veiculada, destacando que ela seria plenamente exigível, por ser válida, pois não existia nenhum indício de que era uma brincadeira, não podendo o homem médio realizar o juízo de valor com base no que foi veiculado. A Pepsico, em sua defesa, alegava que o comercial era “fantasioso” e que possuía intuito humorístico chamativo, não podendo ser levado a sério.

Leonard destacou que o anúncio era destinado à “Geração Pepsi”, isto é, jovens dos anos noventa que seriam o público-alvo da marca, e que o caso deveria ser levado a júri com participação de outros membros da referida geração, que certamente teriam entendimento de que a oferta era legal, o que não aconteceu, sendo o caso julgado apenas por uma magistrada.

Constatou-se que o anúncio do jato não configurava oferta nos termos do Restatement (Second) of Contracts. A juíza concluiu que, mesmo que o anúncio fosse uma oferta, nenhuma pessoa razoável poderia acreditar que a empresa pretendia seriamente vender um jato no valor de aproximadamente $ 37,4 milhões por $ 700.000, ou seja, que era mero exagero (puffery), para além de um avião de caça do modelo apresentado ser proibido para uso de civis (algo que o próprio Pentágono observou à época).

Leonard representava o sonho americano de luta pelos seus direitos, mesmo sabendo que a oferta seria absurda, mas legítima, de forma em que os regramentos deveriam ser cumpridos à luz do ofertado.

Importando o caso para terras brasileiras, é certo que o artigo 30 do Código de Defesa do Consumidor prescreve que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”. Trata-se, portanto, do efeito vinculante da oferta publicitária.

No Códex Civil, os artigos 427 e 429, em mesmo modo, destacam a obrigatoriedade de cumprimento da proposta ao público, ainda que de forma abrangente, contendo as disposições consumeristas especificidades com intuito de proteger, de forma eficaz e efetiva, a parte mais vulnerável da relação de consumo.

A restrição contratual não poderá prevalecer diante da oferta veiculada, consoante ao próprio artigo 30 do CDC e lastreado pelo princípio da boa-fé objetiva (artigo 422 do CCB), corolário das relações privadas, que impõe às partes “um dever de agir com lealdade e cooperação, antes, durante e depois da conclusão do contrato”.3

Trata-se de uma regra de conduta, de comportamento, imposta às partes, pautada em preceitos ético-jurídicos de honestidade, probidade, retidão e correção, no intuito de não frustrar a legítima confiança – expectativa da outra parte -, tendo ainda, por finalidade estabelecer o equilíbrio nas relações jurídicas, com vistas ao seu adimplemento.4

Elucidam Ciro Benevenuto Soares e Álvaro Augusto Lauff Machado que:

[…] quando um fornecedor realiza publicidade, emitindo determinado anúncio, para que este seja considerado válido, deve haver a veiculação e precisão da informação. Isto é, a informação veiculada ao público deve gerar um estado de confiança no negócio celebrado. O consumidor deve acreditar que as condições para aquisição do produto ou serviço que está sendo ofertado são reais.5

Necessário destacar o caráter de norma de ordem pública que a boa-fé objetiva ostenta, conforme o Enunciado de nº363 do CJF/STJ, o qual explicita que “os princípios da probidade e da confiança são de ordem pública, sendo obrigação da parte lesada apenas demonstrar a existência da violação”.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ, Resp 1.872.048) já declarou que a informação contida na própria oferta é essencial à validade do conteúdo da formação da manifestação de vontade do consumidor e configura proposta.

Lado outro, sendo a boa-fé objetiva dever imposto a ambas as partes, deve haver bom senso do próprio consumidor ao interpretar anúncios veiculados, como no caso em que um consumidor objetivou adquirir três TVs 32 LED Full HD, Smart TV, cada uma no valor de R$ 122,12, tratando-se de erro gráfico no anúncio, de forma em que o TJMG destacou não existir obrigatoriedade de cumprimento da oferta.6

Quanto ao caso Leonard v. Pepsico, a complexidade do caso não permite respostas fáceis para o magistrado brasileiro. De acordo com os próprios idealizadores do comercial, eles não acreditaram que alguém fosse, efetivamente, tentar trocar os sete milhões de pontos pelo jato. Segundo eles, não era impossível, mas era extremamente improvável.

A título exemplificativo e comparativo, em recente ação para Black Friday em novembro de 2022, a cervejaria Devaneio do Velhaco promoveu uma pequena aposta, em tom jocoso, de que todos os produtos disponíveis em seu site teriam 50% (cinquenta por cento) de desconto caso a Argentina, uma das seleções favoritas para o título na Copa do Mundo, perdesse na estreia da fase de grupos para a Arábia Saudita.

A derrota da seleção de Messi não era impossível, mas era extremamente improvável. A oferta, logo, consistia basicamente na ampla promoção do site subordinada a evento futuro e incerto para obtenção de efeito do negócio jurídico (art. 121, CCB). O desfecho, contudo, foi diferente do caso da Pepsi, sendo que a cervejaria arcou com o compromisso de sua oferta, transformando a ação em uma das mais bem-sucedidas do período.

Voltando ao caso de Leonard v. Pepsico, o fato de a campanha ter sido considerada improvável, mas não impossível, parece, por si só, declarar a boa-fé na oferta e da própria intenção do consumidor no cumprimento, de forma em que a oferta, pela lógica consumerista do artigo 30 do CDC, deveria ser cumprida.

Lado outro, poderia se argumentar que a oferta não era legítima pois o objeto ofertado não seria legal, uma vez que o Pentágono declarou que civis não poderiam ter aviões de caça (contudo, caso fossem retirados todos artefatos de arma de fogo, não haveria proibição legal, de forma que a oferta voltaria a ser válida nesses termos).

Logo, Leonard, no direito brasileiro, poderia requerer o cumprimento forçado da obrigação com as cominações devidas (art. 35, CDC), para além das perdas e danos, se valendo da execução específica, afinal, essa é a tônica contida no artigo 30 do CDC (efeito vinculante da oferta publicitária).

A temática, para além da discussão relacionado ao caso da Pepsi, demonstra-se extremamente importante, uma vez que o objeto de debate exsurge como a obrigatoriedade de os fornecedores promoverem anúncios que não comprometam a ordem moral dos consumidores, algo que ainda persiste, migrando dos anúncios televisivos para as campanhas publicitárias em ambiente digital.

Afinal, não são raros os casos de ofertas publicitárias realizadas com intuito exclusivo de chamar a atenção dos consumidores, principalmente jovens, sem clareza suficiente para que exista a interpretação nos termos da boa-fé objetiva. Quanto à publicidade veiculada aos menores:

Os menores são, portanto, direcionados pela oferta de consumo, e os muitos anúncios que incitam crianças e adolescentes a consumir mostram a existência da verdadeira atração de um profissional para um consumo dessa faixa etária. Esse mundo consumista acentua sua vulnerabilidade, apresentando um perigo real aos menores e esses medos são multiplicados pelo crescente uso de novas tecnologias por menores.7

O objetivo não é proibir ou defender a extinção de práticas publicitárias, mas tão somente destacar a necessária limitação dos anúncios falsos, exagerados, e, no geral, em desconformidade com as normas consumeristas, pois promovidas de forma desleal, abusiva e agressiva.

Ao passo que novos riscos e danos surgem, o Direito deve apresentar soluções inovadoras às problemáticas atuais, com o condão de ofertar a devida proteção à pessoa humana, o resguardo de seus direitos e a efetiva aplicação da lei. Destarte, e considerando os avanços tecnológicos e a utilização de novas técnicas publicitárias, em especial as relacionadas ao neuromarketing, devem as normas serem interpretadas de acordo com a sua própria causalidade e consoante ao equilíbrio jurídico, objetivando a proteção dos vulneráveis às práticas manifestamente abusivas.

 

Referências

____________________

1. JUSTIA. Leonard v. Pepsico, 1999. Disponível em: https://bit.ly/3FnAcaJ. Acesso em: 10 dez. 2022.

2. A ré, PepsiCo, pediu julgamento sumário de acordo com a Regra Federal de Processo Civil 56. Entre outras reivindicações feitas, Leonard alegou que um juiz federal era incapaz de decidir sobre o assunto e que, em vez disso, a decisão deveria ser tomada por um júri composto por membros da “Geração Pepsi” a quem o anúncio supostamente constituiria uma oferta.

3. BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito do Consumidor à luz da jurisprudência do STJ. São Paulo: Ed. JusPodium. 17ª ed. 2022, p. 394.

4. SILVA, Michael César. Convergências e assimetrias do princípio da boa-fé objetiva no direito contratual contemporâneo. Revista Jurídica Luso Brasileira, v. 1, 2015, p. 1146

5. SOARES, Ciro Benevenuto; MACHADO, Álvaro Augusto Lauff. A relevância da boa-fé objetiva nos casos de publicidade enganosa. Revista Jurídica Luso Brasileira, v. 03, p. 243-267, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3BwI0pw. Acesso em:27 jul. 2020.

6. Vários são os julgados em similar sentido: (TJ/RS Recurso Cível, Nº 71008035735, Segunda Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Alexandre de Souza Costa Pacheco, Julgado em: 13-03-2019; TJSP; Apelação Cível 1001238- 03.2017.8.26.0047; Relator (a): Walter Cesar Exner; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro de Assis – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/07/2018; Data de Registro: 30/07/2018)

7. PERON, Maxime. Consumer Law Facing the Advent of the Child E-Consumer. In: WEI, Dan; NEHF, James P.; MARQUES, Claudia Lima. (Eds.). Innovation and the Transformation of Consumer Law: National and International Perspectives. Singapore: Springer, 2020, p.131-132

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