Perorações sobre a garantia constitucional do contraditório à luz do modelo cooperativo de processo – parte II

Perorações sobre a garantia constitucional do contraditório à luz do modelo cooperativo de processo – parte II

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Com arrimo na proposição de José Carlos Barbosa Moreira1 sobre a repartição das incumbências processuais entre as partes litigantes e o juiz, a doutrina2 passou a sustentar a existência de duas formas de organização do conjunto de elementos que identificam e diferenciam os sistemas processuais: (i) o modelo inquisitivo e (ii) o modelo adversarial.

O modelo processual inquisitivo supõe hierarquização entre o juiz e as partes, ficando o andamento da marcha procedimental ao exclusivo alvedrio daquele, com severa redução da participação dos litigantes a propósito do desenvolvimento do processo. Como consequência, privilegia-se o princípio inquisitivo e o incremento dos poderes de instrução do juiz em decorrência do escopo propugnado pelo modelo inquisitivo de processo, que é a realização da justiça material.

Diante dessa missão, o processo civil fundamentado no molde inquisitivo concede ao juiz, por meio de cláusulas gerais, a possibilidade de flexibilizar o procedimento segundo as exigências e necessidades do direito material a ser tutelado.3 E, no que nos interessa mais de perto, como consectário da apropriação do direito litigioso pelo Estado, o contraditório se reduz a uma simples bilateralidade da instância (mera dedução, pelas partes, de razões e contrarrazões, despidas de participação real na construção do provimento), afastando-se da ideologia engendrada pelas normas fundamentais positivadas no Código de Processo Civil de 2015.

Por outro lado, caracteriza-se o modelo processual adversarial por não ostentar a hierarquia do sistema inquisitorial, em que se atribuía ao juiz o protagonismo no desenvolvimento do itinerário do processo. Muito ao contrário: a premissa em que o sistema adversarial se louva é a da igualdade entre os protagonistas do debate judicial. Tal fator resulta em domínio das partes e dos respectivos advogados na condução do processo, com total controle sobre a configuração da marcha do procedimento e o modo de litigância.4

Aqui, as atribuições do juiz ficam circunscritas à fiscalização das formalidades do processo, sem qualquer possibilidade de exercício de poderes de instrução, e ao julgamento da demanda segundo o material probatório produzido pelas partes. Há, então, verdadeiro embate entre os litigantes, com predominância do princípio dispositivo, no intuito de assegurar a imparcialidade do julgador.5 Nesse modelo de organização dos institutos processuais, a tarefa do contraditório é a de viabilizar o diálogo judicial, caractere presente em ambas as vertentes (estática e dinâmica) do aludido postulado.

Do exame de ambos os modelos de processo, é lícito afirmar que a nota distintiva reside na maior ou menor intensidade dos poderes de direção e de instrução atribuídos ao juiz.6 Entretanto, convém salientar que os modelos processuais baseados na tradição romano-germânica (civil law) ostentam características dos modelos inquisitorial e adversarial,7 sendo impossível distinguir um modelo padrão, que se amolde de forma precisa em uma das proposições doutrinárias.

Ao trazer para o bojo do Código de Processo Civil de 2015 algumas das normas fundamentais previstas na Constituição Federal, o legislador nada mais fez do que lembrar ao operador do direito a imperatividade de se interpretar o processo civil à luz dos direitos processuais fundamentais explícitos e implícitos na Constituição Federal.

A positivação da boa-fé objetiva (art. 5º), da cooperação entre todos os participantes do processo (art. 6º), da proibição de prolação de decisões-surpresa (art. 9º) e da necessidade de viabilização do contraditório até mesmo em relação às questões de conhecimento oficioso do juízo (art. 10º) veio a estatuir uma terceira e nova modalidade estruturante de organização procedimental: o processo cooperativo,8 entendido como aquele que visa a efetividade da tutela jurisdicional, mediante a participação ativa das partes, juiz, eventuais terceiros e o Ministério Público no processo, em todas as suas fases.

A despeito da carga semântica do vocábulo cooperação sugerir uma ideia imbuída de vagueza, a depender de concretização legal, entendemos que a eficácia da cooperação enquanto princípio é instantânea e de aplicação imediata, não dependendo de qualquer explicitação minudente sobre o que seja uma atitude cooperativa. Qualquer forma lícita de proceder, com o objetivo de se atingir a decisão de mérito justa e efetiva em tempo razoável – conforme a dicção do art. 6º do CPC/15 – é veículo idôneo de execução do aludido princípio.

Em função da aplicabilidade imediata e irrestrita do princípio da cooperação no processo, os influxos do modelo cooperativo recaem sobre as atividades das partes e do magistrado, impondo a ambos novos deveres de conduta e de participação: (i) lealdade; (ii) boa-fé; (iii) veracidade; e (iv) prevenção. Nesse viés, o papel do juiz é redimensionado, haja vista a que ele deve ser paritário na condução do processo, zelando pelo diálogo e pela concessão de oportunidades iguais às partes (paridade de armas), mas assimétrico ao proferir decisões,9 como resultado dos deveres-poderes estatais.

Entretanto, necessário não confundir esses imperativos com a necessidade de se conferir uma ambiência imaculada ou santificada ao processo civil, uma vez que o embate é ínsito à própria estrutura dialética do drama judicial,10 e a verdade dos fatos a que o CPC/15 alude nada mais é do que o dever de expor a verdade subjetiva11  dos fatos.

No que tange exclusivamente à atividade judicante, impõem-se ao magistrado os deveres de (i) esclarecimento; (ii) auxílio; e (iii) consulta. O primeiro deles é o dever de o juiz buscar o saneamento das dúvidas sobre as postulações das partes antes de proferir decisão baseada em interpretação incorreta ou equivocada daquilo que consta no arrazoado. O dever de auxílio importa em uma postura ativa do juiz, visando à prestação de genuíno amparo aos litigantes para que eles tenham condições de remover obstáculos que impeçam ou dificultem o exercício das faculdades deles e o atendimento de ônus processuais. Por último, o dever de consulta impõe ao magistrado a necessidade de providenciar meios para que os litigantes tenham a oportunidade de exaurir a discussão acerca do tema, evitando-se que as partes sejam surpreendidas com uma decisão sem debate sobre os pontos controvertidos.

E, evidentemente, o novel modelo cooperativo de processo, a exemplo das clássicas formas de organização do processo (inquisitiva e adversarial), também provoca influência sensível na forma de se entender o primado do contraditório, mas sem prejudicar a autonomia de ambos ou reduzir a cooperação à condição de mero vetor interpretativo do contraditório.

Realmente, o sistema comparticipativo de processo traz aos participantes da demanda, independentemente da existência de regras explícitas que visem à concretização do princípio colaborativo, uma miríade de deveres típicos e atípicos que, em última análise, tencionam a conferir e assegurar o perfil dinâmico do contraditório, em contraponto ao indesejado e insuficiente viés formal, representativo de simples bilateralidade da audiência.

A busca pela efetividade do contraditório (asseguração do perfil dinâmico) pressupõe a incidência do contraditório material e do contraditório argumentativo, sendo possível extrair esses elementos das previsões contidas nos arts. 9º e 10 do CPC/15, que, respectivamente, não admitem a prolação de decisão sem a ouvida da parte contrária12 e proíbem decisões que tomem como fundamento matéria não debatida pelas partes litigantes, mesmo que ela possa ser conhecida de ofício.

Essa forma de se visualizar o contraditório no modelo cooperativo de processo é consentânea com o atual estado da matéria no direito estrangeiro. Na Alemanha, extrai-se a necessidade de o juiz assegurar o dever de debate entre as partes segundo as regras previstas no § 139, nn. 2 e 3, da ZPO.13 Em Portugal, a impossibilidade de se decidir sem o prévio contraditório figura na disposição do art. 3º, 3, do Código de Processo Civil, cuja letra,14 aliás, é bastante próxima da prescrição do CPC/15. Na Itália, o art. 45, da Legge 69/2009, que, dentre outras providências, modificou o art. 101 do c.p.c. e estabeleceu a necessidade de o magistrado velar pelo contraditório e não proferir decisões-surpresa, que, se ocorrerem, serão tachadas de nulas.15

Forte nessas razões, o contraditório não descarta, simplesmente, a ideia de bilateralidade da audiência, visto que ela é o fator que oportuniza o embate dialético do processo, mas que perdeu a aptidão de ser o único elemento caracterizador do princípio. Ante o estabelecimento do modelo cooperativo/colaborativo/comparticipativo de processo, o brocardo audiatur et altera pars passa a operar como germe e ponto de partida do contraditório, cuja extensão e alcance se complementam com a real e efetiva possibilidade de os contendores terem acesso ao material (provas, argumentos) submetido à cognição do juízo para com ele trabalhar em conjunto, no intuito de que o provimento seja o mais consentâneo possível com o direito substancial a ser tutelado.

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Luiz Roberto Hijo Sampietro

* Doutorando e mestre em direito processual civil pela Universidade de São Paulo (USP). Especialista em direito empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD). Bacharel em direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT). Advogado. Professor de processo civil em cursos de pós-graduação lato sensu. E-mail: betohijo@yahoo.com.br.

 

Referências

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1. O problema da “divisão de trabalho” entre juiz e partes: aspectos terminológicos. Temas de Direito Processual – quarta série. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 35-44.

2. Por todos, veja-se DIDIER JR., Fredie. Princípio da cooperação. Normas fundamentais. Salvador: Juspodium, 2016, p. 345-358.

3. AUILO, Rafael Stefanini. O modelo cooperativo de processo civil no novo CPC. Salvador: Juspodium, 2017, item 4.2, p. 41-44.

4. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Duelo e processo. Revista de Processo n. 112, out./dez. 2003, p. 180-181.

5. AUILO, Rafael Stefanini. O modelo cooperativo, item 4.1, p. 38-41.

6. DAMAŠKA, Mirjan. R. The faces of justice and state authority – a comparative approach to the legal process. New Haven and London: Yale University Press, 1986, p. 3.

7. TARUFFO, Michele. Poteri probatori delle parti e del giudice in Europa. Revista de Processo n. 133, mar./2006, p. 239-266.

8. AUILO, Rafael Stefanini. O modelo cooperativo de processo civil no novo CPC, item 4.2, p. 70-75.

9. MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil: do modelo ao princípio. 4ª ed., São Paulo: RT, 2019, p. 64-65.

10. CALAMANDREI, Piero. Il processo come giuoco. Rivista di Diritto Processuale, volume V, parte I, anno 1950, Padova: CEDAM, p. 23-51, esp. item 2, às p. 26-27.

11. AUILO, Rafael Stefanini. O modelo cooperativo, item 4.1, p. 38-41.

12. Contudo, há exceções, previstas em rol taxativo no próprio artigo. Elas dizem respeito às tutelas provisórias de urgência e da evidência, incluindo também a expedição de mandado monitório.

13. Tal previsão legal é derivada do § 1º do art. 103 da Lei Fundamental alemã, que estatui a chamada pretensão à audição jurídica. Ao comentar o Relatório Geral submetido ao Congresso Internacional de Direito Processual realizado na Bélgica em 1977, Walther Habscheid já apontava as discussões que o preceito constitucional provocou, relativamente ao direito das partes de tomar ciência dos posicionamentos do Tribunal e sobre a imperiosidade de o juiz empreender ‘entrevistas jurídicas’ com as partes litigantes. (As bases do Direito Processual Civil. Revista de Processo n. 11, jul.-dez./1978, p. 117-145).

14. CPC de Portugal, art. 3º, 3: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

15. Confira-se, a respeito, GRADI, Marco. Il principio del contraddittorio e le questioni rilevabili d’ufficio. Revista de Processo n. 186, ago./2010, p. 109-160.

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