INTRODUÇÃO
Não é a primeira oportunidade que eu falo sobre o tema «fases metodológicas do processo». Gosto de abordar, sempre que possível, esse tema diante de uma constatação: na minha pouca experiência na docência, tenho o privilégio de ter alunos magníficos, dedicados e propensos à grandes voos no direito processual. O que não é raro observar, entretanto, é uma certa desorientação quando os estudos e reflexões realmente iniciam: devo começar a estudar processo a partir de qual tema? Posso relacioná-lo com algum outro «ramo» do Direito? Diante de uma vastidão de cursos e manuais de Processo Civil, preciso estudar toda essa bibliografia? Devo privilegiar o autor «X» sob o autor «Y»? Etecétera.
Essas (e tantas outras) inquietações são, a meu ver, responsáveis por criar entraves (desnecessários) aos que estão buscando um ponto base para começar o seu estudo no e sobre o Processo Civil. Em verdade, cada jornada de aprendizado é singular; seria, no mínimo, desonesto querer estabelecer uma trilha ordinária de aprendizado, especialmente em algo tão vasto, particular, sensível e, ao mesmo tempo, complexo, como é (aos meus olhos) o direito processual.
O assunto deste capítulo e matéria é bifásico, isso porque, em primeiro momento, pensamos sobre a (des)necessidade de deixar a leitura de outros temas para momento posterior à compreensão dessa temática e, em segundo, porque depois que compreendemos a importância e a relevância destes que, novamente, a meu ver, são os assuntos de base para compreender todo o (fantástico e rico) universo teórico e pragmático – sem cindi-los – do processo (na acepção maior do termo). Com este pequeno recorte, espero fixar que a ideia de que assumimos uma tarefa de estudo nada ortodoxa; melhor, que compreender a contextualização daquilo que se estuda é tão importante quanto a sua própria matéria.
HISTÓRIA, CULTURA E PROCESSO: PROLEGÔMENOS PARA A COMPREENSÃO DO QUE SÃO AS «FASES CULTURAIS OU METODOLÓGICAS DO PROCESSO»
Se o assunto proposto foi apontado como base para compreender o direito processual, poderia dizer que a base dessa base está em uma observação sociológica da própria ideia de processo, desvelada na relação entre «História, Cultura e Processo». Esse assunto não apenas auxilia no rompimento das inquietações, mas torna cristalino o motivo de as haver, em mesmo sentido que explica os «porquês» de o processo possuir fases culturais (ou metodológicas), a importância da compreensão de cada um desses momentos (tanto para a teoria, quanto para a prática) e da emergência de pluralidade de «escolas processuais» por todo o Brasil.
Parafraseando as ideias do saudoso jurista baiano Prof. J.J. Calmon de Passos, em seu livro «Direito, poder, Justiça e processo: julgando os que nos julgam», publicado pela Editora Forense, em 1999, devemos entender que o direito (e já vamos estabelecer a relação com o processo) não está situado na natureza, melhor dizendo, não é um produto natural; o direito é constituído pelo ser humano para o ser humano. Vale, portanto, concluir (e aqui utilizando, como base, a hermenêutica-fenomenológica): sendo, o direito, algo criado, desenvolvido, pelo ser humano, inexoravelmente, a ideia do que se tem por ele será dotada de significados específicos, particulares, provenientes de tempo e local delimitados.
A história e, também, a geografia (para contextualizar essa afirmação hodiernamente) nos clarificam esse ponto. Se buscarmos estabelecer uma linha cronológica da humanidade, veremos que a sociedade, em cada pequeno grupo que a compõem, apresentou manifestações diversas da sua ideia do que seria direito. Esse mesmo grupo, entretanto, supondo que foi mantido durante décadas ou séculos, foi ressignificando aquilo que entendia outrora por direito. Inicialmente, por exemplo, e um exemplo bem impactante para sinalizar isso que digo a vocês, a mulher era considerada como um objeto do homem; hoje, pensando no caso do direito brasileiro, essa ideia chega a ser ridícula, entretanto, em certo momento da história, se entendia dessa forma (fatidicamente).
O ponto é: sendo, o direito, um produto social, inegavelmente, valores (crenças, símbolos etc.) serão associados a ele; isso, portanto, permite concluir que o direito (sem adentrar em suas nuances) não deixa de ser uma manifestação cultural. A cultura de uma comunidade reflete as particularidades do seu direito. Por isso, não é incorreto afirmar que teorizações possuem local e tempo, devendo ao jurista observar as particularidades convergentes e divergentes do seu tempo para com essas teorizações.
Anteriormente, sinalizei a geografia como outro elemento de compreensão do que se entende por direito em um determinado contexto. A título de exemplo, vamos utilizar o contraste existente entre a ideia de direito no Brasil e a ideia de direito de diversos países no Oriente Médio, especialmente quando pensamos em sanções penais; a ideia e a função da pena, no Brasil (reclusão, detenção etc.) é totalmente diversa dessa que se tem nesses países do Oriente Médio (apedrejamento, chicotadas etc.).
Poderíamos ficar horas aqui realizando essa análise comparatista – no caso da geografia – ou histórica – no caso da história, perdoem-me pela redundância –, a qual reforçaria, e cada vez mais, o que foi exposto anteriormente: o direito é um produto sociocultural; ou seja, reflete os aspectos culturais da sua comunidade (e isso sem adentrar em aspectos éticos ou morais, sobre o que foi ou é errado etc.).
A ideia de processo, agora, não foge dessa discussão que até então estávamos trabalhando.
Recordo que, certo dia, preparando a minha dissertação de mestrado, enquanto folhava o Código de Processo Civil comentado pelo, também saudoso, jurista Prof. Pontes de Miranda, logo no prólogo dos seus comentários, estava – está, melhor dizendo – sinalizado que de todos os ramos do direito, seria, o processual, aquele mais próximo da nossa realidade. Essa afirmação me tocou numa proporção que para elucidar aos que me acompanham até aqui, perdi algumas noites de sono pensando sobre como a nossa realidade influi no processo (e como algo tão complexo é, em um olhar sensível, frágil).
O primeiro ponto que devemos tornar cristalino, aqui, é que não devemos generalizar a ideia do que é processo (assim como ocorre com o direito); o processo pode (e deve) ser observado em feições diferenciadas. Não preciso ser mágico para adivinhar que a maioria de vocês, no primeiro rumor da palavra «processo», o associou ao processo judicial, ou seja, a nossa conhecida forma de prestar a tutela jurisdicional, mediante cadeia cronológica de etapas que se desenvolve em contraditório – aqui, um (ou os dois) pé(s) na teorização de Elio Fazzalari. Essa associação não está equivocada. Aqui, pela minha fala, quiçá induzi à essa percepção. Entretanto, chamo atenção para o fato de que a acepção da palavra processo possui contornos maiores.
Na etimologia, e sem divagar nesse ponto, a palavra «processo» origina, do latim, da palavra procedere, significado uma espécie de método, sistema, maneira de agir ou cadeia de medidas a ser observadas para lograr em um objetivo. Então, sim, podemos acordar que a palavra «processo» pode ser associada ao «processo judicial» (enquanto mecanismo de prestação da tutela jurisdicional), entretanto, e sem considerar todas as possíveis aplicações para as perspectivas não-jurídicas, não podemos descartar que ela também pode representar a ideia de ramo ou sub-ramo, como preferirem, do direito – e cá é o ponto da minha fala.
Na ótica social, e evitando tautologias, vimos que o direito é algo comum à determinado grupo (e isso vem desde as primeiras formações de organizações sociais), em mesmo sentido que o processo, e aqui em sua acepção jurídica maior (como «direito processual»), também está umbilicalmente ligado à essa ideia. Desde a formação das primeiras organizações sociais, os indivíduos sempre encontraram maneiras pelas quais seria possível dirimir eventuais controvérsias em seu subsistema. Ou seja, podemos associar os elementos «história» e «geografia», também, à essa ideia de processo que estamos discorrendo.
O direito processual que há conformado na atualidade não é igual (e seria utópico pensar o inverso) daquele que existia em comunidades antigas, ou, até mesmo, hodiernamente, a nossa delimitação da ideia de direito processual é diferenciada em relação à de outras comunidades internacionais – e, a título de exemplo, para essa afirmação, aos interessados, recomendo a leitura da obra, «Direito, cultura e ritual: sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada», do Prof. Oscar G. Chase, publicada no Brasil pela Editora Marcial Pons, em 2014, com tradução, para o português, pelos Profs. Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna.
Portanto, e fechando esse primeiro ponto, podemos concluir que a significação de direito e de processo está umbilicalmente associada à cultura (e seus elementos) daquela organização que os concebem. O pensamento do Prof. Pontes de Miranda que citei anteriormente volta neste momento, após todas as reflexões prévias, para ser concluído com uma ideia pinçada do «Curso de prática do processo», do Prof. Candido de Oliveira Filho, publicado em 1938, pela sua própria editora: a relação do direito e do processo é íntima, conquanto, o direito é a substância o processo é a forma. Por meio do processo, o direito passa, e pode passar, do estático para o dinâmico, da ideia para a realidade. Eis, portanto, a proximidade do processo à realidade social.
FASES (OU ETAPAS) METODOLÓGICAS DO PROCESSO: PRAXISMO, PROCESSUALISMO E INSTRUMENTALISMO
O Praxismo
Utilizando os pontos anteriormente construídos, veremos que a discussão é multifacetada na história e em teorias (o que ficará ainda mais claro no próximo subtópico). Vamos trabalhar, inicialmente, sobre as três fases metodológicas do processo: o praxismo, o processualismo e o instrumentalismo – seguindo essa ordem.
O que entendemos por direito processual na atualidade, possui como seu ponto de partida o praxismo, também conhecido como sincretismo (termos mais aceitos pela doutrina, embora não se possa descartar que existem autores que se referem à essa etapa como «imanentismo», «fase do direito judiciário civil» ou «procedimentalismo»). A grande característica da fase metodológica compreendida como praxismo é que nela não se fazia diferença/distinção entre o direito material e o direito processual. De forma objetiva, o direito processual seria um mero subproduto do direito material, ou seja, um anexo ou um adendo.
O processo, portanto, seria um adjetivo do direito (substancial) material – deste ponto, uma curiosidade: se, eventualmente, encontrarem a referência ao direito processual como direito adjetivo, esse equívoco semântico (que reduz, inexoravelmente, a epistemologia do processo), provêm dessa associação. Não se trata de uma fase complexa para compreender o que seria o processo, afinal, ele nem poderia ser assim denominado; para não dizer que ele não existia, se tinha processo quando se tinha direito material.
Sobre os acordos e desacordos doutrinários dessa etapa metodológica; quiçá, vamos iniciar estabelecendo o acordo teórico, qual seja, essa fase teve fim (ou superação); dos desacordos: (1) o período de início dessa etapa metodológica; (2) o período final dela.
Por exemplo, o Prof. Guilherme Botelho, na obra «Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado constitucional», publicada em 2010, pela Livraria do Advogado, sustenta que os períodos existentes no direito romano e na história brasileira, durante a égide da cora portuguesa estão enquadrados nessa fase. Para o Prof. William Couto Gonçalves, na obra «Uma introdução à filosofia do direito processual: estudos sobre a jurisdição e o processo fundamentando uma compreensão histórica, ontológica e teleológica», publicada em 2005, pela Lumen Juris, a fase praxista englobaria também os primórdios da civilização, porque sempre que existisse a ação de alguém contra outro, seria concretizado o direito material violado por ação adjetiva. A título de complemento (e para sinalizar que existe essa discussão), existe, por parte dos Profs. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Eduardo Lamy e Horácio Wanderley Rodrigues uma proposta teórica de subdivisão dessa fase metodológica em (1) praxismo e (2) procedimentalismo (sendo, essa segundo, ainda mais sincrética do que a primeira).
O declínio dessa etapa metodológica se deu pela fraqueza teórica de autonomização do estudo do processo em relação ao direito material. Cá a outra divergência teórica entre os autores: qual seria o período final do praxismo? A resposta à essa pergunta permite adentrar no próximo assunto: a fase metodológica do processualismo (também denominada, em algumas ocasiões, como «cientificismo», «fase conceitualista» ou «autonomista»).
O Processualismo
Alguns autores (diversos, na verdade) apontam que a derrocada do praxismo se deu entre os séculos XVIII e XIX, outros, e acompanhando a posição teórica dos Profs. Antonio Carlo de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, na sua clássica «Teoria Geral do Processo», aprontam que o praxismo resistiu até a metade do século XX. O mais aceito entre os historiadores e filósofos do processo é que o processualismo foi uma etapa metodológica sequencial, evolutiva, superativa e responsável por romper os paradigmas culturais-processuais até então existentes, como berço a Alemanha (a partir de, entre outras previamente travadas, discussões como a de Windscheid [pronúncia: vinchan] e Muther [pronúncia: mutah]), especialmente com a publicação da obra «Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais», em 1868, pelo jurista Oskar von Bülow [pronúncia: bilou].
Em grosseira síntese, em sua tese, Bülow desenha uma linha teórica que gerou, ao mesmo tempo, a autonomia de estudo do direito processual e, para alguns, a inauguração do denominado «processualismo científico» – o nosso ponto de estudo –, concebendo o processo como uma relação jurídica que progressivamente se desenvolve.
Do cenário em que o direito processual era um mero anexo do direito material, se eleva ao patamar de autonomia do seu estudo, a partir do delineamento da relação jurídico processual, relação publicística lastreada primordialmente na figura do juiz, eis que as partes se apresentam como meros colaboradores – e aqui, um adendo: esse é o ponto que muitos estudiosos criticam na doutrina do jurista alemão, apontando a proposta do jurista italiano Elio Fazzalari [pronúncia: fátzalari] como a tese que derrubou essa organização da atividade do juiz no processo.
No Brasil, para terem uma ideia de lineamento dessa etapa, a Profa. Ada Pellegrini Grinover, em sua obra «Direito Processual Civil», publicada em 1974, pela Malheiros, aponta que no Código de Processo Civil de 1939 há clara visão dessa revolução científica processual desenhada no que se compreende por processualismo.
A proposta dessa fase ou etapa foi a de buscar independência do direito processual em relação ao direito material, fortalecendo os conceitos e instituições do direito processual, permitindo-lhe adquirir autonomia científica em relação ao material. O curioso dessa etapa metodológica é que a sua ruína se deu exclusivamente diante de cadência na criação de balizas para estabelecer essa autonomia científica que se pretendia para o direito processual.
A ideia do processo como técnica, e prestem atenção ao ponto (porquanto existir uma vulgata de que ela teria sido produzida na fase metodológica subsequente), está justamente nesse período da evolução do direito processual. Não se tinha uma preocupação das benesses do processo ao jurisdicionado ou à sociedade; o direito processual era visto como um ramo autônomo composto por um conjunto de conceitos, algo altamente técnico, inclusive, desencadeando uma estagnação na sua compreensão em certo ponto da história.
O Instrumentalismo
Embora em alguns sistemas jurídicos internacionais as fases metodológicas sinalizadas no bloco anterior não tenham sido superadas – seja por conveniência ou por entender que não há necessidade de ruptura do paradigma estabelecido pelo sistema –, no Brasil, o processualismo teve um ponto cristalino de superação: a chegada de Liebman e as contribuições teóricas da escola paulista de processo.
Vimos, anteriormente, que em um primeiro momento, o processo era enxergado como um mero anexo do direito material; posteriormente, foi cindido e transformado em um ramo jurídico científico autônomo (que teve o seu declínio justamente por essa tentativa exacerbada de elevar o grau de autonomia), entretanto, a segunda etapa metodológica do processo permitiu delimitar conceitos e criar instituições processuais.
O problema é que até a virada do que seria o instrumentalismo, não se preocupou, o processualista, nos seus aspectos sociais (e isso é até mesmo redundante se analisarmos o processo enquanto manifestação cultural; evidentemente que sua consolidação é carregada por anseios e desejos sociais – ou, melhor dizendo para que não me interpretem equivocadamente: quer-se algo do processo; ele não existe porque simplesmente deve existir; deve-se haver uma finalidade, para a sociedade, do processo). Essas (e outras) indignações começaram a aflorar na seara no estudo do processo e foram catalizadoras para a formação da terceira fase metodológica do processo: o instrumentalismo.
No Brasil, o instrumentalismo processual é sistematizado pela escola paulista de processo. Embora não seja o criador dessa filosofia processual, um dos principais nomes quando se fala em instrumentalismo processual é o Prof. Cândido Rangel Dinamarco, quem desenvolveu a brilhante obra «A instrumentalidade do processo», recentemente atualizada e publicada em parceria entre as editoras JusPodivm e Malheiros.
Na sua obra, o Prof. Dinamarco sinaliza com maestria o que deveria ser interpretado como paradigma dessa etapa metodológica. Diz ele que «a perspectiva instrumentalista do processo assume o processo civil como um sistema que tem escopos sociais, políticos e jurídicos a alcançar, rompendo com a ideia de que o processo deve ser encarado apenas pelo seu ângulo interno. Em termos sociais o processo serve para persecução da paz social e para a educação do povo; no campo político, o processo afirma-se como um espaço para a afirmação da autoridade do Estado, da liberdade dos cidadãos e para a participação dos atores sociais; no âmbito jurídico, finalmente, ao processo confia-se a missão de concretizar a vontade concreta do direito».
Ou seja, a partir da etapa metodológica instrumentalista, o processo deixa de se preocupar somente com seus pressupostos internos e ganha contornos sociais, políticos e jurídicos. Essa etapa metodológica do processo é fundamental; para dimensionar: no âmbito legislativo do processo, o instrumentalismo é claramente um propulsionador para o desenvolvimento e criação do Código de Processo Civil de 1973.
Alguns apontamentos sobre o assunto: (1) até hoje, o instrumentalismo processual é a etapa metodológica com maior difusão no Brasil – parte, acredito (a partir de investigações bibliográficas), seja pela criação da Teoria Geral do Processo, como disciplina autônoma, pela escola paulista de processo, difundida, paulatinamente, em diversas regiões do Brasil, inclusive, sob a orientação de fundamentação para ministrar a disciplina, os conceitos e propostas estabelecidos na obra «Teoria Geral do Processo», dos Profs. Antonio Carlo de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco; (2) alguns aspectos advindos de teorizações que usam como base as ideias do instrumentalismo processual são fortemente criticadas. O Prof. J.J. Calmon de Passos, a título de exemplo, é (e até onde encontrei em suas bibliografias, sempre foi), embora em linha pouco mais antiga, crítico à proposta do instrumentalismo; (3) para uma parcela da doutrina brasileira, especialmente pelos teóricos pertencentes à escola paulista de processo, não há o que se falar em fases metodológicas subsequentes, visto que o paradigma da instrumentalidade do processo está muito longe de exaurir o seu papel reformista.
O instrumentalismo, entretanto, e é curioso notar isso, acaba caindo no mesmo defeito da sua fase precedente, precisamente, ao pensar na aplicação do processo, como uma mera técnica, dos escopos desenhados pelos idealizadores dessa fase cultural do processo. Quem nos diz melhor sobre essa afirmação é o Prof. Guilherme Rizzo Amaral, na obra «Cumprimento e execução de sentença sob a ótica do formalismo-valorativo», publicada em 2008, pela Livraria do Advogado, para quem o processo continuaria preso à técnica quando o juiz se torna refém do escopo social (e poderíamos ampliar isso ao escopo político também).
Nesse sentido, a crítica reflete que o instrumentalismo acaba por esvaziar o próprio escopo do processo, isso na medida em que alarga o campo para o social e o político, enfraquecendo a própria acepção do que seria processo e do que seria jurisdição, abrindo campo para um amplo poder discricionário a cada juiz (e isso na medida em que se percebe que se permitira, ao julgador, aplicar o seu entendimento sobre o fato social, desencadeando em inevitável insegurança ao jurisdicionado e ao Estado Constitucional).
DESACORDOS SOBRE A FASE METODOLÓGICA (OU CULTURAL) HODIERNA (E AS SUAS ESCOLAS PROCESSUAIS)
Falando sobre as fases metodológicas do processo, vejo que o problema está no presente – e aqui, começaremos a entrelaçar o assunto com as principais escolas processuais do país –, precisamente em apontar o caminho que estamos trilhando hodiernamente no processo.
Para os adeptos do instrumentalismo processual, como apontado anteriormente, não há o que se falar em fases culturais do processo subsequentes; o paradigma do direito processual continua estabelecido nas premissas do instrumentalismo, embora, com reformulações e atenção ao movimento de constitucionalização do direito – isso se clarifica, por exemplo, quando analisamos a obra «Nova era do Processo Civil», do Prof. Cândido Rangel Dinamarco, publicada em 2007, pela Malheiros, em que o processualista aborda temas um pouco mais pontuais no que tocam a relação do processo e a Constituição Federal.
Entretanto, existem outras três proposições teóricas que sustam a superação do instrumentalismo, sendo elas (1) o formalismo-valorativo; (2) o neoinstitucionalismo; e o (3) neoprocessualismo – acredito que, dos que já estudaram o tema deste ensaio, essa última seja a mais conhecida.
O formalismo-valorativo seria uma possível interpretação do paradigma atual do processo, podendo ser considerado como uma quarta fase metodológica processual. Proveniente da escola de processo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a tese tem como o seu principal defensor o saudoso Prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. O seu pensamento consiste em alocar o processo no centro da teoria geral, equacionando de maneira adequada o direito, o processo e a Constituição. O formalismo-valorativo elenca dois paradigmas balizadores do processo civil: (1) efetividade e (2) segurança jurídica.
O problema dessa teorização, embora possua diversos adeptos espalhados pelo Brasil, é, como lembra o Prof. Guilherme Botelho, na obra «Direito ao processo qualificado: o processo civil na perspectiva do Estado constitucional» (anteriormente referenciada), é a sua falta de publicização.
Apenas um parêntese: a minha proposta de ensino é, e sempre, ser imparcial e completo em conteúdo, buscando não trazer opiniões ou suprimir determinado pensamento simplesmente porque eu não gosto ou não concordo. Sou adepto da ética e da pluralidade teórica.
Entretanto, se me permitem, terei que romper com proposta, por alguns instantes, para sinalizar que estou de acordo com a afirmação do Prof. Botelho. Para a difusão do formalismo-valorativo (e em quase mesmo problema incorre o neoinstitucionalismo), seria necessário dar maior ênfase à estudos sobre essa teorização. Após o falecimento do Prof. Alvaro de Oliveira, o formalismo-valorativo parece que foi, infelizmente, deixado de lado, ou melhor, abafado por outras teorizações que possuem maior veículo de publicização – peguem o caso da (instigante) obra «Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo», escrita pelo Prof. Alvaro de Oliveira, publicada em 2010, pela Saraiva: conseguir um exemplar dessa obra (em sebos) é como achar um diamante.
O neoinstitucionalismo é a denominação da quarta fase metodológica sustentada nas teorizações da escola mineira de processo, marcadas pela influência da teorização do filósofo e sociólogo jurídico Jürgen Habermas. O Prof. Rosemiro Pereira Leal (responsável por a sugerir), sustenta que essa fase metodológica seria uma conquista da pós-modernidade, na qual o processo ganharia contornos distintivos constitucionalizados, especialmente o marco democrático constitucional. Para o neoinstitucionalismo, o processo é uma conquista da cidadania que a fundamenta por meio dos princípios e institutos, com o marco da teoria discursiva em seu bojo.
Avançando; o neoprocessualismo. Quiçá, essa seja a segunda fase metodológica de maior conhecimento na atualidade por conta de seus principais pensadores e adeptos, dos quais se destaca o Prof. Fredie Didier Jr. O neoprocessualismo defende a ideia de um processo civil voltado para o processo descrito na Constituição Federal, mediante revisão de categorias processuais. Não há, precisamente (ou mais bem definido), um paradigma balizador dessa etapa metodológica, seu pensamento está muito mais ligado com a preocupação da relação entre o processo e a constituição.
Vale a menção de outras duas teses que poderiam estar situadas como uma quinta fase (a partir da própria sistematização de seus idealizadores) metodológica do direito processual brasileiro.
A primeira é a tese do Prof. Vicente de Paula Ataíde Júnior, quem, em sua tese de doutoramento, defendeu a existência de um novo paradigma cultural processual, o pragmático. Para o autor, o pragmatismo processual deve se consolidar enquanto método processual, visto que somente com uma organização metodológica, o pragmatismo poderia oferecer toda sua potencialidade para a construção de um sistema de justiça mais eficiente quanto à sua finalidade essencial, qual seja, resolver problemas de maneira adequada, efetiva e tempestiva.
A segunda é a tese defendida pelo Prof. Antonio Pereira Gaio Júnior, sobre o desenvolvimento como paradigma atual do direito processual. Devo sinalizar, analisando a sua bibliografia, que não se trata de proposta teórica nova; há, pelo menos, duas décadas de pensamento do autor abordando o processo (civil) como forma de contribuir com o desenvolvimento local, regional ou nacional. O processo seria, portanto, instrumento pelo qual há um serviço público prestado e, de igual forma, é eivado de garantias do cidadão, de modo que, melhorar a qualidade de vida da sociedade seria uma das principais diretrizes (ou balizas) desse paradigma.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Espero, com este pequeno escrito, o qual foi elaborado sem a pretensão de exaurir o tema, ter clarificado que todas as significações nas instituições processuais são passíveis de ressignificação a considerar o contexto (e alguns outros elementos), de modo que é imprescindível, aos que buscam conhecimento sobre o direito processual, entender o «plano de fundo» daquele que escreve ou daquilo que foi escrito. Uma menção honrosa: o tema aqui rabiscado já foi elaborado de forma majestosa por grandes autoridades do direito, dos quais faço destaque ao estudo (denso) desenvolvido pelo Prof. Marco Félix Jobim, na obra «Processo Civil brasileiro: suas fases culturais e escolas», publicada pela Livraria do Advogado, atualmente em sua 5ª edição (2022), a qual indico para aprofundar estes apontamentos – especialmente porque foi o livro que me auxiliou a compreender com clareza cada um dos pontos elencados neste trabalho e estabelecer esse como tema-base do direito processual.
Agradeço à equipe do Magis Portal Jurídico por permitir que eu exponha, com total liberdade, as minhas ideias na minha coluna mensal «O Processo Civil Nosso de Cada Dia» e por aceitar estas reflexões – elaboradas com a máxima cautela para, de um lado, não perder o rigor científico e descaracterizar o trabalho para sua configuração como «capítulo de livro» e, por outro, utilizar de abordagem condizente com a proposta de uma matéria mensal – para a obra que se está organizando entre manuscritos elaborados pelos colunistas do Portal.