O Brasil se mostra ao longo dos anos um país de muitos paradoxos culturais. Existe um repúdio social e moral a cassinos e jogos de azar, ao mesmo tempo em que o “Jogo do Bicho” é um patrimônio histórico nacional, cheio de folclores e mitos, em torno das apostas em sequências numéricas. Dessa forma, o Brasil ainda está aprendendo a lidar com o universo dos jogos de azar, agora em sua versão mais profissionalizada e manipulativa dos sites de “bets”.
No início do mês passado, mais precisamente em 04 de setembro, a “influencer” Deolane Bezerra foi presa na “Operação Integration”, por suspeita de apostas ilegais e lavagem de dinheiro e foi libertada alguns dias depois. Sem entrar em detalhes e minúcias da justiça ou cabimento da prisão preventiva, é interessante notar o que a Polícia Civil apresentou como indício de lavagem de capitais, segundo o Portal G1 de Notícias:1 “Em depoimento após ser presa, Deolane confirmou que comprou um carro de luxo de Darwin, um Lamborghini Urus S, por R$ 3,85 milhões. Segundo a Polícia Civil, os pagamentos à vista pela compra e pela venda de carros de luxo feitas pela empresa e pelo empresário geraram indícios de que houve “lavagem de dinheiro proveniente do jogo do bicho e de apostas esportivas”.
Portanto, a Polícia Civil considerou a compra de um veículo de alto valor, incompatível com os padrões brasileiros, como um indício de que a influenciadora estaria lavando dinheiro do jogo do bicho e apostas ilegais.
Outro episódio de prisão de um famoso, foi a acusação de que Gustavo Lima, igualmente, estaria envolvido com apostas ilegais e lavagem de dinheiro. Segundo o Portal CNN de notícias,2 para a Polícia Civil de Pernambuco, o cantor sertanejo seria sócio da empresa “Vai de Bet”, que, embora regular, estaria envolvida com práticas ilegais. Gustavo Lima negou as acusações, dizendo que mantém um contrato de publicidade e uso de imagem com a empresa citada, prevendo a possibilidade de receber 25% do valor de eventual venda futura.
Apesar de sua prisão preventiva ter sido revogada e ele responde em liberdade ao processo, a dúvida sobre a idoneidade de Gustava Lima, da Influencer Deolane e do próprio mundo das “bets”, está sendo exposta. Aos acusados, espera-se o respeito ao devido processo legal. Contudo, a problemática das “bets” é mais profunda que as suas repercussões criminais.
O debate sobre apostas avançou e ganhou um novo capítulo quando o Banco Central anunciou que beneficiários do Bolsa Família gastaram 3 bilhões de reais em “bets”, apostas on-line.3 Isso trouxe à tona o debate moral por trás do mundo das apostas, em torno das questões de vícios, efeitos nas famílias, endividamento e outras mazelas que acompanham essa prática de apostas.
As empresas de “bets” rebateram esse dado, dizendo que se considerar todo o valor gasto em apostas, subtrair o que é retido pelas plataformas, bem como excluir o que é devolvido em prêmios para os jogadores, foram gastos 210mi de reais, por beneficiários do Bolsa Família.4
Apesar de representar menos de 10% do valor apontado pelo Banco Central, a cifra ainda é alarmante, considerando que o Bolsa Família é destinado para pessoas pobres e sem recursos, que não deveriam desperdiçar apostando, mas usar do dinheiro para o seu sustento e tentar encontrar alguma forma de desenvolvimento e mobilidade social. A questão ganhou contornos tão graves, que o Governo Federal cogitou proibir o uso do cartão do Bolsa Família em “bets”, mas acabou recuando com a medida, sob o argumento que seria discriminatório impedir esse beneficiários de apostar.5
O Brasil ainda engatinha no mundo das apostas, já tão conhecido em outros países. As apostas são legalizadas no Brasil desde 2018, com a Lei Federal n. 13.756/2018.6 Trata-se de uma legislação um tanto esquisita, porque começa regulamentando o Fundo Nacional de Segurança Pública, para depois regulamentar, de forma genérica, apostas de quotas fixas em eventos esportivos reais.
Com efeito, as apostas de quota fixa, e outras modalidades de loteria, ajudariam na manutenção e custeio desse fundo, por isso a mistura dos temas. Porém, o que importa é o artigo 39, da Lei citada:
“Art. 29. Fica criada a modalidade lotérica, sob a forma de serviço público exclusivo da União, denominada apostas de quota fixa, cuja exploração comercial ocorrerá em todo o território nacional.
1º A modalidade lotérica de que trata o caput deste artigo consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico.
2º A loteria de apostas de quota fixa será autorizada ou concedida pelo Ministério da Fazenda e será explorada, exclusivamente, em ambiente concorrencial, com possibilidade de ser comercializada em quaisquer canais de distribuição comercial, físicos e em meios virtuais.
3º O Ministério da Fazenda regulamentará no prazo de até 2 (dois) anos, prorrogável por até igual período, a contar da data de publicação desta Lei, o disposto neste artigo.” Sem grifos no original.
Assim sendo, a modalidade de aposta por quota fixa para eventos reais de temática esportiva é extremamente restrita. Na realidade, essa tipificação é limitada a apostas esportivas, em relação a possíveis resultados, ou outras estatísticas, de esportes em geral. Obviamente, no Brasil, o uso se mostrou mais amplo no futebol, mas pode incluir basquetebol, vôlei, boxe e assim por diante.
Porém, em 2023, foi promulgada a Lei Federal n. 14.790,7 que ampliou o universo das apostas, e permitiu fossem realizadas apostas em jogos on line: “canal eletrônico que viabiliza a aposta virtual em jogo no qual o resultado é determinado pelo desfecho de evento futuro aleatório, a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras.”. Dessa maneira, as apostas saíram dos eventos reais com temática esportiva e avançaram para jogos aleatórios, sem uma lógica clara e de natureza totalmente simulada.
Com essa nova regulamentação, o popular “Jogo do Tigrinho”, pode sair da névoa em que se encontra e tornar-se lícito, contanto que atenda aos requisitos da Lei Federal n. 14.790/2023.8 Então, é importante registrar que a figura da aposta esportiva já é regular no Brasil e, agora, a partir do próximo ano, quando começam a viger as portarias do Ministério da Fazenda que regulamentam a Lei de 2023, a figura dos cassinos online, tipo o “Tigrinho”, também passarão a ser lícitas.
A grande diferença é que as apostas em evento esportivos são referentes a fatos reais, como por exemplo, o resultado de uma partida, cuja disputa acontece diante do apostador e gera efeitos reais. Por exemplo, a final da Copa Libertadores é acompanhada por milhões de torcedores e entusiastas do futebol, que veem tudo acontecendo diante dos seus olhos.
Por outro lado, o “Jogo do Tigrinho”, por exemplo, é algo irreal, não se sabe ao certo como algoritmo funciona, nem o quão aleatório realmente ele é. Existe a especulação, inclusive, que esse tipo de jogo promove muitos ganhos imediatos, para jogar com o vício e a sensação de prazer gerada por vencer o jogo, para depois começar a tira dinheiro apostador, quando ele se torna muito confiante. Assim, não exatamente um jogo, mas uma ferramenta de manipulação.
O Brasil já planeja tirar do ar várias plataformas de apostas on line nos próximos dias, quase como uma tentativa desesperada de moralizar esse mercado.9 Por outro lado, já há duas ADI’s no Supremo Tribunal Federal para discutir a constitucionalidade da legislação que liberou essa modalidade de apostas. Apesar de ser um instrumento justo para questionar a Lei, segundo notícia do Portal Conjur, as ADI’s estão tomadas de argumentos de ordem moral ou social, o que leva a crer que não haverá vício de constitucionalidade a ser reconhecido pelo STF.10
A questão passa a agora pela força que o governo terá para que as exigências da Lei n. 14.790/2023 sejam, efetivamente, cumpridas. Dentre elas, tem algumas que se destacam, como por exemplo: a outorga inicial de 30mi de reais, para a empresa de bets operar no Brasil; que a empresa mantenha um sistema antilavagem de capitais e contra o financiamento ao terrorismo e proliferação de armas e drogas; que tenha uma publicidade sóbria, ética e que preserve o consumidor – interessante que o artigo 27, da Lei n. 14.790, determinou a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às empresas de bets.
Do ponto de vista do compliance e ESG, o Brasil deu um passo arriscado. O setor de apostas, esportivas ou não, sempre foi considerado um segmento sensível, com alto risco para lavagem de capitais. Além disso, o universo das apostas tende a trazer consigo drogas e exploração de pessoas, afora a ruína financeira de muitos apostadores e suas famílias.
A pressão pelo Brasil liberar o setor de apostas também vem muito alta. Considerando a competividade do futebol nacional, somada a outras possibilidades, o segmento de jogos de azar permite aumentar o PIB e a arrecadação fiscal, bem como o ingresso de capital estrangeiro para o país, beneficiando a economia como um todo. Portanto, tem dois ângulos de análise a ser considerados, como quase todo debate público.
O texto começou trazendo os exemplos de prisões de figuras famosas, sob a acusação de lavagem de dinheiro oriundo de apostas, para mostrar o quão perigoso é o segmento. As empresas, bem como personalidades de destaque, deverão ter muita cautela ao vincular seus nomes com essas atividades. Não é à toa que Las Vegas é chamada de Cidade do Pecado, ou de terra sem Lei; o universo das apostas é perigoso, demanda cautela e, tradicionalmente, é um mundo no qual os governos não conseguem impor todo o seu poder, até porque não pertence somente a eles. Trata-se de uma espécie soberania paralela de máfias e criminosos, que agora ganha potência, visto que o enfrentamento é digital, por intermédio da internet, permitindo que empresas com sede fora do Brasil, obedecendo a outras legislações, possivelmente mais brandas, operem dentro do país.
O problema não serão as bets legalizadas. Com o pagamento de uma outorga de 30mi de reais, mais toda a adequação regulatória, com estruturas de segurança digital e financeira, o setor ficará restrito a uma gama de empresas milionárias que acabarão por cumprir a Lei. Todavia, se formará um mercado paralelo de apostas, que o governo não vai conseguir controlar, e aí que mora o perigo.
O Jogo do Bicho é proibido no Brasil desde os anos 40, e agora até existe uma plataforma online, com um Jogo do Bicho virtual, que inclusive foi autorizado a funcionar pelo governo.11 Então, tempos de desafios regulatórios se aproximam e, mais uma vez, a diferença entre existir uma Lei e ela ser efetivamente cumprida, será posta a prova.
Referências
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