A denominada “sociedade 4.0” é marcada, em grande medida, pelo alto grau de desenvolvimento tecnológico, bem como pela complexidade multifacetada e assimétrica das relações digitais, sendo que paulatinamente as novas tecnologias se inserem na vida das pessoas, integrando seu cotidiano de forma indispensável para a atual conjuntura.
Assim, hodiernamente surgem novos desdobramentos relacionados ao corpo social tecnológico, que alavanca em considerável ritmo e coloca em pauta as relações jurídicas de outrora, sendo necessárias contextualizações que acompanhem paulatinamente o ritmo das constantes mudanças da era digital.
Neste sentido, os estudos relacionados à propriedade digital ganham grande destaque na doutrina contemporânea,1 uma vez que a falta de regramentos específicos para determinadas relações jurídicas, as quais perpassam o multifacetado contexto digital, salienta a imprescindibilidade de se buscar respostas atualizadas para as novas questões que surgem a cada dia.
A garantia constitucional de propriedade, estampada no artigo 5º, XXII, da Constituição de 19882 abrange, neste contexto, os bens digitais, pautados pela imaterialidade e considerados incorpóreos, podendo ser armazenados em meio digital (como em nuvens, plataformas digitais ou simplesmente em um computador), constituindo acervo que pode gozar tanto de valor econômico como apenas sentimental. Ainda, tal amplitude objetiva abranger um vasto contingente de bens, desde fotos retiradas por um smartphone como contas em redes sociais e criptomoedas, resguardando os direitos de propriedade inerentes a tais bens.
Desta forma, mesmo sem a existência de regramentos específicos com objetivo de resguardar a abrangência digital e suas novas facetas, o Direito Civil contemporâneo deve oferecer caminhos e soluções para que eventuais lacunas não sejam traduzidas como insegurança jurídica frente às crescentes formas de tecnologia e suas variações.
A título exemplificativo, relacionando-se a temática à herança digital e propriedade digital post mortem, certo é que as criptomoedas deverão gozar de legislação específica com vistas a assegurar o patrimônio digital do de cujus e seus sucessores (o campo guarda relações estritas com a tributação de tais ativos), ao tempo em que contas em redes sociais deverão gozar de regramentos especiais para resguardar a memória digital do de cujus, e eventuais desejos testamentários.
Neste norte, questiona-se se os herdeiros de influenciadores digitais teriam direito à herança do patrimônio digital constituído pelo falecido,3 bem como se existiria obrigação das plataformas em manter estes perfis após o evento morte de seu criador,4 hipóteses essas em que seriam aplicadas as disposições contratuais, se existentes, ou, analogicamente, as disposições gerais relacionadas aos direitos da personalidade e direitos sucessórios.
As relações jurídicas entre vivos também são palco de questionamentos referentes às amplitudes tecnológicas, marcadas pelo viés da hiperconectividade, importante elemento da sociedade contemporânea, impulsionada pelo advento da internet e das mídias sociais. Assim, indaga-se se “memes” e demais “posts” de determinado perfil em rede social abrangeriam o contexto de bens digitais, atraindo a proteção constitucional da propriedade não apenas para a conta, mas para todas as publicações nela contidas, em alusão ao princípio da gravitação jurídica.
Neste sentido, o “oversharing”, termo utilizado para definir compartilhamentos excessivos nas plataformas sociais, ganha notável relevância,5 uma vez que caberia análise acerca de eventuais violações aos direitos de imagem e de privacidade, principalmente quando atrelado aos menores de idade.
De mesmo modo, surgem interrogações sobre a (in)existência de responsabilidade civil pelo “hate speech” (discurso de ódio) veiculado em redes sociais, sendo notórios os casos em que as próprias plataformas excluem, sem aviso prévio, a mensagem veiculada. Para além do debate relacionado ao tema da liberdade de expressão, poderia a mensagem criptografada – seja por tweet, post ou conversa em aplicativos de mensagens – ser considerado bem integrante da propriedade digital do autor? Nesta baila, cumpre destacar que o primeiro tweet, realizado pelo criador da plataforma, foi convertido em um NFT (token não fungível), caracterizando-se como um ativo digital, e posteriormente leiloado por quantia milionária.
A vastidão de questionamentos e novos debates relacionados aos bens digitais é certamente notável, exprimindo relevância à sociedade 4.0, sendo que a busca por soluções jurídicas aumenta em ritmo de destaque, com ênfase no contexto cível. Ainda que seja imperioso destacar a necessidade de amparo legislativo específico para cada faceta da propriedade digital, muitas respostas são alcançadas a partir da analogia e aplicabilidade no contexto atual, de modo a buscar o devido amparo legal para situações anteriormente inimagináveis e, atualmente, extraordinárias, mas cada vez mais comuns ao dia-a-dia do indivíduo.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. Nesse sentido ver: LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba, São Paulo: Editora Foco, 2021.
2. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII – é garantido o direito de propriedade;
3. Nesse sentido ver: BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. . Reflexões acerca da responsabilidade civil dos influenciadores digitais na sociedade 4.0. In: Mafalda Miranda Barbosa; Nelson Rosenvald; Francisco Muniz;. (Orgs.). Responsabilidade Civil e Comunicação: IV Jornadas Luso-Brasileiras de Responsabilidade Civil. 1. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 9-28.
4. Nesse sentido ver: FACEBOOK não indenizará mãe após excluir perfil de filha falecida. Portal Migalhas. 2021. Disponível em: https://bit.ly/2W3mHKe. Acesso em: 17 ago. 2021.
5. Nesse sentido ver: GUIMARÃES, Clayton Douglas Pereira; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira. Sharenting, (over)sharenting e autoridade parental. Magis: Portal Jurídico. 2021. Disponível em: https://bit.ly/2W4vkEU. Acesso em: 17 ago. 2021.