Em muitos estudos sobre proteção de dados incluímos e fazemos paralelos entre a aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados e do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu. Essa comparação é válida à medida que se percebe a influência da presente lei sobre a nossa legislação. Seja nos princípios, nos fundamentos, nas bases legais, é perceptível a influência da União Europeia sobre a LGPD.
A possibilidade de se inspirar em demais regulamentos é um caminho interessante, permitindo aprender com demais países, instituições e governos que já lidam com a matéria a algum tempo. Em termos de proteção de dados vale destacar que a Alemanha editou a que foi considerada a primeira lei de proteção de dados no mundo,a Lei de Hesse, como principal expoente o professor Spiros Simitis.1 Não somente no cenário da proteção de dados, mas também nos serviços digitais com o Digital Services Act (DSA) e na inteligência artificial com o Artificial Inteligent Act (AI Act).
Parte dessa influência é explicada pela professora Anu Bradford como o “Efeito Bruxelas”, referente ao “poder unilateral da UE em regular mercados globais. Sem a necessidade de recorrer a instituições internacionais ou de procurar a cooperação de outras nações, a UE tem a capacidade de promulgar regulamentos que moldam o ambiente empresarial global, conduzindo a uma notável “europeização” de muitos aspectos importantes do comércio global (tradução livre)”.2
A questão, contudo, que deve ser colocada frente a importação de modelos está na devida adequação entre sistemas, culturas e tradições. Assim poderão ser levantadas questões que atinjam determinadas sociedades mais que outras. Do contrário, ao se importar alguns institutos sem a devida criticidade corre-se o risco, conforme o processualista José Carlos Barbosa Moreira, do transplante posteriormente restar rejeitado pela incompatibilidade.3
No contexto brasileiro vale destacar que essa adoção, sem atenção aos devidos contextos, pode ensejar na perpetuação de desigualdades sociais e mazelas da sociedade, pois cabe aos legisladores que importam determinados modelos ser sensíveis ao contexto brasileiro. Caso não sejam observadas essas questões podem ser reproduzidas situações, ainda que veladas, de colonialidade do poder. A colonialidade representa essa característica de como colonos e colonizados ainda apresentam essa relação de dominação, sendo que o primeiro molda, de certa forma, “nossa compreensão da cultura, trabalho, intersubjetividade e produção de conhecimento”.4
Tome-se como exemplo os artefatos que possuem inteligência artificial. Sua base de treinamento é proveniente muitas das vezes do Norte Global, cujo conjunto de dados provém majoritariamente dos Estados Unidos e Europa Ocidental.5 Nesse ponto alguns autores destacam que não se atentar às diferentes realidades pode reproduzir esses modelos de colonialidade.6
Conclui-se que essa observação também deve ser levada em conta na área da proteção de dados, demandando dos atores sociais medidas que rastreiem problemas sociais suscetíveis a serem aprofundados pelo manejo incorreto dos dados pessoais. Esse contexto social não será prontamente extraído da experiência europeia, mas sim da análise do cenário brasileiro pelos próprios brasileiros. Caso não sejam adotadas essas medidas ficaremos condicionados as análises de agentes externos sobre nossa própria conjuntura.
Referências
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1. Menke, Fabiano. Spiros Simitis e a primeira lei de proteção de dados do mundo. Portal Migalhas. 19 nov. 2021. Disponível em: link. Acesso em: 25 dez. 2023.
2. Bradford, Anu. The Brussels effect: How the European Union rules the world. Oxford University Press, USA, 2020.Ebook.
3. Barbosa Moreira, Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. In: Temas de direito processual. Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001.
4. De Souza Machado, Joana et al. SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E AVALIAÇÕES DE IMPACTO PARA DIREITOS HUMANOS. Revista Culturas Jurídicas, 2023. p. 7. Os autores e autoras aqui citam três trabalhos sobre colonialidade: CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado). São Paulo, SP: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: link; MALDONALDO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. Em: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007; MOHAMED, Shakir, PNG, Marie-Therese e ISAAC, William. Decolonial AI: Decolonial Theory as Sociotechnical Foresight. In: Artificial Intelligence. Philosophy and Technology. 2020. vol. 33, no. 4, p.659-684. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1007/s13347-020-00405-8.
5. Cortiz, Diogo. Inteligência Artificial: equidade, justiça e consequências. Panorama setorial da Internet . 2020. vol. 12, no. 1. Disponível em: link. Acesso em: 26 dez. 2023.
6. De Souza Machado, Joana et al. SISTEMAS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E AVALIAÇÕES DE IMPACTO PARA DIREITOS HUMANOS. Revista Culturas Jurídicas, 2023.