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Proteção de dados genéticos e o risco do reducionismo genético

genética

Em pesquisa1 publicada em 2018, duas pesquisadoras analisaram 9 livros didáticos na parte destinada a genética, incluindo biologia molecular. O intuito era identificar como o assunto da genética era tratado em sala de aula. Concluíram as pesquisadoras que: i) era necessário dar maior atenção a matéria, comparado ao que era trabalhado pelos livros; ii) as menções de características humanas, em sua maioria são abordadas como monogênicas, ou seja, quando há determinação desta apenas por um par de gene, de certa forma desconsiderando a variedade de fatores que são definidos por mais de um gene, bem como a influência do ambiente sobre o sujeitos . Dessa conclusão surge o risco, segundo as autoras, do reducionismo genético.

Esse termo, segundo Victor Penchaszadeh, seria a compreensão de que “aspectos – como saúde e comportamento, organização social e atividades gerais da vida – são explicadas basicamente por variações genéticas, com pouca influência do ambiente”.2 O autor relata que essa abordagem embasou práticas de discriminação racial e marginalização de grupos durante o século XIX e XX, bem como na “higiene racial” praticada pelos nazistas. Ela teria entrado em descrédito, mas estaria ainda presente, de maneira suave, como na alocação de recursos para investigar questões genéticas em doenças que possuem “influências ambientais sabidamente essenciais nas suas causas”.3

Perceptível nessas colocações identificar que, para a construção da personalidade da pessoa humana, deve-se compreender as questões genéticas, mas também aquelas relacionadas ao meio em que ela vive, as quais exercem influência em todos os indivíduos.

Na LGPD a proteção dos dados genéticos está categorizada enquanto dado sensível, conforme art.5º, II da Lei. Dessa forma, diferente de um dado primordialmente “comum”, como CPF e e-mail, ele por si receberia proteção mais robusta, como a necessidade de consentimento destacado (art.11º, I), ou uma modulação de quesitos de segurança da informação.4

A importância da proteção do dado genético está em evitar casos como a descoberta de uma predisposição genética a determinada doença e a negativa de tratamento pelo plano de saúde, ou a discriminação de uma pessoa frente a doenças estigmatizadas pela sociedade. A lei, contudo, não definiu o que seria essa categoria. O considerando 34 do GDPR conceitua que dados genéticos são

dados pessoais relativos às características genéticas, hereditárias ou adquiridas, de uma pessoa singular que resultem da análise de uma amostra biológica da pessoa singular em causa, nomeadamente da análise de cromossomas, ácido desoxirribonucleico (ADN) ou ácido ribonucleico (ARN), ou da análise de um outro elemento que permita obter informações equivalentes.

Para Rodotà há um risco especial dentro dos dados genéticos. Segundo o jurista as informações genéticas assumem valor constitutivo da esfera privada, por possuírem caráter estrutural e permanente sobre o indivíduo. Neste ponto o autor defende essa categoria como o núcleo duro da privacidade, estando na base das ações discriminatórias.5

A questão contudo que se deve atentar é que, em tempos de big data cujo os dados do vizinho são tão importantes quanto os nossos para a formação de perfis,6 bem como a utilização de dados aparentemente não sensíveis para práticas discriminatórias, como o sobrenome que pode indicar a etnia de uma pessoa,7 definir uma informação sensível como “mais sensível” a todas as outras pode nos afastar de outras situações a serem enfrentadas.

Nesse ponto, voltando a Penchaszadeh, deve-se observar que o foco somente às informações genéticas pode distrair nossa atenção para determinantes sociais, “eximindo a ordem social de suas responsabilidades humanas”.8 Nesse sentido, ainda que haja uma categorização para dados “comuns” e dados sensíveis é importante destacar que a proteção dos titulares perpassa principalmente pela proteção de sua personalidade, a qual pode ser ameaçada perante o dado coletado, o contexto em que se encontra e as finalidades a ele direcionadas.

Logo, em uma sociedade movida cada vez mais a dados, deve-se endereçar sim os riscos característicos aos dados genéticos, como o desejo de familiares conhecerem a situação de determinado parente, a fim de conhecer suas próprias propensões genéticas.9 Contudo, não devemos cair na ideia de considerar o dado genético como o determinante para a construção da personalidade do indivíduo, a qual é o resultado de uma série de elementos intrínsecos e extrínsecos ao sujeito.

 

Referências

____________________

1. PROCHAZKA, Luana de Souza; FRANZOLIN, Fernanda. A genética humana nos livros didáticos brasileiros e o determinismo genético. Ciência & Educação (Bauru), v. 24, p. 111-124, 2018.

2. PENCHASZADEH, Victor B. Problemas éticos do determinismo genético. Revista Bioética, v. 12, n. 1, 2004.

3. PENCHASZADEH, Victor B. Problemas éticos do determinismo genético. Revista Bioética, v. 12, n. 1, 2004.

4. KORKMAZ, Maria Regina Detoni Cavalcanti Rigolon, 2019. Dados Sensíveis na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais: mecanismos de tutela para o livre desenvolvimento da personalidade. 2019. 119 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Direito, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora.

5. RODOTÀ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância: a privacidade hoje. Organização, seleção e apresentação: Maria Celina Bodin de Moraes. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda). Renovar, Rio de Janeiro, 2008

6. “In other words, when it comes to building a “profile”, in order to be able to ‘capitalise’ on the risks and opportunities that we present, our neighbours’ data are as good as our own”. ROUVROY, Antoinette. “‘Of Data of Men’. Fundamental Rights and Freedoms in a World of Big Data”. Council of Europe, Directorate General of Human Rights and Rule of Law. vol. T-PD-BUR (2015) 09REV, 2016. p.22.

7. DONEDA, Danilo. MONTEIRO, Marília. Acesso a informação e privacidade no caso da Universidade Federal de Santa Maria. 02 jul. 2015. Jota. Disponível em: link.

8. PENCHASZADEH, Victor B. Problemas éticos do determinismo genético. Revista Bioética, v. 12, n. 1, 2004.

9. TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados Pessoais Sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco. 2022. p.106.

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