No dia 22 de outubro de 2024, tive o prazer de participar como ouvinte de uma audiência pública do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul, realizado no Plenário Milton Varella do TRT-4, em Porto Alegre.1 Primeiro, é preciso destacar a grande emoção de ver o auditório completamente reformado após ter sido inundado nas enchentes de maio desse ano, com a água alcançando cinquenta centímetros de altura. Nas mesas ocupadas pelas autoridades, ainda se enxergava a marca que a água deixou nos móveis, com certeza uma lembrança da resiliência e da força dos gaúchos.2
A audiência pública é fruto do projeto intitulado “Enfrentamento às Fraudes nas Relações de Trabalho na Saúde”, de iniciativa da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret) do MPT. Muitas vezes se ignoram os nomes dados aos projetos institucionais do poder público, mas esse título que o MPT atribuiu já chama muita atenção.
O Ministério Público do Trabalho não criou uma força tarefa institucional para investigar potenciais fraudes às relações de trabalho, tampouco um grupo de estudo para fraudes trabalhistas. O Parquet trabalhista já foi logo criando uma estrutura de “combate” às fraudes na relação de trabalho, afirmando um compromisso de “enfrentamento”, não fiscalização. Atribuições institucionais aparte, a posição do MPT está bem clara no ponto.
Vindo ao embalo da pandemia e da recente Lei do Piso da Enfermagem,3 o primeiro setor econômico abordado pela Conafret, no Rio Grande do Sul, foi o setor da saúde, que vem passando por um processo de precarização, que se acentuou com a imposição de um piso de enfermagem.
Segundo relatos, estão surgindo formas de driblar o piso da categoria, com a criação de novos cargos na área de saúde, que não seriam enfermeiros ou técnicos, mas são ocupados por profissionais com essa formação. Assim, estão se criando nomes engenhosos, como: auxiliar de saúde; auxiliar médico; ou trazendo nomes antigos de volta, como o maqueiro, que é uma figura que tinha sido abandonada nos hospitais.
Porém, novamente conforme relatos na audiência, outras empresas, inclusive hospitais de porte, estão utilizando de outras formas de vínculo legal para a prestação de serviços, diversos do celetista, para reduzir custos de contratação e com salários.
Dessa forma, essas seriam as duas modalidades de fraudes que estariam ocorrendo: uma através da alteração formal da contratação na CTPS, para driblar o piso; uso de formas alternativas ao vínculo celetista, para a contratação de profissionais com custos reduzidos.
Em relação à modificação do cargo do enfermeiro ou técnico em enfermagem na CTPS ou no CBO, trata-se de uma forma grosseira de tentar ludibriar o piso da enfermagem ou outros encargos trabalhistas. No Direito do Trabalho rege a primazia da realidade, logo, o que está escrito não é necessariamente o que é válido, pois vai prevalecer o que o empregado fazia de fato, dentro da empresa, na hora do julgamento.
Nesse sentido, a jurisprudência do Egrégio TRT4:
MONITOR DE ESTÁGIO. ENQUADRAMENTO NA FUNÇÃO DE PROFESSOR. CONTRATAÇÃO FORMAL. PRIMAZIA DA REALIDADE. Em que pese contratado para a função de “Monitor de Estágio”, o reclamante desempenhou, no caso concreto, atividades típicas da docência. Aplicação do princípio da primazia da realidade. Recurso ordinário da reclamada a que se nega provimento. (TRT da 4ª Região, 11ª Turma, 0020747-79.2021.5.04.0104 ROT, em 03/04/2024, Desembargador Luis Carlos Pinto Gastal – Relator).
EMENTA GRUPO ECONÔMICO. UNICIDADE CONTRATUAL. Em se tratando de lide trabalhista, necessária se faz a aplicação do princípio da primazia da realidade. Esse princípio é assentado na noção de que o contrato de trabalho é um contrato-realidade, na terminologia utilizada por Mário de La Cueva. Os fatos prevalecem sobre as formas, as formalidades ou as aparências. Para Plá Rodriguez, no caso de discordância entre o que ocorre na prática e o que emerge de documentos ou acordos, deve-se dar preferência ao primeiro, isto é, ao que sucede no terreno dos fatos. Na hipótese, a prova dos autos indica a existência de contratos de trabalho distintos e válidos, não sendo caso de unicidade contratual. Recurso do autor a que se nega provimento. (TRT da 4ª Região, 3ª Turma, 0020507-30.2021.5.04.0027 ROT, em 08/04/2024, Desembargador Francisco Rossal de Araujo). Sem grifos no original.
Então, essa ideia de alterar a contratação do empregado pode até funcionar por um tempo, ou seja, até o primeiro empregado nessa situação entrar com uma Reclamatória Trabalhista, ou algum órgão de proteção ao trabalhador, como o MPT, começar a investigar essa prática. A partir de então, a empresa vai começar a ter sérios problemas, inclusive, com o pagamento de condenações.
Todavia, em relação à busca de modalidades alternativas à CLT, de contratação, está começando a surgir um campo minado, entre duas posições antagônicas. O Ministério Público do Trabalho e a própria Justiça do Trabalho possuem uma posição aberta de proteção do empregado, sempre que possível. Inclusive, nessa audiência pública de 22 de outubro, estava presente representante do Tribunal do Trabalho da Quarta Região que afirmou um compromisso com o combate às fraudes na relação de trabalho.
No outro lado, estão recentes posições do STF não reconhecendo vínculo empregatício em várias hipóteses, reformando decisões do TST, inclusive, por meio de Reclamação direto na Corte Superior.4 Basicamente, o STF vem decidindo que o julgamento das ADPF 324, na ADC 48 e na ADIn 5.625 autorizaram a terceirização de qualquer atividade empresarial, assim, o ordenamento jurídico brasileiro passou a aceitar novas formas de relação de trabalho, que não sejam necessariamente o vínculo trabalhista celetista.
Na audiência pública, o MPT fez questão de destacar que essa não seria a realidade do STF, que ainda tem mais decisões mantendo o reconhecimento de vínculo empregatício, do que derrubando as posições do TST ou outros tribunais.
A prática de fazer contratações de profissionais de forma alternativa à CLT está se tornando cada vez mais usual. Os motivos são vários, sendo a redução de custos e encargos sobre a folha o principal deles, mas também envolve a retenção de talentos dando mais autonomia aos profissionais.
Percebe-se, portanto, que essa história tem dois lados. As empresas chegam a um limite de possibilidade de remuneração dos empregados, mas querem mantê-los. Contudo, o empregado começa a exigir salário maior, surgindo a proposta de, portanto, a empresa liberar ele para contratar serviços fora e, para isso, ele precisa se desvincular do trabalho CLT, para continuar trabalhando tanto para a empresa inicial, quanto para novos clientes. Com efeito, trata-se de um fenômeno neoliberal de busca pelo seu próprio desenvolvimento econômico, tornando o sujeito um empresário de si mesmo.
Como o ex-empregado vê o horizonte de ser melhor remunerado, aceita a modificação da contratação para a modalidade autônoma ou MEI. Todavia, quando a antiga empresa encerra o contrato e o ex-empregado percebe sua remuneração diminuir, surge a discussão que o vínculo era empregatício.
O debate do vínculo de emprego é caótico. Diante da prevalência do princípio da primazia da realidade, tudo é remetido à prova da existência dos requisitos do vínculo de emprego: habitualidade; subordinação; alteridade; onerosidade; pessoalidade. Se o Reclamada reconhecer a relação de prestação de serviços, o ônus da prova é do Reclamado de que a relação não era de emprego. Ou seja, na Reclamatória Trabalhista o Reclamado é colocado num beco quase sem saída em que é obrigado a provar que o Reclamante não era seu empregado.
Logo, o STF está tentando reafirmar a liberdade de contratação e concorrência; o MPT, por sua vez, está tentando proteger os interesses de trabalhadores, mesmo que esses assinem documentos concordando que a contratação seja por modalidade que não contemple vínculo de emprego.
Na audiência pública foram debatidas várias formas de trabalho, tais como cooperativas, contratação autônoma, terceirização e MEI’s. Cooperativas e terceirização são formas mais elaboradas de contratação de pessoal, que geralmente envolvem empresas com uma demanda grande de profissionais. Contudo, as MEI’s e a contratação de profissionais autônomos não param de se proliferar.
Em relação às MEI’s, o MPT até possui uma posição interessante. O Micro Empreendedor Individual (não confundir com ME – Microempresa) é uma figura estranha no direito brasileiro, pois é uma pessoa jurídica sem existência autônoma em relação ao seu único sócio. Trata-se de uma figura legal criada para a organização do processo econômico, porquanto existiam, e existem, muitos profissionais que estão fora do guarda-chuva da previdência, e a MEI permitiria que esses profissionais fizessem seus recolhimentos previdenciários, emitissem nota fiscal e organizassem um pouco melhor a sua vida fiscal e financeira. Essa foi, inclusive, a posição do MPT em audiência:
“O MEI o que é? O MEI foi criado para que um profissional efetivamente autônomo pudesse ser formalizado e ter inclusão previdenciária. O que estamos vendo hoje no Brasil? O MEI sendo usado como subterfúgio para fraudar vínculo de emprego. Apenas entre 2021 e 2022, houve cadastramento de mais 1,5 milhão de MEIs no Brasil, sendo que, segundo o IBGE, 28% estão cadastrados no CADUnico, demonstrando a precarização desse grupo de trabalhadores. O MEI não pode ser utilizado para fragilizar relações de trabalho”, afirmou a procuradora [Dra. Priscila Dibi Schvarcz]”.
O espaço aqui não será ocupado para dizer se o MPT está certo ou não. A coluna de hoje serve de um alerta às empresas que estão achando “melhor”, “mais fácil” e “mais barato” contratar MEI’s ou profissionais autônomos. Essas são práticas com prazo de validade, podem dar certo por algum período, até anos, mas em algum momento começarão a surgir demandas trabalhistas com esse tipo de tema, e a situação pode começar a ficar cara.
No campo do ESG, em especial os eixos social e de governança precisam atentar a esse novo movimento. A contratação de profissionais por meios alternativos à CLT cria um cenário de precarização do trabalho, em que as pessoas não possuem direito a férias, verbas rescisórias, FGTS, décimo terceiro salário, etc., o que pode criar um cenário de desânimo dos trabalhadores, bem como de confronto, porque se essa precarização não vier com liberdade (contratação sem subordinação), somente o profissional que perde. Além disso, trata-se de uma possível fraude à relação de trabalho, acusação que sempre é ruim do ponto de vista da Governança Corporativa.
Então, os setores de ESG e compliance das empresas devem acompanhar os passos da Conafret, para ir compreendendo quais são os possíveis debates futuros que vão se instalar na jurisprudência e com o próprio MPT, sobre essas novas modalidades de contratação de profissionais.
Referências
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1. Disponível em: link. Acesso em: 05 nov. 2024.
2. Disponível em: link. Acesso em: 05 nov. 2024.