Sed quis custodiet et ipsos custodes? A célebre frase de autoria do poeta romano Juvenal, no século II, em “As Sátiras”, sintetiza a questão filosófica da responsabilização de quem se encontra no poder. Afinal, quem vigia os vigilantes? É sob este mote que Watchmen, renomada história em quadrinhos de Alan Moore, na década de oitenta, subverte o gênero de super-heróis, anti-heróis e justiceiros.
Já no século XXI, a “sociedade 4.0” é, dentre muitas acepções, marcada pela denominada “idade mídia”,1 regulada pelas plataformas digitais, em que a superexposição de seus usuários deu início à denominada cultura do cancelamento, terminologia utilizada para declarar a “morte” virtual do indivíduo, caracterizando o ostracismo social em ambiente virtual.
Geralmente associado a celebridades e influenciadores digitais, os “cancelados” adquirem este status por múltiplos motivos questionáveis, como, por exemplo, o desalinhamento com opiniões públicas e atividades contrárias ao legitimamente esperado do cidadão médio (como práticas racistas ou homofóbicas), podendo, ainda, o ato originário do cancelamento ser considerado fútil ou insignificante sob a ótica social, como a falta de posicionamento acerca de determinado assunto. Os canceladores, em seu turno, são parte do “tribunal da web”, assumindo a concomitante posição de juiz, júri e carrasco.
Qualquer deslize é apto a gerar o cancelamento do indivíduo. Em tempos de engajamento e influência como palavras de ordem na sociedade digital, o cancelado perde sua relevância, com consequências que atingem tanto sua personalidade digital quanto seu patrimônio.2
A problemática envolve questões de cunho social e legal, uma vez que a supremacia do denominado “tribunal da web” perpassa os limites ético-jurídicos, fomentando o discurso ao ódio e a impunidade pelo cancelamento precoce.
De um lado, existem cancelamentos dignos de repulsa social, como o “episódio Gabriela Pugliesi”,3 marcado por evento privado da influenciadora durante as medidas de isolamento social e o “caso Júlio Cocielo”,4 em que o Ministério Público propôs ação de danos morais coletivos pelas práticas supostamente racistas do influenciador.
Noutro norte, atitudes desconexas do razoável marcam cancelamentos de ações (ou omissões) que não ofendem a sociedade ou tampouco um indivíduo em particular, como na ocasião em que a atriz Elizabeth Olsen foi prematuramente cancelada por não se manifestar acerca do falecimento de Chadwick Boseman, colega de elenco e astro de “Pantera Negra”.
Contudo, a questão central não é declarar se determinado cancelamento ocorreu em virtude de ato justo ou injusto ou se as atitudes dos cancelados são passíveis de responsabilização judicial (como nos casos de Gabriela Pugliesi e Júlio Cocielo). Para isso, existe o Poder Judiciário, para que seja possível atingir os esperados ideais de justiça, não cabendo tal atribuição aos justiceiros virtuais e ao “tribunal da web”.
Os canceladores, movidos pela sensação de poder, por muitas vezes se rendem ao discurso do ódio (hate speech), proferindo argumentações ofensivas aos cancelados, clamando pelo rebaixamento social. Assim, “o que se nota nas redes sociais da internet é a mais completa devassa da privacidade decisional, quando o indivíduo é colocado como um alvo de apedrejamento virtual por qualquer deslize, por mínimo que seja, ou nem isso: simplesmente por ódio gratuito”.5
Neste sentido, convém destacar o cancelamento da cantora Karol Conká, promovido por suas atitudes dentro do programa Big Brother Brasil 21. As redes sociais da cantora deslumbraram significativa queda no número de seguidores, bem como Conká vislumbrou a rescisão de contratos de patrocínios e de eventos.
A insatisfação do público resultou em histórica eliminação no programa, mas o cancelamento perdurou para após sua saída e motivou o hate speech de internautas, que contra ela proferiam ofensas de cunho racista e machista.6
O discurso ao ódio também teve vez no mencionado caso de Elizabeth Olsen, onde o “tribunal da web” tentou boicotar a estreia do programa “WandaVision” (Disney+/Marvel Studios), proferindo insultos machistas contra a atriz, o que causou sua definitiva saída das redes sociais, em que a mesma proclamou que não pretende retornar.
No ordenamento jurídico brasileiro, a liberdade de expressão, garantia fundamental, não abrange as declarações de ódio e de intolerância, sendo que, uma vez exteriorizado, repercute na esfera privada do ofendido e da sociedade como um todo.7
No leading case da temática (HC 82.424-2/RS),8 o Supremo Tribunal Federal destacou que a liberdade de expressão pode ser restringida nas situações em que a manifestação de pensamento não observa os limites constitucionais.9 Assim, resguarda-se a dignidade da pessoa humana, vez que as intolerâncias proferidas pelo hate speech não acrescem a sociedade contemporânea.
Assim, uma vez que este tipo de discurso não encontra-se abrangido pela garantia fundamental da liberdade de expressão, a temática ganha relevância em matéria de responsabilidade civil, uma vez que caracteriza danos, posto que o ato em questão é pautado como ilícito (art. 186, Código Civil), atingindo direitos da personalidade estampados no diploma civil, como a imagem e a honra.10
Neste sentido, os canceladores, em seu papel de justiceiros virtuais, podem acabar por cometer ilícitos passíveis de reparação, uma vez que violam direitos fundamentais, ultrapassando os limites da liberdade de expressão. Deste modo, a responsabilização pelos danos cometidos em ambiente digital é medida impositiva em casos de hate speech, em que ofendem diretamente a pessoa “cancelada”.
A adversidade relacionada à reparação, contudo, se insurge sob o manto do anonimato e perfis fakes,11 em que os usuários buscam a blindagem para cometer ilícitos civis no ambiente virtual. Tal fator é um desafio tanto aos entes públicos quanto aos indivíduos na esfera privada, pois dificulta o alcance da autoria e a consequente reparação dos danos.12
Todavia, a responsabilidade civil dos canceladores pelo discurso de ódio é pautada como possível, sob a vertente subjetiva, uma vez ocorrida a identificação dos autores que proferiram mensagens inoportunas e ofensivas. A legislação brasileira caminha para regularizações cada vez mais abrangentes, que compreendam os novos desafios da sociedade marcada pelas mídias digitais e pela hiperconectividade, a exemplo do Marco Civil da Internet.
Portanto, é imperioso o destaque para o ativismo do cancelamento, em que o ordenamento jurídico pátrio deve, hodiernamente, definir de forma clarificada as consequências jurídicas dos justiceiros virtuais, que, ao agir como tribunal de exceção, violam garantias e direitos fundamentais sob o falso pretexto da impunidade, o que não pode ser tolerado, sob pena de se caracterizar a internet como terra sem lei.
A cultura do cancelamento dificilmente será cancelada, mas os canceladores que atuam com discursos de ódio deverão obedecer os regramentos ético-jurídicos, encarando a liberdade de expressão como conceito que não apenas abrange um indivíduo, mas que resguarda a coletividade como um todo. Caso contrário, poderão ser responsabilizados civilmente por seus atos. Desta forma, a resposta para a frase proferida por Juvenal poderá ser alcançada nos tempos da “idade mídia”.
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Caio César do Nascimento Barbosa
Referências
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1. Nesse sentido ver: MARTINS, Fernando Rodrigues; FERREIRA, Keila Pacheco. Da idade média à idade mídia: a publicidade persuasiva digital na virada linguística do direito. In: PASQUALOTTO, Adalberto (Org.). Publicidade e proteção da infância. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. v. 2, p. 96.
2. Nesse sentido ver: FORBES. Festa durante isolamento pode ter causado prejuízo de RS 3 milhões a Gabriela Pugliesi. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3gUd2h1. Acesso em: 12 de agosto de 2021.
3. Para maior aprofundamento, os autores Caio César do Nascimento Barbosa, Glayder Daywerth Pereira Guimarães e Michael César Silva abordam as consequências práticas e jurídicas do cancelamento de Gabriela Pugliesi em 2020: BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES, Glayder Daywerth Pereira; SILVA, Michael César. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais em tempos de coronavírus. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI Rozatti, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, p. 311-331, 2021.
4. Para maior aprofundamento, o autor Alessandro Ferreira da Silva disserta sobre as consequências dos tweets de Júlio Cocielo: DA SILVA, Alessandro Ferreira. Cultura do cancelamento: cancelar para mudar? Eis a questao. Revista Argentina de Investigación Narrativa, v. 1, n. 1, p. 93-107, 2021.
5. A CIOLI, Bruno de Lima; PEIXOTO Erick Lucena Campos. A privacidade nas redes sociais virtuais e a cultura do cancelamento. Revista Fórum de Direito Civil – RFDC, Belo Horizonte, ano 10, n. 26, p. 177-196, jan./abr. 2021.
6. Nesse sentido ver: BBC NEWS BRASIL. BBB21: Se um negro erra, racismo condena população negra inteira sem 2ª chance, diz pesquisadora. 2021. Disponível em: https://bbc.in/2WwlVGc. Acesso em 17 de agosto de 2021.
7. FREITAS, Riva Sobrado de; CASTRO, Matheus Felipe de. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio: um exame sobre as possíveis limitações à liberdade de expressão. Revista Seqüência. Florianópolis, UFSC, v. 34, nº 66, p. 327-355, 2013.
8. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Habeas Corpus 82.424-2/RS. Paciente: Siegfried Ellwanger. Impetrante: Werner Cantalício João Becker. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Moreira Alves. Diário de Justiça, Brasília, DF, 2003.
9. Para maior aprofundamento, Nelson Rosenvald destaca os fundamentos da decisão: ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
10. Nesse sentido ver: TEFFÉ, Chiara Spadaccini de; DE MORAES, Maria Celina Bodin. Redes sociais virtuais: privacidade e responsabilidade civil. Análise a partir do Marco Civil da Internet. Pensar-Revista de Ciências Jurídicas, v. 22, n. 1, p. 108-146, 2017.
11. Nesse sentido ver: LONGHI, João Victor Rozatti. Os perfis falsos em redes sociais e a responsabilidade civil dos provedores de aplicação. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI Rozatti, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de Dados na Sociedade da Informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco, p. 175-190, 2021.
12. SIMEÃO, Larissa Queiroz; DIAS, Clara Angélica Gonçalves Cavalcanti. Responsabilidade civil digital: a sociedade da informação e os limites da liberdade de expressão no âmbito das redes sociais. Humanidades & Inovação, v. 7, n. 19, p. 245-257, 2020.