Tratar dados não é atividade exclusivamente privada. Muito pelo contrário: governos já se utilizaram da coleta de dados a mais de quatro mil anos atrás. Ao trazer um histórico dos censos o IBGE lembra que estes guardavam relação com a época, como o realizado pelo Imperador Servio Tulio em 578-574 a.C. para fins de recrutamento para o exército, para o exercício dos direitos políticos e para o pagamento de impostos,1 e nos tempos presentes a criação do próprio instituto brasileiro para dar subsídios as projeções e estimativas populacionais.2
Mas não só de censos vive o governo. Em um conceito amplo, muitas atividades ligadas a segurança pública, do Estado e fins de persecução penal podem vir a se encaixar no tema. A Lei Geral de Proteção de Dados não deixou de apontá-los. Ela separa alguns eixos para fora de sua aplicação, conforme elencados no art.4º, III, mas não os exime de responderem às demandas da Autoridade Nacional de Proteção de Dados, cabendo a esta emitir opiniões técnicas ou recomendações, bem como o dever de solicitar aos responsáveis relatórios de impacto a proteção de dados pessoais, conforme art.4º, §3º. Cite-se ainda o disposto no art.4º, §1º que obriga àqueles que tratarão dados, com base nessas exceções, observar o devido processo legal e os princípios gerais de proteção e os direitos do titular na LGPD, respectivamente arts.6º, 17 e 18.
Há, contudo, hipóteses em que o tratamento de dados por pessoas jurídicas de direito público será regido diretamente pela Lei 13.709/2018, como no caso do art.7º, III. Dispõe o artigo que a administração pública irá tratar e compartilhar os “dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres, observadas as disposições do Capítulo IV desta Lei”. Esse capítulo, compreendendo do art.23 ao 32, estabelece as balizas para o tratamento de dados pelo poder público.
De início se percebe o caráter subjetivo quanto ao tratamento de dados pessoais, conforme disposto no art.23, caput, ou seja, há um amplo destaque aos agentes de tratamento, remetendo ao art.1º da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Essa opção legislativa é alvo de críticas, pois a maior relação entre sujeitos de direito público e privado amplia as possibilidades de aplicação a casos não necessariamente previstos na Lei.3
Um ponto que se soma a essa incerteza seria a repetição dos termos, ao longo do Capítulo IV, “interesse público”, “serviço público”, “poder público”, “políticas públicas” e “atividade pública”. Uns propositalmente amplos e outros indeterminados, o que por si só leva a uma abstração não benéfica aos titulares. Mas, como lembra Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público “só se justifica na medida em que se constitui vínculo de realização dos interesses das partes que o integram no presente e das que integrarão no futuro”,4 –5 de forma que Estados e pessoa jurídicas de direito público
são apenas depositários de um interesse que, na verdade, conforme dantes se averbou, é o “resultante do conjunto de interesses que os indivíduos têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade”, permite admitir que na pessoa estatal podem se encarnar, também interesses que não possuem feição indicada como própria dos interesses públicos.6
Observa-se que é possível, mas não quisto, que interesses do Estado tentem se utilizar da vestimenta do público. Essa possibilidade deve ser de pronto rechaçada, colocando o poder público adstrito a suas funções constitucionais.
Uma possível baliza é a repetição dos termos “finalidade” e “fim”, remetendo ao princípio da finalidade. Por estar dentro do âmbito da LGPD de início parece desnecessária essa repetição, uma vez que os princípios dispostos no art.6º não são endereçados apenas ao tratamento feito por agentes privados, mas ser prolixo, justamente na parte do poder público, talvez tenha suas razões. Ao enxertar expressamente o respeito aos princípios, em especial a finalidade, o legislador deixou nítido que o poder público não possui prerrogativa em afastar os fundamentos e a base valorativa da Lei. Aqui tanto interesses privados como públicos devem respeitar um espaço comum. A aplicação da LGPD, exatamente por ser “geral”, impacta grandes e pequenas pessoas jurídicas, tanto de direito público como privado.
O princípio da finalidade é definido no art.6º, I como “realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades”. É certo que a administração pública não poderá, frente a execução de políticas públicas previstas nos contratos, leis e congêneres a ela direcionados, depender sempre do consentimento dos inúmeros titulares, mas terá que se atentar que uma vez explicitada a finalidade o dado a ela será vinculado. Com base no fim destinado, guardando devidas proporções quanto ao poder público, estrutura-se “um critério para valorar a razoabilidade da utilização de determinados dados para uma certa finalidade (fora do qual haveria abusividade)”,7 que sob o ponto de vista do princípio da legalidade direcionada aos entes administrativos, é essencial. Assim “finalidades não devem ser subentendidas, mas explicitadas pelo agente de tratamento de dados”.8
São esses alguns apontamentos iniciais para compreender melhor o tratamento de dados pelo poder público, não excluindo os demais princípios elencados na Constituição para a administração pública.9
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Referências
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1. IBGE. Histórico dos Censos. Memória IBGE. Disponível em: https://bit.ly/2XgOpUE. Acesso em: 12 out. 2021
2. IBGE. Histórico dos Censos. Memória IBGE. Disponível em: https://bit.ly/2XgOpUE. Acesso em: 12 out. 2021
3. Para uma análise pormenorizada das imprecisões e falhas presentes no Capítulo destinado ao tratamento de dados pelo poder público confira-se: FURLAN DI BIASE, N.; FORTES AGUILERA, D. . Dificuldades interpretativas no regime de tratamento de dados pelo poder público: : lacunas, contradições e atecnias da LGPD. REVISTA ELETRÔNICA DA PGE-RJ, [S. l.], v. 4, n. 2, 2021. DOI: 10.46818/pge.v4i2.238. Disponível em: http://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/238. Acesso em: 12 out. 2021.
4. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.62.
5. Confira-se MULHOLLAND, Caitlin; MATERA, Vinícius. O tratamento de dados pessoais pelo poder público. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.) a LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020. p. 221-224.
6. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p.62.
7. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.182.
8. SOUZA, Carlos Affonso; MAGRANI, Eduardo; CARNEIRO, Giovana. Lei Geral de Proteção de Dados: uma transformação na tutela dos dados pessoais. In: MULHOLLAND, Caitlin (Org.) a LGPD e o novo marco normativo no Brasil. Porto Alegre: Arquipélago, 2020. p. 54.
9. Dispõe a Constituição Federal em seu art. 37, caput que a “administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”, bem como seus incisos.