Olá caro leitor, iremos inaugurar a nossa coluna com uma pequena conversa sobre o cotidiano e alguns problemas enfrentados pela maioria dos brasileiros. A pandemia – em diversos pontos não tratada pelos brasileiros – culminou com um agravamento da já existente crise econômica brasileira. 1 O “dragão” da inflação volta a nos assustar, uma subida de preços no mercado atrelada ao mal desempenho da nossa moeda no cenário internacional, instabilidade política, falta de infraestrutura, regulamentação excessiva, e posição do país frente a temas sensíveis para a comunidade internacional. Tudo isso expõe algumas fragilidades históricas que deturpam os sistemas de proteção jurídica e a incapacidade de ações por parte do Estado e do Setor Privado.
Mas você, leitor informado que é, irá pensar agora que “a inflação e a crise econômica é um problema hoje global, e não somente nosso”. De fato, essa informação está correta, contudo, isso não explica por que em certos setores essenciais o problema se agrava tanto quando analisamos a atual conjuntura brasileira.
Antes de adentrar no problema em si, preciso construir com vocês a evolução dos sistemas jurídicos, tendo em mente que o papel do direito é de explicar e definir certos comportamentos sociais (fatos), protegendo valores (valor) por meio das normas (normas), mas dentro de um objetivo definido pelo ordenamento jurídico.2
Poderíamos regredir aos primórdios da civilização humana, e questionar a valorização do trabalho artístico ao longo do tempo, questionando quem foi – ou que foram – o(s) arquiteto(s) responsável(is) pelo projeto das Pirâmides de Gizé, nos arredores de Cairo, e do projeto da Pirâmide do Louvre, em Paris. A questão por trás da resposta é “por que somente conhecemos a resposta para uma delas?”. O fato se relaciona com a valorização dos trabalhos técnicos terem se desenvolvido somente recentemente (em padrões históricos), ao contrário da valorização da propriedade, afinal, sabemos os nomes dos imperadores, donos das terras do Egito Antigo.
Somente em meados do Medievo é que as sociedades passam a valorizar a técnica e não somente a propriedade, concedendo certos privilégios de exploração de conhecimentos de forma exclusiva, aos inventores e artesãos mais próximos dos reis (lógico, que como uma concessão real, eles deviam royalties aos seus soberanos em troca dessa exclusividade). Essa exclusividade – dada a poucos – foi tornada acessível após as revoluções burguesas pelo sistema jurídico de proteção as patentes, mas com o objetivo de promover o desenvolvimento tecnológico da sociedade.
Mas não é necessário fazer essa regressão em detalhes, que nos levaria a uma série de artigos só com tal finalidade aqui nesta coluna, pois uma das maravilhas do sistema jurídico brasileiro já nos permite definir essa finalidade em consonância com o previsto no Artigo 3º da nossa Constituição Federal de 1988.3 Falamos da Exposição de Motivos que a nossa Lei de Propriedade Industrial apresenta.4
Na linha das ações preconizadas para implementar a Política Industrial e de Comércio Exterior, recentemente aprovada por Vossa Excelência, uma das tarefas que se impõem ao Estado e a de criar ambiente favorável aos investimentos, com estabelecimento de regras claras e estáveis para o exercício da atividade econômica e o funcionamento do mercado. […] 10. O anteprojeto incorpora diversas medidas de salvaguardas, permitindo o exercício dos direitos conferidos pela patente de forma compatível com o interesse público. Assim, a contrapartida da proteção assegurada pelo Estado ao inventor consiste no dever deste de explorar economicamente o objeto da patente, de forma a permear na estrutura social, em benefício da coletividade, ou efeitos da exploração. Admite-se, em consequência, a concessão de licenças compulsórias nas situações em que o objeto da patente não esteja sendo afetivamente explorado e nos casos de interesse público e de emergência. 11. Introduz-se a concessão da licença compulsória, como penalidade, quando configurada a prática de infração contra a ordem econômica. Neste caso, a licença terá como objetivo principal inibir a imposição, pelo titular, de condições restritivas nos contratos de licenciamento. Nos casos em que a licença compulsória não tenha sido suficiente para coibir o abuso do direito ao isso exclusivo conferido ao titular, prevê-se a caducidade, como uma das formas de extinção da patente cujo objeto, em consequência, cairá em domínio público. Ressalta-se, todavia que as licenças compulsórias não são concedidas em caráter exclusivo e que o titular da patente não será obrigado a licenciar a exploração de seu objeto de comprovar ter dado início à exploração ou, então tanto, realizado sérios preparativos ou, ainda, justificar a não exploração pela existência de óbice legal. (grifo nosso)
Há aqui alguns pontos interessantes que respondem algumas controvérsias que se instalam na doutrina atual, como por exemplo se as patentes são uma exceção ao antitruste, e a resposta é não, afinal, o seu exercício está atrelado ao bom funcionamento do mercado, à plena disponibilidade do objeto da patente à sociedade, havendo demanda, e ao não abuso dos direitos conferidos.
Então o nosso sistema jurídico prevê remédios – licença compulsória – nos artigos 68 ao 74 da Lei de Propriedade Industrial5 para casos onde há:
a) alguma emergência nacional6 ou interesse público, pela nova redação de 2021, podendo ser declarada tanto por iniciativa do Executivo Federal quanto do Legislativo, por iniciativa do Congresso Nacional;
b) emergência humanitária,7 sendo uma previsão nova, dada pela nova redação de 2021, caso específico voltado ao setor farmacológico, para atendimento de demanda de ajuda humanitária a países hipossuficientes neste setor;
c) abuso de poder econômico ou de direitos patentários,8 sendo de iniciativa do setor privado, quando algum agente econômico propuser alguma condição contratual ao titular e entender que este exerce de forma abusiva o seu direito de patente ou seu poder econômico, ele poderá requerer a licença compulsória, juntando a documentação que comprove os fatos abusivos.
d) Falta de exploração, ou exploração insuficiente,9 onde caberá a ação ao agente privado que pretenda explorar a patente de forma suficiente ou a suprir a demanda não atendida pelo titular, cabendo ao titular provar a exploração suficiente.
Pois bem, sabendo dessa conjuntura legal, do objetivo de desenvolvimento e da obrigatoriedade da plena exploração do objeto da patente tendo que respeitar as regras de mercado, podemos retomar a análise que propusemos no início deste texto. Por que em setores essenciais (como o de medicamentos), que não sofreram as restrições da pandemia, e que são regulados numa tentativa do Estado de conter impulsos de ajustes abusivos nos preços, na vida prática percebemos elevações tão superiores aos índices oficiais?
Vamos pegar um exemplo específico para nos guiar, e para evitar danos a imagens das pessoas jurídicas envolvidas na cadeia, não traremos os nomes da pesquisa que realizamos (afinal, nosso objetivo aqui é de ilustrar um problema e não de atacar empresas), traremos apenas os preços reais, praticados na Grande São Paulo-SP.
Pois bem, durante a pandemia, por algumas vezes pesquisamos o preço final ao consumidor do medicamento X, objeto de patente de uma empresa EX. Como a empresa é a única a explorar o composto farmacológico em território nacional, ela pode estabelecer o preço que julgue razoável para conseguir. Esse composto não trata o sistema respiratório, nem foi um dos alvos das fakenews propagadas durante a pandemia que insinuavam uma eficácia contra o vírus de algum medicamento, seja pra tratamento da COVID-19, seja como medica profilática. O medicamento em 2019 custava numa rede de fármacos A o preço de R$ 89,00 (oitenta e nove reais), na rede B custava R$ 100,99 (cem reais e noventa e nove centavos) e na rede C não havia disponibilidade do medicamento no momento da pesquisa. Em 2020 o fármaco X custava na rede A R$ 99,00 (noventa e nove reais), na rede B R$ 100,00 (cem reais e noventa e nove centavos) e na rede C R$ 120,00 (cento e vinte reais), em 2021, antes do reajuste oficial do preço dos medicamentos regulamentado em lei, o mesmo composto X está custando R$ 120,00 (cento e vinte reais) na rede A, R$ 121,99 (cento e vinte e um reais e noventa e nove centavos na rede B e R$ 132,00 (cento e trinta e dois reais) na rede C.
Bem, não houve qualquer alteração em termos de direitos de patente relativas ao medicamento X em questão, também não houve entre as pesquisas 2 e 3 nenhuma alteração significativa na variação do dólar (entre a pesquisa 2 e a pesquisa 3 há uma variação de 0,03 centavos, sendo a variação em ambas as datas menor que 0,10 centavos do pico máximo no período de 12 meses. O que explicaria então os sucessivos aumentos nos medicamentos? Inflação? Mas o setor de medicamentos, principalmente relacionado ao ajuste de preços é um setor regulado por lei, onde se prevê um ajuste anual estabelecido por um teto, pelo estabelecido na Lei 10.742 e regulamentado pelo Decreto 4.937.
Sendo a oferta estática – ou controlada por um único agente econômico – nos resta pensar na demanda. Durante o início do período de pandemia, com o cancelamento das consultas e cirurgias eletivas, a demanda se manteve dentro de um patamar estável, mas com a retomada dessas consultas e cirurgias represadas, nos últimos 7 meses, houve um aumento na demanda por medicações, uma vez que mais pessoas passar a ser diagnosticadas e iniciam um tratamento.
Claro que entendemos que afirmar concretamente que há abuso se poder econômico ou diminuição deliberada da produção diminuindo a oferta necessita de outros dados e comprovações e de forma algum é nosso intuito aqui. O que pretendemos é apontar um problema mais grave, algo mais estrutural. Vejamos, se alguém produz um produto X e está tendo cada vez mais lucro com esse produto, e não atendendo a todos no mercado, entende-se que, em uma economia de mercado saudável, os demais agentes econômicos do setor acabariam entrando no setor para suprir essa demanda, mas isso não pode ocorrer quando envolve-se uma patente, certo? Errado.
A remédio para o mercado doente é a licença compulsória, contudo, nas hipóteses levantadas, haveria de se ter a iniciativa dos agentes econômicos interessados em produzir e explorar a tecnologia protegida, os concorrentes. Onde estão esses agentes? Mas por que então não temos mais concorrência nesse mercado? Não existem empresas capazes de produzir medicamentos no Brasil?
Notem, caros leitores, que falamos de mercados essenciais, que não terão diminuição drástica na demanda por seus produtos, no máximo uma troca de produto dentro da mesma indústria nos casos em que há uma inovação disruptiva (o que, para a alegria da indústria, não ocorrem tantas vezes), e onde a necessidade de exploração do produto e da suficiente cobertura e distribuição nacional é gritante, uma vez que lidamos com os diversos fatores que envolver acesso a saúde, manutenção da vida, dignidade da vida e integridade física. Falamos de, por exemplo, o acesso que irá permitir que alguém permaneça com sua visão ou fique cego para o resto da vida.
Agora, troquemos os medicamentos por qualquer outro produto de base tecnológica, a situação piora cada vez mais. Temos uma exploração suficiente das tecnologias patenteadas? Será que os custos dos produtos são realmente impossíveis de diminuírem? Ou será que não há demanda em um país com dimensões continentais como o nosso e com um abismo em termos de acesso a tecnologias tão grande? Essas questões são direcionadas para nossa indústria, (e entusiastas que pretendem se aventurar no desenvolvimento tecnológico) e nos fazem questionar o por que de termos mercados tão concentrados em setores tecnológicos, e por que, em áreas tão lucrativas, não temos mais indústrias surgindo, novas tecnologias sendo desenvolvidas dentro do nosso país.
Convido os leitores ao diálogo, interajam com nossas redes sociais sobre o tema, e sobre o grande problema que proponho aqui hoje: “como, em termos de desenvolvimento de novas tecnologias, podemos ter uma indústria nacional mais competitiva?” @magisportal @thomaskefas
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Referências
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1. Para entender um pouco mais profundamente os problemas que iniciaram o processo de crise no Brasil vide: PINHEIRO, Cristiane de Figueiredo. O controle da despesa pública em ciclos econômicos recessivos com instrumento de promoção do desenvolvimento. 2015. 263f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2015. Disponível em: https://bit.ly/3HQtxFD. Acesso em: 01 jan. 2021.
2. Caro leitor, caso você conheça já o sistema de proteção às patentes, seu objetivo dentro do Direito & Desenvolvimento, a exposição de motivos da nossa Lei de Propriedade Industrial e o sistema de licença compulsória, sugiro que pule os próximos 5 parágrafos, pois sei que esse texto parecerá repetitivo para você.
3. Vide BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Palácio do Planalto. 1988. “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
4. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996 – Exposição de Motivos. Brasília: Câmara dos Deputados. 1996.
5. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Brasília: Palácio do Planalto. 1996.
6. Vide Art. 71 da LPI. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Brasília: Palácio do Planalto. 1996.
7. Vide Art. 71-A da LPI. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Brasília: Palácio do Planalto. 1996.
8. Vide Art. 73, §2º da LPI. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Brasília: Palácio do Planalto. 1996.
9. Vide Art. 73, §3º da LPI. BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Brasília: Palácio do Planalto. 1996.