O pensamento crítico contemporâneo alcançou a compreensão de que a efetiva justiça se ambienta em um contexto bidimensional: não apenas a redistribuição de recursos materiais se mostra importante, mas também as chamadas demandas de reconhecimento, relacionadas às pautas identitárias, são relevantes e compõem a compreensão de justiça e dignidade.1
De fato, é cada vez mais forte na sociedade a compreensão de que ações afirmativas promovem inclusão, visibilidade e o combate à violência contra minorias. Representatividade importa: é preciso que os espaços de poder e destaque sejam ocupados por todas e todos. Mulheres, negros, população LGBT, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e todos os grupamentos historicamente excluídos dos centros de decisão precisam estar efetivamente inseridos nos postos estratégicos da estrutura social.
No debate público, essa discussão tem contornos bem definidos. Tomemos por exemplo o contexto eleitoral e a questão da representatividade feminina. Se mulheres são a maioria da população brasileira, o que justifica sua baixa representatividade nos cargos eletivos do país? Mesmo tendo aumentado sua participação no Congresso Nacional, as parlamentares ocupam apenas 15% dos assentos da Câmara de Deputados, e essa disparidade de gênero não é uma exclusividade do Legislativo da União. Nas Câmaras Municipais de todo o Brasil, as vereadoras mulheres ocupam apenas 16% das vagas parlamentares. Nos outros poderes o mesmo ocorre: nas prefeituras, apenas 12% dos comandos dos Executivos municipais estão na mão de prefeitas mulheres. De norte a sul, essa distorção vem colocando em evidência a discussão sobre a necessidade de eleger mais mulheres para os cargos eletivos. Não é preciso apenas ter candidaturas femininas, é preciso que a cultura de valorização do debate de gênero resulte na efetiva eleição de mulheres para os cargos de representação popular. Esse assunto tem ganhado cada vez mais relevância.
Já no contexto privado, esse é um tema que precisa ser mais discutido e aprofundado. Afinal, também as empresas e demais entidades do setor privado precisam despertar para a relevância das demandas de reconhecimento. Tanto na composição dos quadros gerenciais como no recrutamento dos trabalhadores em geral, é preciso que a diversidade seja levada em conta. É preciso que a pluralidade de formas de existir presente na sociedade seja reproduzida nos quadros funcionais das entidades, pois do contrário a segregação se perpetua. Não é aceitável que uma mulher tenha menos chances de ocupar vagas no mercado de trabalho em comparação aos homens. Não é aceitável que em um hospital todos os médicos sejam pessoas brancas de classe média, enquanto os negros ocupem apenas espaços laborais associadas a demandas de serviços gerais.
É importante frisar que não há qualquer demérito nas atividades de qualquer posto ocupacional, todo trabalho é digno, mas quando apenas a classe média branca ocupa cargos que demandam formação e qualificação, isso é reflexo de uma série de barreiras sociais que impedem a população periférica de fazer suas próprias escolhas e trilhar os próprios caminhos segundo seus interesses e aspirações. Todo trabalho é digno, mas a possibilidade de efetivamente escolher qual caminho seguir é um elemento que também integra a dignidade.
Assim, levar em conta as demandas de reconhecimento no universo das entidades privadas é algo que precisa ser discutido. E muitas empresas vêm acordando para essa realidade, tanto no recrutamento de trabalhadores como no planejamento dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo.
É claro que o interesse lucrativo muito comumente é o grande fator motivador desse aceno a determinados grupos de consumidores – por exemplo, muitas empresas buscam adequar sua linguagem publicitária para dialogar com a comunidade LGBT, em busca do chamado “pink money”, já que as estatísticas de consumo sugerem que esse grupamento tem um perfil de consumo bastante robusto. Mas independente das finalidades lucrativas, é importante que se crie uma cultura de valorização das demandas de reconhecimento nas entidades privadas.
Os tempos mudam, a criticidade da sociedade por vezes parece aumentar, e observar essas questões passa a ser imperioso para o universo privado. É importante, contudo, que essa mudança de cultura traduza um efetivo avanço nas pautas, e não apenas uma busca esvaziada pelo padrão do “politicamente correto”. Não basta parecer politicamente correto, é preciso efetivamente sê-lo.
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Hermano Victor Faustino Câmara
Referências
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1. FRASER, Nancy. Redistribution or recognition – a political-philosophical exchange.Londres: Verso, 2003.