Renegociação dos contratos: dever legal ou obrigação contratual?

Renegociação dos contratos: dever legal ou obrigação contratual?

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Ao entabularem um contrato as partes procuram fixar seus direitos e obrigações contratuais de forma equilibrada a partir da situação atual de cada uma. Além disso, um bom instrumento contratual sempre busca fazer a gestão dos riscos que podem atingir a operação futuramente, prevendo a forma como os contratantes deverão agir caso algum dos riscos previstos se implemente.

Assim, a realização de um contrato e a sua manutenção de forma benéfica envolve a análise da situação das partes no presente e no futuro de acordo com fatos previsíveis. Ocorre que, conforme a célebre obra do sociólogo alemão Ulrich Beck “Sociedade de Risco: Rumo a uma Outra Modernidade”, a sociedade vive em uma realidade permeada de riscos, em razão do desenvolvimento frenético de novas tecnologias e da imparável degradação ambiental.

Tais riscos, aos quais todos estão submetidos, produzem efeitos em uma escala global e não conseguem ser contidos pelas instituições governamentais. Diante desse contexto percebe-se também que é impossível que os instrumentos contratuais consigam prever todos os riscos a que a execução do seu objeto está submetida, pois muitas situações ultrapassam, inclusive, a imaginação humana. Assim, a gestão de riscos contratuais usual é ineficaz para resolver eventual quebra da base objetiva dos contratos causada por essas situações imprevisíveis.

Um exemplo contemporâneo de um risco concreto e imprevisível para a maior parte das pessoas é a pandemia causada pela COVID-19, fato que gerou desequilíbrio em uma infinidade de contratos, sejam eles de prestação de serviços, comerciais, empreitada e etc. Dificilmente um contrato anterior a março de 2020 continha cláusulas prevendo como as partes deveriam agir caso ocorresse o desequilíbrio contratual em razão de uma pandemia. Por tal motivo, diversos contratantes enfrentaram altos prejuízos, inclusive algumas empresas não conseguiram sobreviver diante de obrigações contratuais inadimplíveis e pessoas físicas alcançaram o superendividamento.

Tendo em vista o beco sem saída no qual muitos contratantes se encontraram no contexto da pandemia, começou-se a discutir cada vez mais a questão da renegociação dos contratos: essa prática é um dever legal imposto às partes da relação contratual? Como e quando a renegociação deve ocorrer?

Inicialmente, cumpre esclarecer que a classificação do dever de renegociar como uma obrigação legal é uma questão que vem sendo muito discutida pelos juristas brasileiros. É possível inferir que o dever de renegociação decorre das leis contratuais diante da análise dos deveres anexos derivados do princípio da boa-fé objetiva, positivado no artigo 422 do Código Civil de 2002[1], especialmente o dever de cooperação entre as partes. Nesse sentido pontua o artigo “O covid 19 e a imprescindível tutela jurídica à renegociação dos contratos no direito brasileiro”: “Em observância ao dever de cooperação, (a) a parte onerada deve avisar prontamente a outra parte acerca da onerosidade que compromete o adimplemento e (b) a parte favorecida deve aquiescer em ingressar em renegociação para obter o reequilíbrio do ajuste e, com isso, o atingimento da finalidade originariamente idealizada para tal contrato.”[2]

Entretanto, apesar do princípio da boa-fé objetiva ser uma das principais normas que guiam o direito contratual brasileiro, ainda assim, não se pode afirmar com toda a certeza que o ordenamento jurídico nacional impõe às partes o dever se renegociar quando ocorrer eventual desequilíbrio fático, pois não há expressa previsão legislativa nesse sentido, diferentemente do que ocorre em outras ordens jurídicas, como nos Princípios de Direito Contratual Europeu[3], os quais preveem expressamente o dever das partes de tentarem realizar a renegociação do contrato diante de situações de desequilíbrio.

Porém, a ausência de previsão legal expressa impondo esse dever não impede que as partes prevejam a renegociação como um dever contratual. A inserção de cláusulas de renegociação nos contratos é medida de gestão de riscos extremamente aconselhável, e até mesmo necessária, nos contratos atualmente, tendo em vista que possibilita a manutenção dos negócios jurídicos sem que seja necessária a intervenção do poder judiciário para tanto.

Assim, podem ser inseridas nos contratos as chamadas cláusulas de “Hardship”/ Dificuldade, pelas quais as partes, no exercício da boa-fé, estabelecem que, em situações de desequilíbrio, elas irão tentar a renegociação do contrato. Estas cláusulas podem prever alguns requisitos para que surja o dever de renegociação, como a imediata comunicação à parte adversa do desequilíbrio sofrido pela parte que está sofrendo o prejuízo; desequilíbrio posterior e ausência de débitos no momento da renegociação.

Além disso, é importante esclarecer que o dever contratual de renegociar deve ser exercido em conformidade com o princípio da boa-fé objetiva, ou seja, ambas as partes devem empreender esforços verdadeiros para se alcançar uma resolução benéfica para a quebra das bases objetivas do contrato. A ausência de comprometimento na realização das novas negociações poderá importar em descumprimento contratual.

Por fim, cumpre ressaltar que a renegociação é uma obrigação de meio, e não de fim. Ou seja, a existência de um dever contratual de renegociar não significa que as partes estejam obrigadas a alcançar novos termos para o contrato, mas importa na real tentativa de diminuir o desequilíbrio, sendo que, ao final, pode ser que o objetivo não seja alcançado.

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Ana Tereza Costa Rocha

 

Referências

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1.  “Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” BRASIL, Código Civil. Lei 10.406/2002. Disponível em: https://bit.ly/3ArY1L4. Acesso em: 17 de set. de 2021.

2. RAPOSO, Antonio Pedro; BARTOLO, Luiza Perreli. O covid 19 e a imprescindível tutela jurídica à renegociação dos contratos no direito brasileiro. Migalhas. 2020. Disponível em: https://bit.ly/2Z5IeDD. Acesso em: 17 de set. de 2021.

3. “If, however, performance of the contract becomes excessively onerous because of a change of circumstances, the parties are bound to enter into negotiations with a view to adapting the contract or terminating it, provided that: (a)the change of circumstances occurred after the time of conclusion of the contract, (b)the possibility of a change of circumstances was not one which could reasonably have been taken into account at the time of conclusion of the contract, and (c)the risk of the change of circumstances is not one which, according to the contract, the party affected should be required to bear.” Principles of European Contract Law – PECL. Disponível em: https://bit.ly/3zl2VYD. Acesso em: 17 de set. de 2021.

 

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