Right to repair: desdobramentos no Brasil

Right to repair: desdobramentos no Brasil

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Recentemente a União Europeia retomou as discussões a respeito do “right to repair”, em tradução livre “direito de reparar”. Em síntese, tem-se como proposta a atualização das regras de consumo da União Europeia, de maneira a empoderar o consumidor com mais informações a respeito dos produtos, por meio da criação de um direito de informação quanto a vida útil dos produtos (quanto tempos os produtos foram projetados para durar) e de quais maneiras (se for caso) eles podem ser reparados.1

Segundo a Vice Presidente da Comissão de Valores e Transparência Věra Jourová, tal proposta auxilia os consumidores, que cada vez mais querem escolher os produtores que durem mais tempo e que possam ser reparados, portanto, o direito de reparar dá aos consumidores ferramentas fortes para que os mesmos não caiam em informações enganosas, de forma a fomentar uma economia sustentável.2

Ademais, em uma pesquisa realizada pela Directorate-General Communication, quase oito em cada dez entrevistados (79%) acham que o fabricante deveria ser obrigado a facilitar o reparo de dispositivos digitais ou substituir suas peças individuais (por exemplo, telas ou baterias) e um quarto dos entrevistados (25%) respondeu “Sim, mesmo no caso do dispositivo custar mais caro”.3

Nesse sentido, o presente artigo pretende inicialmente compreender o “right to repair”, identificando a origem desse movimento, seu conceito e seus objetivos. Para que ao final, seja possível identificar os desdobramentos desse movimento no Brasil.

O movimento do right to repair iniciou-se em 2017 por meio da ONG The Repair Association, que se estabeleceu em dezoito estados Norte-Americanos. Destaca-se que tal iniciativa teve como inspiração uma legislação de 2012, aprovada em Massachusetts, conhecida como “auto right to repair”, em tradução livre “direito de reparar automóveis”, que garantiu o direito ao conserto aos automóveis, permitindo que mecânicos independentes também tivessem acesso às peças oficiais do fabricante.4  Destaca-se que tal legislação ao longo do tempo mostrou-se benéfica aos consumidores sem impactar negativamente os fabricantes, de forma que os motoristas puderam aproveitar seus veículos por maior prazo e as fabricantes foram recompensadas com maior satisfação de seus clientes e o aumento da fidelidade à marca.5

Um dos pilares por trás da ideia do right to repair é a economia circular, que é um modelo de produção e consumo que envolve compartilhar, alugar, reutilizar, reparar, reformar e reciclar produtos pelo máximo de tempo possível, de maneira a estender ao máximo seu ciclo de vida.6  Tal modelo de produção na prática implica em uma severa redução de resíduos, haja vista que quando o produto chega ao fim de sua vida útil, seus materiais são mantidos circulando na economia sempre que possível, ou seja, mesmo após o fim do produto, o mesmo é utilizado de forma a continuar gerando valor.7  Em suma, a economia circular se afasta da economia linear (modelo tradicional), haja vista que se é desestimulado a produção desenfreada, tendo como objetivo não mais o consumo em si, mas sim um desenvolvimento econômico aliado ao melhor uso dos recursos naturais.

Deste modo, partindo dos fundamentos da economia circular, o right to repair pode ser melhor visualizado por meio da ideia de que se você comprou um produto, você deveria ser capaz de repará-lo ou levá-lo a um técnico de sua escolha (não somente a um técnico autorizado pelo fabricante).8

De acordo com The Repair Association9  os objetivos do right to repair são:

  • Garantir informação aos consumidores: por meio de manuais de serviço públicos, esquemas e diagramas de circuitos, permissão de atualizações de software10  pelos proprietários (e inclusive por distribuidores independentes), e contratos transparentes de licença de uso, para que se torne claro no momento da compra quais os elementos estão inclusos;
  • Disponibilizar peças e ferramentas: as peças e ferramentas para serviços de reparo de dispositivos, incluindo ferramentas de diagnóstico, devem ser disponibilizadas a terceiros, incluindo indivíduos por preços não discriminatórios;
  • Permitir desbloqueio: o desbloqueio deveria ser permitido, além da adaptação e modificação de qualquer parte do produto, incluindo o software;
  • Adequar Design: o design deveria auxiliar na reparação consoante as práticas de ecodesign.11

No Brasil, o movimento do  do right to repair vem se desdobrando por meio do Projeto de Lei nº 6151/2019, que traz em seu art. 2º a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônico disponibilizarem “[…]para o comércio os manuais de funcionamento e reparo dos equipamentos que fabrica ou importa, bem como peças de reposição para conserto por profissionais independentes e para consumidores.12  Tal obrigatoriedade recairia sobre todos os produtos comercializados no Brasil com menos de 10 anos de fabricação/importação, com o prazo máximo  de 30 dias para fornecimento de manuais e peças de reposição.

Além disso, o projeto de lei traz como sanções as penas dispostas no Código de Defesa do Consumidor – CDC (sem prejuízo de outras aplicáveis de acordo com a legislação em vigor), todavia, o projeto é genérico no tocante as tais penalidades, isto posto, torna-se possível vislumbrar a que seriam aplicáveis as sanções dispostas no art. 56 do CDC.

Dentre os argumentos de justificação do Projeto de Lei destaca-se a situação de produtos quebrados após o final da garantia, que não podem ser consertados por falta de peças ou de profissionais; o monopólio do fabricante sobre sua rede de serviço de assistência técnica sob a argumentação de qualidade no serviço, todavia, que acaba gerando altos preços para o conserto em tais assistências autorizadas, de modo a praticamente forçar o consumidor a comprar um produto novo.13

Ademais, o Projeto de Lei afirma que o right to repair irá proporcionar “[…]aos consumidores a liberdade de ter seus produtos eletrônicos e aparelhos consertados por ele mesmo ou por um prestador de serviços de sua escolha.”14  Deste modo, a ideia do projeto é “[…] é democratizar o conserto desses produtos possibilitando que seja realizado pelo próprio consumidor, por intermédio do fornecimento de manuais de funcionamento e manutenção, como também das peças de reposição.”15  Portanto, o projeto tem como mérito o empoderamento dos consumidores permitindo que o mesmo “[…] realize o conserto de seus aparelhos, e, ao mesmo tempo, incentive o empreendedorismo, uma vez que qualquer pessoa poderá adquirir os manuais e peças de reposição oferecendo seus serviços no mercado.”16

Caminhando para ao final da explanação, cabe mencionar que ideias semelhantes às defendidas pelo movimento do “direito de reparar” podem ser encontradas no CDC (que é de 1990, portanto, anterior ao movimento do right to repair), como é o caso do direito à educação e a divulgação sobre o consumo adequado de produtos e serviços, assegurando a liberdade de escolha (art. 6º, inc. II do CDC) e o direito à informação adequada e clara (art. 6º, inc. III do CDC).

Ademais, também cabe mencionar a obrigação do fornecedor na reposição de peças durante a vida útil do produto, que pode ser vislumbrada no art. 32 do CDC, com a seguinte redação:

Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.

Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei.17

Embora a leitura do dispositivo gere dúvidas acerca do significado da expressão “período razoável de tempo” (em razão de ser um conceito aberto), torna-se necessário a compreensão do artigo anterior em conjunto do art. 13, inc. XXI do CDC:

Art. 13. Serão consideradas, ainda, práticas infrativas, na forma dos dispositivos da Lei nº 8.078, de 1990:[…] XXI – deixar de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição, enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto, e, caso cessadas, de manter a oferta de componentes e peças de reposição por período razoável de tempo, nunca inferior à vida útil do produto ou serviço.

Nesse sentido, Tartuce e Neves18 lecionam que a obrigação do fornecedor em manter a reposição de peças deve ocorrer por período razoável de tempo, e quando cessado a produção deve-se manter tal obrigação por período não inferior a vida útil do produto/serviço.

Do exposto ao longo do artigo foi-se possível identificar desdobramentos do right to repair antes mesmo da existência do movimento no Brasil, isto pois, o Código de Defesa do Consumidor privilegia normas de proteção e defesa do consumidor desde sua criação (em 1990), portanto, a aprovação do Projeto de Lei nº 6151/2019 (que se trata do atual maior desdobramento do  right to repair no Brasil) aconteceria de forma a complementar princípios e dispositivos já consagrados no CDC, como é o caso, do art. 2º do projeto supracitado que traz a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônico disponibilizarem para o comércio os manuais de funcionamento e reparo dos equipamentos que fabricam ou importam, bem como peças de reposição para conserto por profissionais independentes e para consumidores, sendo que tal norma do projeto converge com a intenção do legislador nos dispositivos do CDC, a saber o art. 32 e 13 inc. XXI do CDC.

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Pedro Alberto Alves Maciel Filho

 

Referências

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1. EUROPEAN COMMISSION. Circular Economy: Commission proposes new consumer rights and a ban on greenwashing. Disponível em: https://bit.ly/3jcmi0B. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

2. EUROPEAN COMMISSION. Circular Economy: Commission proposes new consumer rights and a ban on greenwashing. Disponível em: https://bit.ly/3LEbPHk. Acesso em 5 de abr. de 2022.

3. EUROPEAN PARLIAMENT. Plenary Insights – April 2022.  Disponível em: https://bit.ly/3x6GKIl. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

4. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3uVVUgL. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

5. THE REPAIR ASSOCIATION. Stand-up. Disponível em: https://bit.ly/36ReaQF. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

6. EUROPEAN PARLIAMENT. Circular economy: definition, importance and benefits. Disponivel em: https://bit.ly/37kFztP. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

7. EUROPEAN PARLIAMENT. Circular economy: definition, importance and benefits. Disponivel em: https://bit.ly/3KqFF1G. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

8. KLOSOWSKI, Thorin. What You Should Know About Right to Repair. Disponível em: https://nyti.ms/3x85XCm. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

9. THE REPAIR ASSOCIATION. Policy. Disponível em: https://bit.ly/35I3Ycs. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

10. De maneira sucinta, software se trata de instruções (programas) para dispositivos eletrônicos, que o tornam funcionais. Tem-se como exemplos de softwares o Windows (sistema operacional de computadores), Android (sistema operacional de dispositivos móveis), Microsoft Office (conjunto de aplicativos voltados para escritório), etc.

11. O ecodesign são técnicas e estratégias que promovem o uso consciente dos recursos naturais (renováveis e não renováveis), por meio da elaboração de designs visam amenizar os impactos da exploração não consciente dos recursos naturais. Em síntese, o ecodesign leva em conta a economia e a ecologia no momento da criação/elaboração de um produto, a fim de que o mesmo possa ter uma longa vida útil, e mesmo após seu fim de “vida”, ter seus materiais reutilizados pelo máximo de tempo possível.

12. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3JcVYhr. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

13. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3NLS8iV. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

14. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3LHNRed. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

15. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3j7aPPE. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

16. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 6.151, de 26 de novembro de 2019. Dispõe sobre a obrigatoriedade dos fornecedores de produtos elétrico e eletrônicos a disponibilizar manuais e peças de reposição aos consumidores, e dá outras providências. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3NTt49q. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

17. BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: https://bit.ly/3NSbR08. Acesso em: 5 de abr. de 2022.

18. TARTUCE, Flávio. ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito do Consumidor Direito Material e Processual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017.

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