Ao observar o mundo pela história do trabalho denota-se uma modificação constante da concepção de sujeito, assim como uma mudança significativa na forma do homem se relacionar com o meio e dar sentido à própria existência. Os pesquisadores Borges e Yamamoto (2014) concluem que, atualmente, o trabalho é objeto de múltipla e ambígua atribuição de significados e sentidos pelo sujeito.
Para responder à pergunta “O que você é?” ou “O que você faz?” a maioria das pessoas recorre imediatamente ao nome de sua profissão, demonstrando a forte vinculação entre trabalho e identidade. Enquanto muitos não conseguiriam viver sem trabalhar, outros seriam capazes de passar tardes inteiras reclamando do próprio emprego. Para o bem ou para o mal, o ponto indiscutível nesta emenda é a importância do trabalho na contemporaneidade como ponto conformador da condição humana, seja por sua presença e qualidade ou por sua ausência e problemas.
Nesta seara, um tema que tem ganho notoriedade quando o assunto permeia o campo do trabalho é a Síndrome de Burnout. O termo Burnout é “definido, segundo um jargão inglês, como aquilo que deixou de funcionar por absoluta falta de energia”.1 Em uma tradução literal significa esgotamento; aquilo que foi queimado por inteiro. Por esse motivo, é comumente representado por um palito de fósforo queimado.
Atualmente, após a última atualização da CID – Classificação Internacional de Doenças n° 11 – a síndrome foi reclassificada como um “problema associado ao trabalho” de CID QD85, descrito como condição resultante de estresse crônico no local de trabalho que não foi gerenciado com sucesso, caracterizando-se pela constatação de esgotamento ou exaustão de energia, aumento da distância mental trabalho, com sentimentos de cinismo e negatividade, além de sensação de ineficácia ou falta de realização profissional.
Conforme alerta promovido pela própria CID, os sintomas constados devem se referir especificamente ao contexto ocupacional e não devem ser aplicados para descrever experiências em outras áreas da vida. Todavia, em estudo aprofundado da bibliografia sobre o tema, denota-se que atualmente existem diversas pesquisas que contam com definições sutilmente diferentes desta condição, principalmente quanto a sua abrangência, sintomas e forma de diagnóstico. Por exemplo, alguns autores defendem que o esgotamento mental pode se estender a outros âmbitos da vida, como o conjugal e familiar, promovendo um distanciamento/isolamento afetivo do sujeito.
Em razão desta e outras controvérsias sobre o seu diagnóstico, o Burnout ainda não foi categoricamente definido como uma doença, conforme informação oficial da Organização Mundial de Saúde,2 mas sim como um fenômeno ocupacional que carece de atenção e pesquisas para melhor qualificação. Todavia, a Síndrome de Burnout integra há bastante tempo o rol de doenças ocupacionais do Ministério do Trabalho emprego, inserida no Anexo II do Regulamento da Previdência Social e vem sendo utilizada amplamente em processos judiciais trabalhistas que suscitam a responsabilização do empregador por danos causados em decorrência das condições de trabalho.
Por se tratar de uma condição nova e que ainda está em fase de pesquisas, a sua verificação levanta diversos questionamentos, principalmente quanto a possibilidade de responsabilização do empregador. Isso ocorre, pois, o diagnóstico do Burnout, em razão de sua definição sociopsicológica, pode estar associado a diversos fatores exteriores ao laboral. Nesta emenda, é possível que existam dois indivíduos distintos, submetidos as mesmas condições de trabalho, mas apenas um desenvolver um quadro patológico.
Em revisão bibliográfica realizada por Trigos et all (2007) os autores demonstraram a existência de diversos fatores de risco associados à Síndrome, tanto no campo organizacional e laboral, como no âmbito individual (características de personalidade) e social. Como exemplo, podemos citar algumas características de risco, como padrão de personalidade competitiva, controladora, que tenha um alto grau de dedicação profissional, marcado pela autoexigência e perfeccionismo, ou também, a falta de apoio familiar e alto grau de expectativa social em relação a profissão.
O trabalho é o modo de ser do homem, e como tal permeia todos os níveis de sua atividade, seus afetos, sua consciência, o que permite que os sintomas se escondam em todos os lugares: quem garante que o chute no cachorro ao retornar para casa não se deve a razões de ordem profissional? (CODO, 2016. apud Jacques, 2017, pg.115)
Sendo assim, a apuração do nexo causal entre a doença e o emprego dever ser verificada por meio de perícia psicológica. No entanto, esse processo pode ser complexo em alguns casos em decorrência da forma de diagnóstico descrita. Á vista disso, dentro da psicologia existe um campo de estudo extenso a fim de desenvolver métodos e mecanismos para verificar a existência do nexo casual entre as doenças mentais em geral e o trabalho, com desenvolvimento de métricas e parâmetros fixos para apuração pericial. Porém, como alerta Jaques (2007):
A relação de causalidade, mesmo que multicausal, que fundamenta o estabelecimento do vínculo entre saúde/doença mental e trabalho, não dá conta das relações de determinação das manifestações humanas. Ainda, acaba por reduzir o conceito de saúde mental a ausência de transtornos psíquicos, deixando de levar em conta as diversas dimensões subjetivas da relação do homem com o seu trabalho.
Nesse contexto, pesquisadores chagaram a conclusão de que o nexo causal não pode ser simplesmente verificado com dados objetivos, mas sim pela forma como a subjetividade do indivíduo e contexto laboral se articulam. Sendo assim, de certa maneira, o empregador acaba sustentando um certo ônus sócio-histórico no caso concreto, mas que é justificado legislativamente pela concessão da exploração da mão de obra do trabalhador.
Não obstante todos os apontamentos, o ponto de maior relevância dessa verificação não deve ser a culpabilização do trabalhador no caso concreto, mas sim a possibilidade de reavaliação do contexto laboral que vem se desenvolvendo no cenário capitalista atual e as condições que esse contexto tem submetido o trabalhador.
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Referências
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Jacques, Maria da GraçaO nexo causal em saúde/doença mental no trabalho: uma demanda para a psicologia. Psicologia & Sociedade [online]. 2007, v. 19, n. spe [Acessado 23 Abril 2022] , pp. 112-119. Disponível em: https://bit.ly/3vbeov3. Epub 20 Set 2007. ISSN 1807-0310.
LIMA, Estevam Vaz de. Burnout: a doença que não existe. Revista eletrônica [do] Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, Curitiba, v. 7, n. 64, p. 30-44, dez. 2017/jan. 2018.
LIMA, Maria Elizabeth Antunes. A polêmica em torno do nexo causal entre distúrbio mental e trabalho. v. 10 n. 14 (2003): Psicologia em Revista. Disponível em: https://bit.ly/3xMkzHT. Acesso em: 24.04.2022
PERICO, Waldir; JUSTO, José Sterza. O mal estar no trabalho: a culpa como mal estar e a culpa do mal estar. Rev. Mal-Estar Subj., Fortaleza , v. 11, n. 1, p. 135-169, mar. 2011 . Disponível em https://bit.ly/3Mw6ORN. acesso em 24 abr. 2022.
Psicologia, organizações e trabalho no Brasil [recurso eletrônico] / Organizadores, José Carlos Zanelli, Jairo Eduardo Borges-Andrade, Antonio Virgílio Bittencourt Bastos. – 2. ed. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre : Artmed, 2014.
Trigo, Telma Ramos, Teng, Chei Tung e Hallak, Jaime Eduardo Cecílio. Síndrome de burnout ou estafa profissional e os transtornos psiquiátricos. Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo) [online]. 2007, v. 34, n. 5 [Acessado 23 Abril 2022] , pp. 223-233. Disponível em: https://bit.ly/3vac1ss. Epub 10 Dez 2007. ISSN 1806-938X.
1. Pesquisadora Telma Ramos Trigo (2007)
2. https://bit.ly/3k8K8uw