Em mais um capítulo do projeto da “Crypto Academy”, em nossa reunião do dia 12 de novembro de 2021, tivemos a palestra do nosso membro José Marcos Catarino1 que foi responsável por investigar os aspectos jurídicos dos smart contracts. Deste modo, com a intenção de disseminar o conhecimento que obtivemos com sua palestra, o presente texto se trata de uma síntese da reunião.
Os smart contracts, são, em síntese, acordos autoexecutáveis escritos em linguagem de programação. A base deste acordo vem da possibilidade de inserção de diversos tipos de cláusulas contratuais em hardwares e em softwares, que verificam a situação e as ações das partes contratantes e assim aplicam automaticamente medidas conforme o que foi estabelecido previamente no código do programa.
Segundo Szabo,2 uma máquina de vendas automática, é um humilde exemplo de um ancestral dos smart contracts. Isto, pois a máquina recolhe as moedas do comprador, as analisa e verifica se o valor é suficiente para comprar o produto desejado. Em sequência, dá ao comprador seu produto, e caso haja necessidade o seu troco. Ademais, a máquina de vendas protege as moedas adquiridas até elas serem recolhidas pelo mantenedor da máquina (vendedor). Assim, a máquina não é a vendedora, sendo apenas uma intermediária do acordo de compra e venda.
Em relação à segurança, não é necessário um sistema exageradamente complexo. Pois, a utilização de máquinas de venda permanecerá vantajosa enquanto os custos necessários para quebrar seus mecanismos de segurança forem maiores que os valores contidos em sua caixa registradora.
Avançando no contexto das criptomoedas, Szabo3 entende um smart contract como sendo um aplicativo executado de modo distribuído e minimizador de confiança em uma blockchain
Esmiuçando tal definição, um aplicativo descentralizado (DApp), é uma aplicação que possui código aberto, opera de forma autônoma e requer um token criptográfico para seu acesso, cujos dados e registros são armazenados criptograficamente em uma blockchain pública e descentralizada.
Por blockchain, compreende-se uma espécie de “livro-razão”, ou seja, um grande banco de dados, que contém o histórico de transações realizadas, sendo confirmadas por “mineradores”, que processam os blocos de transações criados, emprestando o processamento de seus computadores em troca de recompensas em criptomoedas.44
Ademais, questiona-se: o que significa ser minimizador de confiança? Entendendo que os smart contracts são auto executáveis, imutáveis e auto verificáveis, não há necessidade de monitoramento humano para seu aperfeiçoamento, uma vez que eles começam a ser executados, sendo persistentes e potencialmente imparáveis.5 Desse modo, a possibilidade de ocorrência de erros causados pela natural falibilidade humana tem potencial para chegar a níveis próximos a zero.
Apesar da promessa de redução de interferência humana, dois pontos discutíveis podem ser levantados.
O primeiro ponto se trata de uma hipótese descrita por Alex e Don Tapscott,6 em que Alice precisa completar um código rapidamente e faz uma postagem anônima solicitando um programador, que é vista por Bob. Então, os dois conversam e acordam que Alice pagará a Bob em bitcoins, metade imediatamente e metade após receber o código, testá-lo e aprová-lo. Após isso, este passa a chave pública de sua carteira para aquela e recebe a primeira parte do pagamento.
Se Alice gostar do código entregue por Bob, não haverá nenhuma discussão. Contudo, o que acontecerá se Bob desistir do projeto e ficar apenas com o primeiro pagamento? Para tristeza de Alice, as transações em bitcoin são irreversíveis. Além disso, a única identificação de Bob é o código de sua carteira, tornando este praticamente não rastreável. Do mesmo modo, o que acontece se Alice se recusar a pagar Bob por julgar, potencialmente de modo injustificado, o código apresentado como não satisfatório?
Pensando nisso, a solução dada pelos autores é o esquema de assinaturas M-de-N. Alice e Bob definem que o dinheiro ficará “guardado” em um endereço público que é apenas acessível quando usado um número M de chaves privadas — no caso, duas. Porém, são dadas um número N de chaves: uma para Alice, uma para Bob e uma para Carlos, um terceiro neutro e desinteressado. Agora, Carlos poderá agir como um árbitro, definindo, por exemplo, a qualidade do código entregue.
Em suma, foi possível observar que a confiança na execução do contrato ainda não é totalmente indispensável.
Deste modo, adentramos ao segundo ponto: a confiança anterior à formação do contrato. De forma inicial, é preciso ter em mente que, ao contrário do que se imagina, o universo online não é uma “terra sem lei”. Pelo contrário, existem regras baseadas em códigos, elas apenas são diferentes das tradicionais regras do direito. Tudo que é possível ou impossível de ser feito em uma plataforma digital depende da vontade de seus arquitetos, que criam regras que não se beneficiam da flexibilidade das regras jurídicas tradicionais visando incentivar determinadas ações e desestimular outras.7 Por exemplo, o anonimato é extremamente facilitado, como verificado no exemplo anterior de Alice e Bob. Ainda contrastando as regras digitais e as do direito, não parece exagero afirmar que, por mais que existam sim abusos do “juridiquês”, a linguagem dos advogados é muito mais facilmente entendida do que linguagens de programação. Se o número de “fluentes” em programação é inferior ao número de “fluentes” em direito, mais reduzido é o número de pessoas que as entendem as duas linguagens, e menor ainda o número daqueles capazes de entender smart contracts em sua totalidade.8
Diante disso, não deve ser entendida como absurda a afirmação de que a confiança foi minimizada, apenas redistribuída da manutenção do contrato e deslocada para a extremidade do início. Obviamente você precisa confiar no ordenamento jurídico e nas outras partes para estabelecer contratos tradicionais. Contudo, em termos históricos, os smart contracts ainda são recentes e consideravelmente mais complexos do que negócios jurídicos tradicionais. Com isso, é possível imaginar hipótese em que um notável estudioso sobre tais aplicações ainda possa deixar passar bugs. Conquanto, supõe-se que, apesar de os custos da complexa elaboração do contrato, quanto mais tempo as partes passem negociem o contrato, menos tempo elas passarão em sua manutenção. Com isso, os custos de monitoração e execução seriam reduzidos, potencialmente a zero, fazendo com que o smart contract não se torne inviável.9
Ao ler todas estas definições, uma pergunta que um novato no assunto pode fazer é “Esses contratos inteligentes realmente são contratos?”. Em relação ao campo jurídico, Carlos Roberto Gonçalves resume bem o conceito de contrato como um negócio jurídico bilateral ou plurilateral.10 A parte referente a bilateral/plurilateral não é difícil de definir: um indivíduo não pode fazer um contrato consigo mesmo, sendo necessárias duas ou mais pessoas para sua formação. Já a parte referente ao negócio jurídico precisa de um pouco mais de aprofundamento.
Percorrendo a tabela dos fatos jurídicos, um negócio jurídico é um fato jurídico em sentido amplo (por ser relevante ao campo do direito), fato humano (por decorrer de uma ação humana que cria, modifica, transfere ou extingue direitos) e lícito (por estar em conformidade com o ordenamento jurídico).11 Assim, podemos condensar um negócio jurídico como um conjunto de atos relacionados realizados com a declaração da vontade dos participantes, cujos efeitos são definidos pela própria declaração, de acordo com o permitido pelo ordenamento jurídico.12
Com o conceito de negócio jurídico definido, podemos agora abordar seus elementos constitutivos. Mais especificamente, os elementos que são indispensáveis para sua validade, sendo classificados como essenciais e abordados nos artigos 104 e 107.
Agente capaz, consentimento e objeto lícito e possível, são elementos essenciais gerais a todos os negócios jurídicos. Considerando a presunção declaração da vontade dos participantes, a capacidade dos agentes é necessária, sob pena de anulabilidade ou até mesmo nulidade do ato. Do mesmo modo, o consentimento pode ser expresso ou tácito, desde que não demande de forma expressa. Além disso, a necessidade de objeto lícito e possível torna nulos os negócios que tratam sobre compra e venda de entorpecentes ou de terrenos em Marte. Formas e solenidades são elementos particulares a alguns contratos, sendo exigidas apenas em casos previstos em lei.13
Assim sendo, quando em um negócio jurídico não são reunidas manifestações de vontade, objeto e forma, tal ato é inexistente, de modo a não produzir efeitos jurídicos. Superado o plano da existência, temos o da validade, que engloba a nulidade e a anulabilidade. Neste plano, os elementos são “filtrados”: quanto à manifestação de vontade, exige-se que venha de agente capaz; quanto ao objeto, exige-se que seja lícito e possível; quanto à forma, exige-se que seja prescrita ou não proibida em lei. Com um negócio jurídico existente e válido, resta o plano da eficácia: o negócio é definido como eficaz quando tem o poder de produzir os efeitos desejados pelos agentes.14
Partindo das definições feitas, resta agora comparar as características apresentadas. Os contratos inteligentes assemelham-se muito a contratos convencionais, podendo neles ser observados elementos constitutivos essenciais dos negócios jurídicos. Um smart contract pode ser elaborado por agentes capazes, com objeto lícito e possível e pode também não contrariar a lei quanto a forma e a manifestação e a do consentimento. No entanto, a arquitetura dos códigos e o anonimato, combinados com a auto excitabilidade de uma rede descentralizada, permitem que um smart contract produza efeitos mesmo sendo inexistente (falta de forma solene) ou inválido (incapacidade do agente ou objeto ilícito).
Como visto, nesses casos há pouco o que fazer, visto que o interesse das plataformas pode buscar modos de evitar que seja possível barrar a execução do aplicativo, além de promover o anonimato, o que mitiga possibilidades de soluções vindas do Direito. Destarte, devido às características únicas dos smart contracts, como a imperiosa influência das regras de programação, seria extremamente presunçoso, no momento presente, afirmar que estes realmente são ou não contratos.
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Pedro Alberto Alves Maciel Filho
José Marcos Catarino
Referências
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1. Estudante de Graduação em Direito do terceiro ano da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: josemarcos.catarino@uel.br
2. SZABO, Nick. Formalizing and Securing Relationships on Public Networks. First Monday, v. 2, n. 9, 1 set. 1997. Disponível em: https://bit.ly/3osfm2H. Acesso em: 14 out. 2021.
3. SZABO, Nick. Formalizing and Securing Relationships on Public Networks. First Monday, v. 2, n. 9, 1 set. 1997. Disponível em: https://bit.ly/3xWRZ4C. Acesso em: 14 out. 2021.
4. BENTENITIS, Nikos; GROSS, Ron; HASHEMI, Farzad; JOHNSTON, David; KANDAH, Jeremy; MASON, Steven; WILKINSON, Shawn; YILMAZ, Sam Onat;.The General Theory of Decentralized Applications – Dapps. 2014. Disponível em: https://bit.ly/3ImwJtH. Acesso em: 14 out. 2021.
5. BOLAÑOS, Juan F. Contratos Ricardianos vs. Contratos Inteligentes: Conoce sus diferencias. Medium: 2018 Disponível em: https://bit.ly/3Im9j7V. Acesso em: 11 nov. 2021.
6. TAPSCOTT, Alex; TAPSCOTT, Don. Blockchain Revolution: How the Technology Behind Bitcoin and Other Cryptocurrencies Is Changing the World. New York: Portfolio, 2016. p. 258.
7. FILIPPI Primavera de; HASSAN, Samer. The Expansion of Algorithmic Governance: From Code is Law to Law is Code. Field Actions Science Reports, Special Issue 17: 2017. 88-90. Disponível em: https://bit.ly/3ot8X7v. Acesso em: 1 nov. 2021.
8. AMMOUS, Saifedean. The Bitcoin Standard: The decentralized alternative to central banking. 1. Ed. New Jersey: Wiley, 2018.p. 258
9. TAPSCOTT, Alex; TAPSCOTT, Don. Winning Strategies for Smart Contracts. Blockchain Research Institute, 4 dec. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3G9O1bI. Acesso em: 20 nov. 2021.
10. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 685.
11. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Esquematizado. 1. São Paulo: Saraiva, 2011.p. 250.
12. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 41. ed. atual. e rev. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 329-330.
13. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria geral do direito civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 484.
14. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 9 ed. red., mod. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 355.