Sociedade cosmopolita versus controle de corpos

Sociedade cosmopolita versus controle de corpos

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Atualmente, o homem é um ser sociável e compartilha saberes entre os indivíduos, ainda que de maneira desequilibrada no que diz respeito à imposição sobre a verdade. No entanto, nem sempre foi assim.1 No início da humanidade, o homem era um ser de difícil interação com os demais. Esta característica apenas foi dissociada dele para a manutenção da sua espécie na Terra, já que o isolamento poderia comprometer sua evolução em razão de conflitos gerados por divergências.

A fim de solucionar esta questão, alguns pactos foram criados para que esse desenvolvimento e convivência social – e, mais tarde, político e econômico –  fossem possíveis. Por exemplo, a divisão em territórios, governo e povo, a criação de leis domésticas e internacionais. Por isso, a administração dos direitos do homem e a limitação da liberdade se tornaram temas centrais no estudo do desenvolvimento da sociedade. Sem direitos, o homem não poderia agir em favor de uma comunidade e de si mesmo. Em contrapartida, sem limitação da liberdade a ação poderia ser excedente, principalmente no que diz respeito aos benefícios em prol de sua própria pessoa.2

Na teoria, a harmonização dos direitos do homem e da limitação da liberdade levaria o cenário doméstico e internacional a uma sociedade na qual todos os indivíduos são cidadãos, sem distinção de quaisquer características individuais, como gênero, sexualidade, nacionalidade e etnia. Com isso, a sociedade estaria baseada nos princípios do reconhecimento do outro e da igualdade entre os indivíduos. Apesar da tentativa de equilíbrio, é perceptível que a sociedade cosmopolita ainda não é uma realidade. Pelo contrário, é um modelo de comunidade universal que está porvir, posto que é necessária a ultrapassagem de barreiras físicas, ideológicas e digitais, principalmente no que concerne ao respeito ao outro.

No lugar do cosmopolitismo, o que se apresenta atualmente é uma sociedade baseada na soberania de Estados-nação e de pequena quantidade de grupos dominantes econômica e politicamente. Desde o século XVI, existe um discurso promovido pelo “homem branco dominante” para justificar suas ações políticas em desfavor de grupos de vulneráveis.3 Por exemplo, a partir do século XX, os Estados com maior concentração de poder passaram a utilizar o discurso do universalismo científico em desfavor do universalismo humanista ao imporem que “somente a ciência poderia resolver os problemas cada vez mais imediatos causados pela polarização do sistema-mundo”.4

A centralização de uma ciência como verdade universal decorre do jogo de poder e da necessidade de sua centralização em polos considerados mais desenvolvidos econômica, política e socialmente. Para agir dessa maneira, os grupos e os Estados que detêm o controle utilizam os corpus dos indivíduos como instrumentos que auxiliam na construção da estratégia de poder. O biopoder foucaultiano se refere ao exercício político-jurídico do poder soberano de subjugação dos indivíduos através de brechas no ordenamento jurídico ou da suspensão de normas vigentes.5

Há ainda uma zona de inclusão e de exclusão na qual os corpos transitam de acordo com suas características individuais e no interesse do poder soberano com relação a elas. Este é um espaço onde os corpos podem estar inseridos num contexto social ao mesmo tempo em que podem ser excluídos do exercício de direito.6 É o denominado binômio inclusão-exclusão.7 Por exemplo, é ele quem determina o conteúdo das normas de acordo com o perfil do grupo de pessoas dominantes, como é o caso do enquadramento majoritário do direito como ciência cisheteronormativa.

Por outra via, quando são editados dispositivos legais que fogem à natureza cisheteropatriarcal, como é o caso do reconhecimento jurisprudencial8 do casamento homossexual no Brasil,9 outros mecanismos são ativados. Esta é a agência do estado de exceção. Conforme o nome, este é um instrumento que apenas deveria ser utilizado em casos excepcionais que requeiram medidas urgentes, rápidas e temporárias pelo Chefe de Estado. Todavia, ele é comumente empregado como forma de reação para desaplicar norma vigente que desagrada aqueles que se encontram no poder.10 Sendo assim, esta é uma das formas de transformar a exceção em regra sem que haja a observância de sua banalização.11

O ambiente onde a exceção acontece é denominado de campo por Agamben.12 Segundo ele, o campo é “(…) onde se realizou a mais absoluta conditio inhumana que se tenha dado sobre a terra”13  por se tratar do local no qual se faz viver e se deixa morrer. Explico: faz-se viver quando o soberano promove ‘concessões’14 e deixa-se morrer, pois estas ‘concessões’ estão abaixo do mínimo existencial.15 Portanto, evidencia-se que o campo é um ambiente para o exercício da soberania do Estado-nação, sendo possível a suspensão das normas para sua atuação.16 Trata-se de um local onde os indivíduos abrigados nos campos são amedrontados e tratados como gado e/ou carga por aqueles que os colocaram naquele espaço.17

Por volta do ano de 2019, foi identificado um campo de concentração para homens gays na Chechênia. Neste caso, verificam-se três etapas de ação: (i) a identificação de homens gays através de aplicativos de relacionamentos e denúncias de familiares e amigos; (ii) a captura por parte do Estado; e (iii) o enclausuramento em campos onde o Estado exerce a violência física e psicológica. Neste sentido, é possível observar o controle dos corpus através de decisões tomadas pelas autoridades que detêm o poder de agir ou de se omitir. E, mais, parece haver uma inversão de valores que se referem às ações estatais, uma vez que se espera que a proteção dos nacionais e não-nacionais contra violação de direitos humanos.18 Todavia, constata-se que, por se tratar de indivíduos marginalizados perante o Estado da Chechênia, o interesse sobre suas vidas não é a manutenção, mas a morte.19 Então, questiona-se: o que impede o exercício e a proteção da dignidade humana não só dos homens gays, mas de toda a comunidade LGBTQ+? Ao observar as minorias, a resposta a esta pergunta parece estar na construção de fronteiras visíveis e invisíveis para mantê-los à margem dos direitos dos cidadãos.20

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Márcia Carolina Santos Trivellato

 

Referências

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Sobre o tema do artigo ver mais em: POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot; TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Campos de concentração para homens gays na Chechênia: fronteiras físicas e a sociedade global digital. In: MEYER, Emilio Peluso Neder; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot; TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Direito, Democracia & Internet: perspectivas constitucionais e comparadas. Belo Horizonte, Initia Via, 2021, p. 298-323. Disponível em: https://bit.ly/3qHOjQP. Acesso em: 03 jan. 2021.

1. KANT, Immanuel. Ideias de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

2. KANT, Immanuel. Ideias de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. 3. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

3. Do século XVI ao XVIII, os europeus colonizavam os povos ocidentais sob o argumento da evangelização dos povos. Entre os séculos XVIII ao XIX, os atos de soberania aplicados pelas grandes potências eram o imperialismo na África e no Oriente com a justificativa de levar a modernização aos povos menos desenvolvidos.

4. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 117.

5. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade do saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

6. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade do saber. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

7. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

8. O leading case foi a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n.º 4.277, julgada em 5 de maio de 2011 pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

9. Apesar do reconhecimento, ainda observam-se reações discriminatórias contra o grupo LGBTQ+ – como discursos de ódio e violências físicas – principalmente durante a campanha e após a vitória das eleições de 2018 pelo Presidente Jair Bolsonaro no Brasil. (AVENDANO, Tom C. Casamentos homossexuais como resistência a Bolsonaro. El País Brasil. 2018. Disponível em:  https://bit.ly/3EORECW. Acesso em: 25 maio 2020.)

10. Esta figura é denominada por Agamben como soberano.

11. Hannah Arendt discute a banalização do mal como a trivialização da violência produzida por homens e manifestada num ambiente institucional em decorrência de questões políticas. (ARENDT, Hannah. Eichmman em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.)

12. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

13. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 162.

14. Utiliza-se o termo ‘concessões’, pois, segundo Agamben, o soberano detém o poder de decidir todas as variáveis (por exemplo, ‘se’, ‘quando’ e ‘como’) às quais os marginalizados terão acesso. De mais a mais, recorda-se que esta permissão é restrita, pois, antes de tudo, ela é uma exclusão a todos os demais direitos disponibilizados a quem se encontra na posição de inclusão. (AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.)

15. Segundo Duarte Júnior, o mínimo existencial não diz respeito somente às necessidades básicas, mas sim a todos os elementos que compõem a dignidade da pessoa humana. (DUARTE JÚNIOR, Dimas Pereira. Mínimo existencial e necessidades humanas na fundamentação dos direitos sociais. Revista Argumentum. Marília, v. 20, n. 1, jan./abr. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3eOiZKG. Acesso em: 30 mar. 2020, p. 134-137.)

16. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

17. GBARC, Peter. Civitas, polis, and urbs: Reimagning the refugee camp as the city. Oxford: University of Oxford, 2013. Disponível em: https://bit.ly/3qMWETg. Acesso em: 13 nov. 2019.

18. Muito embora as autoridades da Chechênia não estejam resguardando tais direitos, é importante ressaltar que a sociedade civil tem realizado esse papel, principalmente em grandes eventos, como a Copa do Mundo de 2018 na Rússia. (PUJOL-MAZZINI, Anna. Londoners protest against ‘unprecedented’ anti-LGBT violence in Chechnya. Reuters. 2017. Disponível em:https://reut.rs/3sUOhIa. Acesso em: 28 jul. 2020. RESHETNIKOV, Alexander; SALEM, Mostafa. Rights group sounds alarm over Chechnya’s role in soccer World Cup. Reuters. 2018. Disponível em: https://reut.rs/3pPAqkt. Acesso em: 28 jul. 2020.)

19. Em regra, esta morte é realizada de maneira ‘indireta’, isto é, através da ausência de concessão do mínimo substancial para a manutenção da dignidade da pessoa humana, como será tratado mais adiante. Embora esta forma de tratar a situação a torne invisível para parcela da sociedade, não é correto entendê-la como uma suavização a morte. Pelo contrário, ela torna até a morte um processo biológico indigno.

20. De acordo com Trivellato “Muito embora o nome da Declaração [dos Direitos do Homem e do Cidadão] abranja as expressões “homem” e “cidadão”, os direitos humanos nasceram para proteger tão somente este último.” (POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot; TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Campos de concentração para homens gays na Chechênia: fronteiras físicas e a sociedade global digital. In: MEYER, Emilio Peluso Neder; POLIDO, Fabrício Bertini Pasquot; TRIVELLATO, Márcia Carolina Santos. Direito, Democracia & Internet: perspectivas constitucionais e comparadas. Belo Horizonte, Initia Via, 2021, p. 298-323. Disponível em: https://bit.ly/3qHOjQP. Acesso em: 03 jan. 2021.)

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