Terras Indígenas: tradição versus marco temporal

Terras Indígenas: tradição versus marco temporal

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A espinha dorsal que compõe esta Coluna é o estudo dos aspectos jurídicos derivados da relação entre a sociedade e o território no qual se insere e vice e versa. Desta forma, nada mais lógico que, para além dos limites das grandes metrópoles e sua população, visitemos também a realidade jurídica das terras indígenas no Brasil.

Nas últimas semanas foi possível acompanhar pela maioria dos canais de comunicação, o grande acampamento de protesto que se instalou em Brasília, o qual reuniu por volta de 6 mil indígenas, de um total de 170 povos diferentes. Todo esse contingente estava aglomerado para acompanhar e protestar perante o julgamento do chamado “marco temporal” pelo STF.

Depois de sucessivos adiamentos, o Supremo Tribunal Federal pautou para o final do mês de agosto deste ano o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, o qual vem sendo considerado como o julgamento do século na seara dos direitos dos povos indígenas, uma vez que o STF já estabeleceu Tese Repetitiva sobre a questão e pretende pacificar todos demais litígios conexos. O mencionado recurso tem como objeto a discussão levantada pelo Estado de Santa Catarina frente à dimensão da área de terras demarcadas para o povo Xokleng.

Contudo, temos que apenas o Relator do Recurso, o Min.Edson Fachin e o Min. Kássio Nunes proferiram seus votos antes do novo pedido de vistas realizado pelo Min. Alexandre de Moraes na última sessão de julgamento que ocorreu no dia 15/09/2021.

Mas afinal, do que se trata a tese central deste julgamento? E quais aspectos gravitam junto ao argumento do marco temporal?

Para entender a problemática precisamos voltar para 2009 e para o julgamento realizado, também pelo STF, no caso da demarcação das terras da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol. Nesta oportunidade, diante das várias impugnações feitas pelos terceiros que foram caracterizados como ocupantes de má-fé de áreas da Reserva, o Supremo confirmou a demarcação anterior da área por meio do entendimento de que seu respectivo povo originário estaria ocupando as respectivas terras no momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, e, por este motivo, a demarcação da Reserva deveria ser declarada.

Assim surgiu o chamado marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Ou seja, para a declaração de respectiva área como sendo de terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, os grupos requerentes precisariam provar que esses povos já estavam na posse da área no dia 05 de outubro de 1988, ou, travando disputa física ou judicial sobre à época no dia mencionado.

Observa-se que, para o caso específico da demarcação da área da Reserva Raposa Serra do Sol, a utilização deste marco temporal garantiu o direito do povo indígena sobre suas terras, mas trouxe à tona uma justificativa frágil e restritiva. Assim, as principais lideranças entre todos os povos originários têm invocado a aplicação dos preceitos constitucionais sobre a questão. Pois o artigo 231 da CRFB/1988 em seu caput garante aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Ou seja, a demarcação de suas terras não está vinculada a nenhum critério temporal, mas sim à proteção de suas tradições e costumes.

Mesmo o STF especificando que o julgamento do caso Raposa Serra do Sol não possuía efeitos vinculantes, o Poder Executivo, durante o governo de Michel Temer, renovou a discussão quando um ato da Advocacia Geral da União vinculou a administração pública federal à observância de tal critério. E em paralelo, tramita na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 490, que estabelece, dentre outras questões, o critério do marco temporal para a análise dasnovas demarcações de terras.

Tal situaão ocasionou insegurança jurídica perante os responsáveis pela análise das demarcações e, segundo dados emitidos pelo CIMI – Conselho Indígena Missionário – em 2019, existiam cerca de 829 pedidos de demarcação paralisados ou aguardando início junto à Funai, mas sem previsão de conclusão, uma vez que o critério base para a demarcação continua incerto.

O Min. Edson Fachin, no papel de Relator do RE 1.017.365, proferiu seu voto como contrário a adoção do critério do marco temporal. Em seu entendimento, “dizer que Raposa Serra do Sol é um precedente para toda a questão indígena é inviabilizar as demais etnias indígenas. É dizer que a solução dada para os Macuxi é a mesma dada para Guaranis. Para os Xokleng, seria a mesma para os Pataxó. Só faz essa ordem de compreensão, com todo o respeito, quem chama todos de ‘índios’, esquecendo das mais de 270 línguas que formam a cultura brasileira. E somente quem pacifica os diferentes e as distintas etnias pode dizer que a solução tem que ser a mesma sempre. Quem não vê a diferença não promove a igualdade. ”1

De forma contrária, o Min. Nunes Marques apresentou argumentos a favor da manutenção do marco temporal. Em suas palavras “uma teoria que defenda que os limites das terras estão sujeitos a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral abre espaço para conflitos de toda ordem sem que haja horizonte de pacificação.”2

Para além da existência ou não de um marco que pacifique a discussão, é imperioso observar que a história dos povos indígenas da América-Latina é marcada pela repressão de seus costumes e pela supressão de suas terras desde os primeiros contatos com os europeus. Usemos o próprio povo Xokleng como exemplo. De acordo com uma matéria recente divulgada pela BBC News Brasil, a etnia foi sucessivamente atacada por milícias privadas a mando do governo catarinense desde o final do século XIX e início do século XX.3

O intuito dos ataques era o de simplesmente exterminar os Xokleng. E a cada nova investida, os sobreviventes se viam obrigados a recuar cada vez mais no território que formava sua cultura. Assim, em 1988 o espaço efetivamente ocupado por eles não mais representava as terras que tradicionalmente constituíam sua existência e modo de vida.

O debate ainda está em aberto perante o STF, mas o caso exemplifica muito bem a tensão que existe perante o território e a sociedade que o ocupa.

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Sthenio Paulo Freitas Silva

 

Referências

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1. GOES, Severino. Alexandre pede vista e Supremo adia julgamento sobre marco temporal. Conjur. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3zo7gub. Acesso em: 18 set. 2021.

2. OES, Severino. Alexandre pede vista e Supremo adia julgamento sobre marco temporal. Conjur. 2021. Disponível em: https://bit.ly/3zo7gub. Acesso em: 18 set. 2021.

3. FELLET, João. Xokleng: povo indígena quase dizimado protagoniza caso histórico no STF. BBC. 2021. Disponível em: https://bbc.in/3AoL4l4. Acesso em: 18 set. 2021.

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