Introdução
No dia 21 de maio de 2023, o Projeto Asa, coordenado pela professora Heloisa Helena de Almeida Portugal, realizou o 18º episódio, da 5ª temporada do Cine&Art, iniciativa que objetiva promover reflexões sobre o direito a partir de filmes, séries e artes. O filme debatido no episódio fora “The Batman”, e foi o ponto de partida para esse texto.
O Batman foi criado em 1939, por Bob Kane, sob encomenda da DC Comics, pós sucesso do Super-Homem, e fora inspirado no Zorro e Sherlock Homes. Obteve sucesso nos quadrinhos, além da TV com a série de Adam West nos anos 60, bem como nos cinemas com as seguintes séries de filmes: Quadrilogia (Batman, Batman Retuns, Batman Forever e Batman e Robin), Trilogia de Christopher Nolan (Batman Begins, O Cavaleiro das Trevas, e o Cavaleiro das Trevas Ressurge), Universo Estendido da DC (Batman vs. Superman), e The Batman.
Sua principal característica é o preparo. O herói se destaca nesse quesito por sempre estar na frente de seus inimigos, mesmo que tenha sido derrotado em uma primeira batalha, fazendo com que estude o comportamento de seus inimigos e elaborando estratégias para derrotar. Isso faz com que esse personagem se torne muito popular para o público independente da mídia a ser consumida. Em quase todas as missões seu mordomo Alfred está por trás de suas missões oferecendo suporte.
O filme, The Batman, objeto de estudo desse artigo, foi lançado em 2022, sob direção de Matt Reeves. Nesse filme vemos o herói em seus primeiros anos atuando como vigilante e principalmente criando seu dilema para ganhar o respeito dos cidadãos da sombria Gotham City. Esse filme trás referências da HQ Ano Um e também O Longo Dia Das Bruxas. Ou seja, além de ter um Batman em seus primeiros anos de atuação, tem o herói atuando como um detetive para resolver os mistérios e crimes.
Em breve sinopse, o filme relata a história do jovem bilionário Bruce Wayne que age como vigilante noturno em Gotham City, após a morte de seus pais. No entanto, uma série de crimes desafiará as suas habilidades heroicas. Enquanto isso, o Charada decide fazer um jogo de gato e rato com Bruce e o comissário James Gordon. Mas Batman representa a justiça e não deixará o mal vencer essa batalha.
Temos como eixo temático, o conflito entres perspectivas dos personagens no decorrer da história, diante da corrupção presentes em todos os eixos da sociedade de Gotham City e a forma como a violência é utilizada para atingir suas ideais e ideais.
Vingança Privada
Com desígnio de se discutir o filme, cabe primeiramente tratar de algumas características inerentes ao personagem na maior parte de suas versões: embora seja um herói, o personagem não detém super poderes, ao contrário da maioria dos heróis dos quadrinhos; há um evento marcante na história de origem do herói, que é a morte dos seus pais decorrente de um crime, e o trauma decorrente desse evento, então no exercício de sua atividade de combate ao crime tem que buscar superar seus respectivos medos; a busca por um ideal de justiça, inclusive adotando uma opção de não matar.
A opção de não matar se deve morais impostas pelo próprio herói já que sua família foi morta por algum bandido. Adotando a regra de matar provavelmente iria o transformar no mesmo tipo de pessoa que mataria alguém por algum motivo ou vingança. Fazendo com que perderia suas camadas importantes como pessoa ou herói ao longo da história.
Batman como um herói, visa proteger o bem e a sociedade, moldado por um ideal de justiça e luta contra toda “a sujeira do sistema”. Todavia, entende que é necessário utilizar de violência para quebrar o sistema corrupto instaurado. Para ele, não é possível quebrar o sistema de corrupção sem a utilização da violência. Desse modo, temos a violência como principal forma de coerção.
Ele não mata, não possui o desejo de matar, e mesmo que “encha o inimigo de pancadas”, não o mata e acredita que todos possuem uma segunda chance para melhorar. Não obstante, se faz necessário diferenciar o conceito de heróis e anti-heróis. Como vimos, Batman é um herói, ou seja, vê o melhor nas pessoas e busca fazer o bem. Já o anti-herói, se baseia em ideais próximos de um herói, contudo, para atingir seus fins, pode matar para fazer o bem.
Cumpre fazer uma breve consideração, embora o Batman não mate em suas versões padrão, possui versões alternativas, ele chega ao limite e mata. Como exemplo: há uma animação1 em que o Batman e o Coringa, em idade avançada, sem envolvem no embate final, e depois de tanto conflito, nosso herói chega ao limite e cansado de todo o mal ocasionado pelo vilão, o mata para encerrar o ciclo de violência e mortes. Por fim, na história de “Piada Mortal”2 e em sua animação3 , o final fica a critério do Telespectador interpretar. Pois sua história fica em aberto se o Batman mata ou não o Coringa.
Feita essa consideração, pode-se ater-se ao elemento justiça em si, trata-se de um termo plurívoco, ou seja, dotado de numerosos significados. Com finalidade didática valer-se-á de três conceitos comumente atribuídos ao termo, quais sejam: a) justiça sob uma ótica utilitarista: justiça é agir de modo a garantir o maior bem estar possível para a comunidade; b) justiça sob uma ótica deontológica: propõe-se que existem máximas morais, aquelas que pode ser universalizadas, e a justiça seria agir em conformidade com essas máximas; c) justiça como virtude: justiça é agir em conformidade com as virtudes éticas adquiridas através da habitualidade, ou seja, não são extraídas de conceitos universais e estáticos.
Extrai-se dos conceitos de justiça que o personagem, Batman, se vale da justiça sob uma ótica utilitarista, que se aproxima bastante da frase comumente atribuída a Nicolau Maquiavel, diante de interpretação da sua obra o príncipe, que seria, os fins justificam os meios.
A vida imita a arte muito mais que a arte imita a vida4 . Embora, na realidade não existam super heróis, o fenômeno da vingança privada ocorrera historicamente, e pontualmente continua a ocorrer na atualidade, tal qual ocorre nos filmes.
Ao tratar de vingança privada, invariavelmente trata-se da evolução do direito penal. Inicialmente, tem-se a vingança divina, na qual, o transgressor da lei divina é punido por membros do seu agrupamento, em caráter de expiação, ou seja, purificação de pecados. Em seguida, tem-se a vingança privada, que se trata basicamente da retribuição do mal causado, ainda que de forma desproporcional, pelo lesado, ou no interesse da pessoa lesada. Até que se culmine na fase da vingança pública, em que o Estado detém para si o “ius puniendi”, ou seja, o direito de punir.5
Em linhas gerais, o direito penal abarca uma série de funções, que vão além da mera punição per si, deve: a) proteger bens jurídicos importantes: intervir minimamente protegendo bens jurídicos importantes, desde que haja ofensividade a bens jurídicos, e não seja o caso de insignificância ou adequação social; b) Proteger o indivíduo das reações sociais que o crime desencadeia, ou seja, quer-se evitar vinganças privadas; c) Proteger o indivíduo do Poder do Estado, ou seja do limite do direito de punir do Estado, que perpassa, pela exigência de comprovação de requisitos como culpabilidade, devido processo legal, respeito a legalidade e irretroatividade, para que só assim se possa aplicar pena que não passe da pessoa do condenado, que seja digna, humana, individualizada, e não dupla. Ressaltando, ainda que ninguém é considerado em culpado até trânsito em julgado de sentença condenatória.
Especialmente a proteção de bens jurídicos importantes mostra-se como uma função importante, pois é em razão dessa proteção que os sujeitos passaram a se sujeitar a jurisdição Estatal. Na hipótese em que um Estado se mostra incapaz de propiciar essa proteção, em razão da ineficiência do Estado em coibir e retribuir práticas delituosas, cria-se um sentimento de falta de segurança pública e impunidade, daí começam a surgir casos de aplicação da vingança privada.
Na tentativa de desestimular atos de vingança privada o Código Penal tipifica o Exercício Arbitrário das Próprias Razões, nos seguintes termos:
Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
“No exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do CP), o autor, a pretexto de realizar interesse próprio ou alheio, arbitrariamente emprega os meios necessários para tanto (violência, grave ameaça, fraude etc.), ignorando o monopólio estatal na administração da justiça, passando-se por juiz, decidindo de acordo com sua pretensão (pessoal, real ou familiar), que deve ser legítima (assentada em um direito) ou, ao menos, revestida de legitimidade (suposta, putativa)”.6 Assim, depreende-se que o tipo penal tem como sujeito passivo o Estado, e secundariamente, a pessoa contra a qual se volta a vingança privada. O Estado é alçado a condição de sujeito passivo, pois tem a função de proteger o indivíduo das reações sociais que o crime desencadeia. Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao momento de consumação do crime, para a “primeira corrente sustenta que o delito é formal, consumando-se antecipadamente, com o emprego dos meios a fim de que seja satisfeita a pretensão. Para a segunda corrente, o crime é material, exigindo, para a sua caracterização, a efetiva satisfação da pretensão”7 . O STJ filia-se primeira corrente. De todo o modo, insta salientar que podem ser empregados diversos meios como violência, grave ameaça, para fazer justiça com as próprias mãos, meios esses que podem caracterizar outros crimes como homicídio, lesão corporal, e assim o sendo poderia responder por aquele crime em concurso material com outros, salvo casos em que o crime ficaria absorvido como é o caso de uma contravenção penal de vias de fato.
Importante destacar que o próprio tipo penal, de exercício arbitrário das próprias razões, faz uma ressalva, indicando que há hipóteses em que fazer justiça pelas próprias mãos seria lícito, que seria quando incidir uma causa excludente de ilicitude, tal qual a legitima defesa.
Legitima defesa é uma causa excludente da ilicitude, que autoriza em havendo uma agressão humana, injusta, atual ou iminente, com destinatário certo, a utilização de meio necessário e moderado para cessar a agressão.
Então, excetuada a hipótese de legitima defesa com meio necessário e moderado, fazer justiça com as próprias mãos constitui-se em crime tal qual os cometidos contra os sujeitos contra quem a vingança privada se volta.
Esse tema da vingança privada é melhor para a ficção, para a realidade o ideal é um aprimoramento constante das leis, das polícias (que incluí aumento de contingente, qualificação, verificação da adequação das condutas através de procedimentos administrativos quando necessário), métodos de investigação, e observância dos princípios processuais para que assim o Estado consiga adequadamente coibir condutas criminosas sem excessos, e que cada sujeitos seja punido na medida de sua culpabilidade.
O Direito Penal é um importante meio para coibir “Justiceiros” e punir os indivíduos que fazem justiça com a próprias mãos. O Judiciário tem que agir norteado por princípios que otimizem a justiça e garantem o devido processo legal e as ações que prejudiquem o Estado Democrático de Direito e de qualquer forma prejudiquem um bem jurídico, sofrerão sanções para coibir que novos casos ocorram da mesma forma.
Deve salientar que o Direito Penal possui caráter subjetivo, com a individualização da pena, respeito aos princípios de ampla defesa e contraditório, apurando a medida de culpabilidade de cada agente. O direito como um todo, não possui a finalidade de ser carrasco ou utilizar de injustiça e meios ilegais para punir as ações prejudiciais a sociedade, mas sim, objetiva utilizar os mecanismos lícitos para coibir ciclos de violência e demonstrar que a Lei e seus princípios são essenciais para a harmonia na sociedade, desestimulando sensações de ódio, vingança e omissão na proteção do bem jurídico.
Na esfera Civil, caso o indivíduo ocasione danos a sociedade e ao meio em que vive, e configurado sua responsabilidade, deverá arcar pelos danos causados e sentirá no bolso o efeito de suas ações.
Desse modo, uma conduta que extrapole o meio legal, sofrerá alguma espécie de sanção com a finalidade de coerção para estimular o agente a não cometer novamente essas condutas. O ordenamento jurídico não dá respaldo para condutas que ferem o direito de outrem e atribui punições e responsabilidade para essas ações. Lembre-se que o Direito não pretende ser prejudicial para indivíduos que se “encontrem a margem da sociedade”, mas sim, reeduca-los e inseri-los no meio social.
Informação
Há ainda como plano de fundo do filme uma questão, o poder da informação.
Em breve contextualização, Falcone se vale informação para chantagear Thomas Wayne; Charada obtém informações para tentar romper com o sistema corrupto implementado em Gotham. Além de deter, quer-se controlar a informação, Falcone silencia seus opositores, e o Charada quer demonstrar para a população a corrupção de Gotham através de sua ótica.
Isso serve como alerta para a realidade, sobretudo em uma sociedade digital em que a informação circula muito rápido, mas nem todas as informações são verídicas, há informações falsas que podem ser chamadas de Fake News.
E não se pode deliberadamente veicular informações falsas, nem sequer valer-se de discurso de ódio, nem incitar crimes, pois são um limite a liberdade de expressão.
No que toca a incitação de crime, o Código Penal prevê:
Art. 286 – Incitar, publicamente, a prática de crime:
Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade.
Assim, a conduta do Charada poderia configurar o crime de incitação de crime, tanto o é que, incentivou pessoas a saírem mascaradas e armadas na rua.
O Charada foge muito do que foram nos apresentados em diversas mídias disponíveis para se consumir. Como dito anteriormente, o personagem está cansado do sistema corrupto de Gotham e assim o único método que adotou foi partir para a violência e cada vez mais tentar ganhar seguidores que apoiam seus métodos. Por enquanto só tem disponível essa informação através do filme. Muitas informações sobre as verdadiras motivações por trás dos atos do personagem realizados no filme só terá que aguardar o lançamento da HQ do vilão que vai se passar nesse mesmo universo e será escrita pelo Paul Dano (ator que fez o Personagem).
A veiculação de alguma informação sem suporte referencial que a corrobore pode levar a desinformação, na medida em que as pessoas em regra não checam informações em fontes seguras. Há também as várias formas de interpretação em determinado assunto, que faz com que as visões possam ser desvirtuadas e influenciadas. No filme, o Charada via o Batman como um símbolo e um incentivo para quebrar o sistema, com mortes e violência. Ao final, o herói percebe que sua motivação em trazer o melhor das pessoas foi levada para o lado da violência contra todas as camadas de uma sociedade corrupta.
A desinformação pode impactar o Estado Democrático de Direito, prejudicando a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. Exemplificando: uma fake News foi espalhada em que citava que um indivíduo cometeu um crime grave (estupro) e foi vítima de linchamento. Desse modo, a fake News ocasionou situações graves e originou discurso de ódio. Cabe aos meios legais, punir os infratores e sanar essa situação caótica originada por uma notícia falsa, bem como deve-se atribuir a responsabilidade aos responsáveis dessa desinformação.
Portanto, sempre deve procurar fontes seguras para ter acesso à informação e desestimular ações que ocasionem danos graves a outrem. E caso haja propagação de desinformação, os autores serão punidos, sofrendo sanções nas esferas penais e civis.
Conclusão
O filme do Batman traz à tona uma séria de temas que podem ser objeto de reflexão à luz do direito, especialmente no que toca a vingança privada, e o poder da informação e seus reflexos como disseminação de fake news, incitação ao crime.
O filme ainda apresenta que símbolos são dotados de diferentes interpretações e que toda ação gera uma reação, positiva ou negativa, bem como reforça que a arte e a realidade andam juntas, uma é o retrato e interpretação da outra. Ademais, o Direito se encontra em todas as camadas da sociedade e coíbe situações que ferem direitos alheio.
Cabe destacar que o filme acerta em fugir da jornada do herói que motivado pela perda, busca enfrentar o mal, ou seja, Bruce Wayne luta para acabar com as injustiças e derrubar um sistema corrupto por meio da violência. Com isso, The Batman apresenta que suas escolhas moldam seu caminho e que ele pode falhar, originando algum vilão radical que leva o ideal de justiça ao extremo.
Por fim, todos somos humanos com personalidades distintas e com isso, o senso de bom ou mau, certo ou errado, violência ou justiça, é questão de opinião. Todavia, o direito é o instrumento para que se mantenha o equilíbrio na sociedade e puna situações que prejudiquem o coletivo.
Para os interessados na temática, o debate acerca do filme encontra-se disponível no canal do Youtube do Projeto Asa, através desse link.
Referências
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1. Batman: O Cavaleiro das Trevas – Parte 2 (2013).
2. Escrita por Alan Moore e sua primeira publicação ocorreu em 1988.
3. Adaptado em 2016.
4. WILDE, Oscar. Pen, Pencil and Poison. 2015. [E-book]
5. ASSIS, Ismael de Oliveira. Direito E A História Da Vingança Divina, Privada E Publica. Colloquium Socialis, Presidente Prudente, v. 02, n. Especial 2, Jul/Dez, 2018. Disponível em: link. Acesso em: 22, maio, 2023.
6. CUNHA, Rogério Sanches. 685: Exercício arbitrário das próprias razões é crime formal e se consuma com o emprego do meio arbitrário. JusPodivm. 2021. Disponível em: link. Acesso em: 03 jul. 2023.
7. CUNHA, Rogério Sanches. 685: Exercício arbitrário das próprias razões é crime formal e se consuma com o emprego do meio arbitrário. JusPodivm. 2021. Disponível em: link. Acesso em: 03 jul. 2023.